sexta-feira, 4 de setembro de 2020

"A Mala Vermelha" - Capítulo 24

 



- Vens comigo, mano? - perguntou-lhe uma voz mimada, puxando-lhe pela mão. Queria acabar de ler aquele capítulo, pensou aborrecido. Mas só ele é que tinha a obrigação de aturar o miúdo?, resmungou frustrado, levantando-se. - Depois vamos pedir à mãe os chocolates? Sabias que ela trouxe duas tabletes escondidas? Eu vi-as! - riu-se, com os olhos a brilhar de contentamento. - És um safado... se ela descobre que andaste a mexer na mala vais ficar de castigo! E depois os chocolates são todos para mim! - provocou-o, aproveitando-se da ingenuidade dele para o chatear. - Não!, são meus! - gritou, tentando dar-lhe uma canelada furioso. - Se tornas a fazer isso mando-te para a água e deixo-te lá ficar, e sabes porque é que a cor da água é tão verde? São as algas... que te vão agarrar num pé e puxar, e nunca mais sais! - Mãaaaae.... - fugiu a choramingar, procurando o consolo da mãe e fazendo-lhe queixas. - Sim, sim, já vou... - bufou, sabendo que já ia ouvir um ralhete. Aquele chato conseguia tudo o que queria, não o deixava ler em paz deitado na toalha, e agora ainda ia pô-lo de castigo... nunca mais chegava o dia em que ia estudar longe de casa... suspirou, imaginando-se um engenheiro agrónomo, como o avô, todo o dia a passear pela produção, de chapéu estiloso e botas de borracha. - Sim, mãe...



 Acordou sobressaltado, com a sensação de culpa, como se tivesse cometido um erro. Que raio de sonho... aquele miúdo aparecia-lhe outra vez, mas agora era seu irmão, vira-o quase perfeitamente, e uma família à beira rio a fazer um piquenique, todos alegres, mas demasiado longe para que os conseguisse analisar. Levantou-se e foi tomar banho, pensando naquele pormenor do avô engenheiro agrónomo, seria aquilo uma recordação ou só imaginação? O que teria acontecido à sua família?, ainda era novo, deveria ter pelo menos os pais vivos, ou tios, primos... Aquelas dúvidas assombravam-no, naturalmente, desde que recuperara a consciência e começara a pensar mais claramente. À medida que os remédios do internamento iam sendo mais espaçados e menos fortes tudo aquilo o perseguia. E mesmo passado bastante tempo desde que tivera alta, ainda não sabia nada sobre si, nem havia resposta em sua casa, álbuns, cartas, postais, nada. Aquele sítio parecia asséptico e alienígena, e isso consumia-o cada vez mais. Precisava de calor, de cores, de um pouco do que o fazia sentir a casa da Ganesha. Acabou o banho e decidiu vestir a roupa mais prática que encontrasse. Ia voltar à jardinagem voluntária, não queria ali ficar nem mais um minuto. Levaria as coisas para fazer o café, pão, fiambre, e algo para almoçar. Tinha visto lá no quintal umas beringelas a passar do ponto, serviriam para assar, só precisava de levar queijo mozzarela e uns orégãos. Tomates maduros também lá havia, e tinha mesmo de os comer, o frio começava a dar cabo de tudo. Depois de muito procurar pelos armários da casa, encontrou um chapéu estranhamente parecido com o do sonho, senão idêntico, com aspecto de ser uma recordação, com bastantes anos e marcas de uso. Colocou-o na cabeça e sentiu-se animado com aquele dia. Reuniu tudo o que precisava para se manter durante o dia na quinta e só por prevenção, e porque poderia ficar muito cansado e dar-lhe o sono, colocou a medicação da noite no saco. Voltou atrás e meteu roupa interior e algumas t-shirts também, e se se sujasse? Teria de ter roupa para depois trocar... Mas se ia lá tomar banho teria de levar o seu gel de banho, e escova de dentes... podia ser necessário... Estava quase a sair de casa quando se lembrou de que tinha deixado a "ganesha" no seu antigo quarto, onde agora dormia a namorada sozinha. Entrou pé ante pé, pegou na estatueta e saiu, satisfeito por se ter lembrado daquele objecto. Seria suficiente aquele café?, perguntou-se, imaginando que tinha ali uns bons dias longos de trabalho e precisaria de se manter bem ativo. Pegou em mais dois pacotes ainda fechados, guardou-os e saiu, fechando a porta devagar, suspirando de alívio. Como é que alguma vez podia ter sido feliz ali? Era impossível... 


- Bom dia! - acenou ao sorridente vizinho que todos os dias passava pelo portão da quinta no que parecia a João ser uma mistura de curiosidade, desconfiança e passeio higiénico. Trazia consigo um cão grande à trela, talvez para não se sentir tão desprotegido, já tinha uma certa idade, e todos os dias se demorava um pouco mais na passada, atrasando-se propositadamente, a ganhar coragem de esticar a conversa com aquele jardineiro empenhado. João sabia que aquilo era de loucos, estar a tratar de um jardim de uma casa abandonada, viver lá dentro como se tudo lhe pertencesse, mas a sua vida não era normal em nenhum sentido, aquele era só mais um pormenor excêntrico. E fazia-lhe bem, não queria voltar para o apartamento, lá aborrecia-se. Ainda não tinha aparecido a polícia, por isso, mantinha-se descansado e internamente absolvido.

- Essas courgetes têm crescido que é uma maravilha! - comentou o velho, sorrindo-lhe e estacando do outro lado da grade à espera de conversa.

- Pois têm! Crescem com uma rapidez, se as regar bem, então... não quer levar umas? Já não sei o que fazer a tanta courgete... - sorriu, esfregando a testa com as costas da mão.

- Também lá tenho, obrigado. Sabe o que podia fazer? Todos os sábados há um mercado livre de agricultura biológica no Jardim Botânico. Porque não vai lá despachar isto tudo? Não deve ser só courgetes que este terreno dá a mais... - sugeriu.

- Isso é uma excelente ideia! - exclamou, poisando as mãos no cabo da enxada e sentindo-se animado com aquela sugestão. Detestava a ideia de deitar fora toda aquela abundância. - Talvez vá lá amanhã, há aqui tanta coisa que se vai estragar daqui a uns dias... - pensou em voz alta, olhando em redor. - Obrigada pela sugestão.... Sr...?

- Joaquim. - esticou a mão por dentro da grade a formalizar aquela apresentação e à espera de um nome de volta.

- João, prazer. - respondeu, satisfazendo a curiosidade do "seu" vizinho.

- Bem, então bom trabalho! - acenou em despedida – Vamos, Fiel! - continuou a sua caminhada matinal, ligeiramente aliviado por não sentir má impressão do rapaz. Talvez fosse um empregado da menina Isabel, embora achasse difícil que um jardineiro viesse trabalhar de BMW, e não um qualquer, um carrão demasiado vistoso, coisa para custar o valor de uma casa... E mais que as posses do rapaz, o que realmente o intrigava era o facto de que muitas vezes se apercebera de que ele pernoitava ali. Conhecia a casa, só tinha um quarto, dormiria ele no quarto da patroa? Era um mistério cada vez mais complicado. O melhor seria tirar as suas dúvidas diretamente com os Fonte Pereira e Melo, não queria ser cúmplice de nada.



- Isabelinha, o seu pai pediu para avisar de que quer falar consigo, no escritório. - murmurou gravemente Adelaide, como se o local da conversa fosse o presságio de algo muito sério. 

- Obrigada Dazinha. Sabe do que se trata? - perguntou, terminando o café aromático que a consolava daquele frio de fim de outono de Castelo Branco.

- É claro que não! - explicou, retomando as suas tarefas na cozinha, sob o olhar da sua menina que finalmente recuperara o apetite e comia satisfeita o lanche caprichado. - Apenas recebeu um telefonema de Coimbra, eu atendi e passei-lhe a chamada. - olhou-a discretamente, sabia que aquele pormenor a iria incomodar. - Era o seu vizinho, o Sr Joaquim. Deve ser alguma coisa sobre a sua casa. Não se preocupe.

- Afinal sabias qualquer coisita. - gracejou, sorrindo-lhe provocadoramente. - Obrigada, estava maravilhoso o café. - deu-lhe um beijo de fugida e respirou fundo para ir enfrentar a tal conversa. O pai era sempre muito reservado e raramente desperdiçava tempo, se a chamara teria com certeza um bom motivo. Quantas vezes tinha desejado ser filha de alguém mais simples e acessível, menos importante e ocupado. Só lhe sobravam sempre as conversas difíceis ou os raspanetes.



- Estou? João?, posso saber onde andas?!

- Olá Isabel, boa tarde, tudo bem? - ironizou, detestava aquela falta de educação da namorada. - Estou quase a chegar a casa. Já falamos. - desligou sem cerimónias, aborrecido. Isabel interrompia sempre os seus momentos de transe e sonho acordado, enquanto ouvia algumas músicas no carro, parecia que fazia de propósito, só para chatear. Ultimamente deixava-se perder nas suas fantasias, entusiasmado com a satisfação que retirava do trabalho no jardim. Só se sentia mais desanimado quando era inevitável ir dormir ao apartamento. Tinha prometido ao César que jantariam com ele e com a Lisa, e já estava ligeiramente atrasado, perdera imenso tempo a organizar os produtos que levaria no dia seguinte para a tal feira que o vizinho sugerira. Ainda não tinha decidido se ia contar essa sua atividade comercial ao jantar, talvez fosse melhor guardar para si mesmo, a namorada podia estragar-lhe os planos com uma birra qualquer, mas de bom agrado cancelaria todos os planos da noite para dormir na cama dela e continuar a fingir que aquela era a sua casa e que a Marta voltaria de uma breve ausência para visitar familiares. Ele não podia deixar o jardim abandonado, então ficara, mas já estava cheio de saudades, e a casa começava a ficar ligeiramente caótica sem ela, pó nas estantes, roupa para lavar, tinha de ganhar coragem e arrumar tudo antes que ela voltasse. Estacionou o carro e suspirou, desligando o motor do veículo ao mesmo tempo que parava com o sonho agradável. - Vamos lá, Dr João.



- Sim, claro, fico a aguardar então, obrigado Santos. - desligou o telefonema so o olhar curioso da filha e acenou-lhe que se aproximasse. - Senta-te Isabel. Desculpa só ter podido receber-te a esta hora, mas valores mais altos de levantam.

- Boa tarde pai, o que se passa? A Adelaide disse-me que queria falar comigo. - obedeceu à ordem e colocou a sua melhor pose. 

- Sabes quem era ao telefone? - lançou, enquanto endireitava papéis que estavam na sua frente espalhados na secretária, sem a olhar diretamente.

-  Não pai, quem era? - se não a olhava era porque a ia informar de algo que não gostaria de ouvir. Já começava a ficar farta daquele paternalismo do século passado e da postura obediente que tinha de manter. Como sentia saudades da sua casa em Coimbra, quando era obrigada a conviver com o Sr Dr Fontes Pereira e Castro. 

- O Comandante Alberto Santos, na PSP de Coimbra. Um antigo conhecido meu do tempo da faculdade – esclareceu – Ele vai amanhã mesmo ver o que se passa lá no sítio onde moras quando estás em Coimbra. Pelos vistos anda lá um sujeito a apropriar-se da tua casa, usando-a como se fosse dele. Recebi um telefonema do Sr Joaquim preocupado com a situação. - enumerou com autoridade, como se o assunto estivesse arrumado.

- Um sujeito? Mas o Sr Joaquim sabe quem é? Como se chama? - por momentos temeu que o Janota lá andasse a arranjar o jardim e que fosse prejudicado com a impetuosidade do pai.

- João, mas certamente é um nome falso. - rematou.

- Meu Deus... - enlouqueceu de vez, pensou, sentindo as bochechas a aquecer e um remoinho a crescer no estômago. - Mas o que disse exatamente o Sr Joaquim? Como assim, a apropriar-se da minha casa? - gaguejou, a tentar disfarçar o mais possível o seu choque.

- Anda para lá de enxada na mão, de volta do jardim, mas o mais grave é que ele usa a tua casa. Como entrou, não faço ideia, mas o Sr Joaquim garante que ele dorme lá de vez em quando. Deve ser um daqueles parasitas hippies, sem respeito pela propriedade alheia. Mas o Alberto já está ao corrente de tudo, não te preocupes, amanhã cedo acaba a ousadia do tipo. Depois tens de lá ir formalizar a queixa, e ver os prejuízos, mas para já vamos ver se é apanhado em flagrante. - explicou, olhando-a a terminar simbolicamente a conversa.

- Ha... pois, claro, aguardemos então. Obrigada – levantou-se meia dormente e saiu do escritório, sem saber o que fazer. O seu instinto dizia-lhe que telefonasse ao João e esclarecesse aquilo tudo, mas a história parecia-lhe tão excêntrica que lhe custava acreditar que fosse ele a andar de enxada na mão. Podia ser uma grande coincidência, e o maluco ter inventado o nome de João para calar o Sr Joaquim. Faria uma figura de idiota se lhe ligasse e ele se risse daquela sugestão apalermada de que andava a brincar aos jardineiros. Ele nem sequer sabia distinguir uma erva daninha de uma flor... Caminhou sem perceber até ao quarto, fechou a porta e pegou no telemóvel desligado que mantinha na gaveta da mesa de cabeceira. Ligou-o e uma série de notificações sonoras de tentativas de contacto e mensagens escritas caíam sem parar. Janota encabeçava a lista dos mais persistentes, para sua angústia e tinha de admitir, desilusão. Devia-lhe um telefonema, mas João desistira dela, e era só nisso que conseguia pensar.


- Qualquer que seja o motivo que te fez rejuvenescer assim, parabéns!, estás de facto com muito melhor aspecto! - exclamou César, colocando mais vinho no copo – Afinal conta lá, mata-nos a curiosidade, andas a fazer corrida? Pareces mais bronzeado, até mais tonificado! - acrescentou bem disposto.

- Não, nada disso, ando a fazer jardinagem. - respondeu, não adiantando muito mais e continuando a comer.

César e Lisa entreolharam-se perdidos, aquilo era uma novidade. Isabel também parecia espantada e isso ainda os intrigava mais.

- Jardinagem? - exclamou Lisa numa tentativa de continuar o tema e saber mais – Isso é muito interessante. E onde fazes tu jardinagem?

- Bem, isso é segredo, é o meu refúgio, se vos disser também vão querer ir para lá e acaba-se o meu sossego! - gracejou, fugindo à verdade que o fazia sentir-se desconfortável. Ninguém iria achar correto ele estar a invadir a casa da Marta sem autorização.

- E essa jardinagem dura dias e noites inteiras! - acrescentou Isabel, furiosa com as mentiras dele. Só podia andar com outra mulher, não havia outra explicação.

- Não sejas ciumenta, Isabel, - ironizou, ligeiramente picado com o rumo da conversa – sabes que só tenho olhos para ti. - concluiu, não esclarecendo a plateia sobre as noites que passava fora.

- Bem, e que tipo de jardinagem estamos a falar? - interrompeu César – Flores? Canteiros?

- Tudo! Agricultura também. César, acho que me vou virar para este ramo, descobri que tenho bastante jeito para a terra. Mas deixemos de falar de mim, como vão as aulas de yoga Lisa?

- Olha, uma porcaria, para ser sincera! A nova professora não sabe nada, é uma convencida, todos os dias leva um conjunto novo, super colado ao corpo... deve ser para nos fazer sentir bem... - bufou, ofendida.

- Querida, tu estás ótima! Não acredito que essa miúda tenha a tua forma! - elogiou César, sorrindo-lhe.

- A idade está a fazer de ti mentiroso... enfim!, - suspirou – não quero falar dessa "Sandra", que acho que é o nome dela. Já me basta as saudades que tenho da M... - calou-se repentinamente, chocada com a indiscrição que lhe ía saindo. - E sobremesa? Alguém quer? - levantou-se e comelçu a recolher os pratos, irritada consigo mesma.

- Eu vou-te ajudar. - João levantou-se e pegou na travessa do que restava da "Lasanha de 6ª feira à noite", e caminhou atrás de Lisa. Entrou na cozinha e ganhou coragem para continuar a conversa que realmente lhe interessava – Diz-me uma coisa, lá na escola de yoga não estão mesmo à espera que a Marta volte? Ela despediu-se? 

Lisa poisou os pratos na bancada, aproximou-se dele e fez-lhe uma festa na cara, maternalmente. Era tão bonito ver o amor que eles sentiam um pelo outro, e ao mesmo tempo tão triste que o destino os estivesse sempre a boicotar, pensou, enternecida – Querido, não percas a esperança, eu sempre soube que se conhecesses a Marta a irias amar. Ela é adorável e tu também, e desculpa a franqueza, aquela rapariga não faz o teu género, porque continuas a viver com ela?

- Ela não tem família, se a mandar embora de minha casa fica no olho da rua... nós dormimos em quartos separados, não há nada entre nós, nem tenho vontade de que isso aconteça. - esclareceu – Mas então foste tu que nos apresentaste? A mim e à Marta? 

- Bem, o César vai-me matar se souber que estou a contar-te coisas... - encostou ligeiramente a porta – mas não, vocês conheceram-se por casualidade lá na clínica onde tu trabalhavas.

- Ah, porque ela era lá enfermeira, certo?

- Hum... não, porque ela fazia lá voluntariado na altura e cruzaram-se um dia.

- Mais uma mentira na história... - lamentou-se – Então e onde entras tu nisto tudo?

- Eu fiz um jantar aqui em casa e convidei-a, tu já vinhas cá todas as sextas-feiras, e deu logo para perceber que estavam caidinhos um pelo outro. - sorriu sonhadoramente.

- Então e a Isabel? Eu não namorava já com ela? - tudo o que lhe iam dizendo fazia sentido, menos aquela namorada, parecia deslocada na sua história.

- Pois, tu conhecias a "isabel" das tuas noitadas, acho que tinham alguma intimidade, mas isso não interessa nada, não entendes? Tudo é factual, são só factos. Aquilo que a tua amnésia tirou, também pode ser visto como positivo. Concentra-te no que vais sentido e acredita nisso. Se esta rapariga não te diz nada, não tens obrigação nenhuma em viver com ela. Resolve isso, a Marta vai voltar, eu tenho quase a certeza, e se não voltar, metes-te no carro e vais buscá-la! Mas acaba esta farsa primeiro. - deu-lhe as mãos em apoio moral, sentindo-se aliviada e esperançosa. - Agora é melhor pegares nessas taças e ires para a mesa, para não levantarmos suspeitas. - piscou-lhe o olho e tratou de desenformar o pudim de ovos. 

- Obrigada Lisa.

- Porquê?

- Por seres sincera comigo. - acrescentou – Não sei se consigo fazer tudo o que me sugeriste assim de repente... não quero que a Isabel passe dificuldades, mas vou tentar encontrar uma solução para ela. Mal ou bem, tem sido a minha companhia, e não fugiu para lado nenhum quando eu precisei. Há sempre esta dúvida aqui dentro, sabes?, porque fugiu a Marta? Isso não é amor, é cobardia. - saiu da cozinha e Lisa ficou angustiada com aqueles raciocínios. Era óbvio que sem se lembrar de tudo não iria perdoar o abandono súbito da verdadeira Isabel. César tinha razão, meterem-se na memória dele era pior, ou ele se recordava de tudo de repente, ou tinham de respeitar o rumo atual das coisas. 


- Bom dia. Polícia de Segurança Pública, Comandante Santos. Posso entrar?

- Bom dia, claro, entre. - João sentiu as pernas estremecer ao perceber que tinha chegado ao fim a sua fantasia, mas ser logo visitado pelo Comandante é que não estava à espera. - Posso ajudá-lo?

- Deve! Estão lá fora alguns colegas meus a recolher informações para a proprietária desta quinta, mas queria falar consigo em privado, antes de sairmos.

- Ok, faça o favor. - indicou-lhe um lugar no sofá e sentou-se no cadeirão, sem perder a compostura.

- Primeiro, qual é o seu nome? - pegou num bloco e caneta e esperou a resposta de mão em riste. Já não fazia aquilo há muito tempo, temia que o rapaz percebesse.

- João Marques. Sou amigo da proprietária, a Marta, não entendo o que se possa estar a passar.

- Sr João Marques, a proprietária desta casa e terreno é a Sra Isabel Fontes Pereira e Castro, e foi ela quem nos denunciou que havia um homem desconhecido a viver na sua casa, que recentemente abandonou para ir viver com a família. Não sei quem é a Marta, deixemo-nos de mentiras. - olhou-o interrogativamente – Porque é que arrombou a porta desta casa? O que realmente anda aqui a fazer? Tem alguma justificação válida e coerente para estar a invadir propriedade alheia? É que me parece que se meteu em trabalhos.

- Isabel?... - era a segunda pessoa que o desmentia e chamava a Marta de Isabel, mas desta vez com apelido, e pomposo. Mas quantas Isabéis havia na sua vida? A namorada, a da mala de quem se recordara no bar e agora a do roupão e beijo escaldante. Levantou-se do cadeirão, confuso, dirigindo-se às molduras da estante, olhou-a nas várias situações ilustradas, nas aulas de yoga, com um cão enorme, agarrada a uma senhora de idade, pegou numa delas e mostrou-a ao polícia que o observava com alguma desconfiança e cautela. - Esta não é a Marta? 

- Meu Sr, acalme-se, assim não vamos a lado nenhum. Como compreende, eu nunca vi a Sra Isabel Fontes Pereira e Castro, não lhe sei responder. Sente-se, por favor. Porque é que está a viver nesta casa? - começava a suspeitar que dali iam até à urgência da psiquiatria e não para a esquadra.

- Eu ia vender os legumes ao Botânico... - foi o que conseguiu responder, de moldura na mão, atónito. Mas ela tinha feito queixa dele... porquê?

- Bem, acho que não tenho mais perguntas. Por favor acompanhe-me até à esquadra, preciso de recolher o seu depoimento oficial e pedir uma avaliação técnica. - levantou-se e fez-lhe sinal para que saísse da casa, fechando tudo e trancando a porta, guardando a chave no bolso. - Este é o seu carro? - perguntou espantado com a viatura – Quer levá-lo até à esquadra? Talvez seja melhor... empreste-me a chave que faço esse favor. - entrou no bmw satisfeito, adorava um bom carro, sempre desejara comprar um daqueles, mas nunca conseguira convencer a mulher.



- Estou?... Sim, sou eu... Como assim, preso?... Claro, vou aí imediatamente. - César desligou o telefonema furioso. - Preso! Agora foi preso!! - berrou, olhando para Lisa com cara de poucos amigos. - Às vezes pergunto-me porque nunca tivemos filhos, aí está a resposta! Para não passar por coisas destas! É por estas e por outras que um casal decide conscientemente viver sem crianças. Para ter paz de espírito! Mas nem assim, bolas! - deixou a mulher sozinha a tomar o pequeno almoço e saiu disparado para o quarto. - O João está a passar todas as marcas! Ainda o vou internar outra vez, e compulsivamente!! - gritou na direção da sala. - Sinceramente, e dá o meu número de telemóvel para o ir socorrer! Ele vai ver, vai ouví-las! - praguejava enquanto se vestia atabalhoadamente – Quase com 40 anos, caramba, um homem feito. - entrou novamente na sala, deu um beijo à mulher, que o observava com algum humor, pegou nas chaves e saiu, batendo a porta.



Então era assim que se sentiam os presos..., pensou, amargurado com a sensação de não saber o que iria acontecer. Por muito que pensasse, não compreendia porque ela tinha feito queixa de si à polícia. Era óbvio, mesmo na sua cabeça, que o seu comportamento era excêntrico, mas não se sentia criminoso, afinal só tratava do jardim, e da casa... sim, dormira lá um par de vezes, mas sem intenção de invadir nada, apenas se sentia bem ali, e inconscientemente desculpava-se por estar a ocupar a cama dela. Pensara várias vezes na hipótese de ela voltar de repente a Coimbra e o encontrar a babar a sua almofada... mas isso só o divertia, nunca pensou que fosse crime. Imaginara uma mulher que não existia, uma relação e intimidade que não eram a realidade. A realidade era aquela cela, aquele silêncio, o cheiro a bebedeiras mal curadas e cigarros. Estava na altura de aceitar a sua miserável condição de amnésico insatisfeito com a vida e resolver o que era possível resolver. Esquecer a quinta da Marta, talvez pudesse vender o seu apartamento e comprar para si mesmo uma casa com espaço, terreno, as suas próprias enxadas e regadores. Ainda não sabia o que fazer com a namorada, duvidava que ela quisesse viver ao estilo fazendeiro, mas isso seria um ponto de viragem, uma possível solução para aquela vida que não lhe dizia nada.

- João, o que aconteceu? - Nélia apareceu repentinamente, terminando abruptamente as suas teorias, visivelmente preocupada, o que o alegrou.

- Bem, acho que o meu trabalho de jardinagem não era propriamente legal... - explicou encavacado. Levantou-se e aceitou a mão que entrava fraternalmente pelas grades, era boa aquela sensação de que alguém se importava com ele.

- Mas já te disseram mais alguma coisa? Vais ficar aqui muito tempo? O Dr César está a conversar com o Comandante, acho que se conhecem, não te preocupes.

- Obrigada... e desculpa. - confessou, sentindo uma necessidade estranha de a abraçar. 

- Querido, o que importa agora é que saias daqui. - Aquela prisão tinha-a sobressaltado mais do que imaginara. Para além dos problemas logísticos que certamente teria com o namorado longe e apenas contactável em horas e dias determinados, tinha ficado preocupada com ele. Podia ser uma porcaria de homem, mas era tudo o que tinha.

  - Ainda não veio aqui ninguém falar comigo, sinceramente não faço ideia do que se vai passar... - esticou-se o mais que conseguiu e espremeu-se contra as grades, abraçando-a, consolando a sua amargura e medo. Isabel parecia diferente, mais doce e confortável com ele. Seria o facto de estar preso e vulnerável que a amolecia? Talvez, ela era uma mulher difícil, pouco carinhosa e distante, e aquele abraço era uma boa surpresa.

- Se quiseres vou lá falar com o guarda. Alguém tem de nos dizer alguma coisa! - Aquele momento cúmplice tinha de ser fechado com chave de ouro, pensou. Se não aproveitasse a vulnerabilidade dele ali, preso e amedrontado, perderia uma oportunidade brilhante de o conseguir agarrar emocionalmente. Olhou-o bem perto, não seria um sacrifício assim tão grande beijá-lo, passou-lhe a mão nos cabelos carinhosamente e ficou à espera que ele o fizesse. Estava na cara que ele a desejava naquele momento, e tal como ela pensara, João deu-lhe o beijo possível no meio das grades frias. Um beijo que podia amolece-la e transformar as suas intenções, pensou angustiada. Tentou libertar-se gentilmente, mas ele queria mais, sentiu, deixando-se levar. Conseguia perceber porque a outra tonta o amava, ele era irresistível quando estava empenhado em alguma coisa. Seria difícil pará-lo, se não estivessem barrados e talvez fosse isso o que a estivesse a excitar. Um calor começava a invadi-la, amolecendo-lhe os membros, que começavam a pender dormentes, enquanto João assumia a dominância, beijando-a com demasiada vontade. Não podia perder o controlo daquilo, pensou, logo perdendo o raciocínio outra vez. Queria-o preso a si, sem dúvida, mas sem gostar dele. Aquilo é que não podia estar a acontecer... separou-se ligeiramente dele a ofegar, engolindo em seco e fugindo com o olhar. João pegou-lhe gentilmente no queixo e tornou a apertá-la contra si, obrigando-a a esticar o momento. Não queria olhá-lo, era demasiado bonito assim apaixonado por si. Pela primeira vez sentira-se amada e era intenso.

- Então?... porque é que estás a chorar? - limpou-lhe uma lágrima que caía devagar pela cara de Isabel.

- Por nada... - fungou, tentando separar-se e fugir daqueles braços.

- Não te preocupes... não torno a magoar-te, prometo. - sentiu aquelas palavras verdadeiramente, beijando-a novamente. Aquela cumplicidade aquecia-lhe o peito quase tanto como quando abraçara Marta. Podia ser feliz, decidiu.


- É como lhe digo, Santos, o rapaz não é perigoso, apenas anda baralhado, e tem tido alguma dificuldade em recuperar a memória. Não há necessidade de formalizar a queixa, pois não?

- Eu não tenho intenção nenhuma de arrastar isto, já tenho processos que cheguem que nunca vão dar em nada. - confessou – Mas a proprietária fez queixa, só se ela desistir é que posso deixá-lo ir. - mentiu, tentando encontrar argumentos para a detenção.

- Eu acho estranho ela ter telefonado para a polícia, eles conhecem-se, isso não é nada típico da Isabel... - matutava em voz alta – Tens a certeza de que foi ela?

- Bem, não vais abrir a boca sobre isto, mas eu precipitei-me um bocado, digamos. - confessou, coçando a cabeça preocupado - Passei por cima de algumas etapas, para fazer o favor ao Fontes, o pai dela, - acrescentou – foi meu colega. Como não sabia de nada do que se estava a passar, nem conheço o João, pareceu-me apenas um pai preocupado com a integridade fisica da filha. Mas ela não formalizou a queixa, de facto...

- Ah, então está tudo resolvido. Eu falo com ela, não te preocupes. Tens a minha palavra de que ele nunca mais volta ao local do "crime". - disse com humor – Ele precisa é de retomar as consultas e passar uns tempos longe de Coimbra, desanuviar a cabeça. Afinal não fez nada de mal, concretamente.

- Quer dizer, invadiu uma casa sem autorização... - acrescentou com alguma preocupação.

- Pronto, mas já devolveu a chave, não foi? Eu mantenho-o afastado. Tens a minha palavra!

- Só não quero o Fontes a chatear-me porque soltei o rapaz. - confessou preocupado, enquanto eliminava os papéis na destruidora de papel, formalizando o fim do processo.

- A Isabel fala com o pai, eu certifico-me de que o faz. - sorriu, satisfeito com o poder de persuasão que o estatuto de antigos vizinhos de infância lhe dava ali no gabinete do Comandante da PSP. O João tinha muita sorte, pensou, se não fosse o Santos teria sido impossível resolver aquela salganhada sem tribunal nem advogados. - Posso ir lá vê-lo?

- Claro, vamos buscá-lo, sendo assim já não há motivo para ele estar preso... - suspirou, aliviado com menos um suspeito sob a sua alçada.

- Obrigado Santos, - deu-lhe uma leve palmada fraterna nas costas enquanto se encamihavam para o interior da esquadra – agora outra coisa, também recebeste aquele convite para o jantar dos antigos moradores do "Bairro"? Acho que desta vez vou, e levo a Lisa.

- Recebi, sim. Mas não devo levar companhia... - confessou abatido – A Manuela deixou-me.

- Deixou-te? Eh pá, não sabia... lamento. Mas isso foi há pouco tempo? Ainda noutro dia a Lisa me disse que a encontrou não sei onde e estiveram a tomar café. Não comentou nada disso...

- Pois, foi o mês passado... ainda nem acredito que ela teve coragem de cumprir as ameaças. - sorriu envergonhado, assumindo a culpa das suas fraquezas físicas. - As mulheres são tramadas... 

- Pois são... por isso é que eu nem sequer penso certas coisas, a Lisa lia-me logo os pensamentos e matava-me durante a noite. - brincou, desanuviando a conversa, mas agradecendo interiormente ser tão bem casado. Se tivesse vontade de trair a mulher sentir-se-ia um miserável, como o amigo lhe parecia naquele momento. - Pede-lhe desculpa e apanha juízo, já estás a ficar velho, pá! Já viste o que era teres de aturar uma daquelas? - sussurrou apontando para Nélia, que enlaçava o João como uma lapa. Sabia que um dia o João ia acabar por ceder, aquilo era muita mulher para não se reparar.

O Comandante olhou-o com humor, era de facto perigoso haver mulheres daquelas. Devia ser crime usar roupas sugestivas com um físico daqueles. - Já não tinha capacidade para isto... - gozou – Sr João Marques, vai ser solto, afinal houve uma desistência da queixa. - mentiu, abrindo a porta – Está tudo resolvido, mas está proibido de se aproximar da quinta da D. Isabel Fontes Pereira e Castro. 

- Sim, claro. Obrigado. - deu a mão a Isabel, sorrindo-lhe, esperançoso com aquele recomeço e súbita liberdade, depois de algumas horas de medo. Isabel Fontes Pereira e Castro... registou o nome na memória, mais tarde iria pesquisar sobre aquele nome tão pomposo. Mas antes, queria chegar a casa depressa e aproveitar o presente. Acabava de ter uma nova oportunidade de ser amado e amar.


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(imagem, internet)

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