quarta-feira, 9 de setembro de 2020

"A Mala Vermelha" - Final




 - De quarentena?! - Salvador explodiu a rir com os lamentos de João, que lhe confidenciava as exigências de Isabel depois de ele ter voltado do Gerês e terem reatado a relação interrompida pelos acontecimentos dramáticos.

- Mais alto, que ali ao fundo ainda não perceberam... - resmungou, meio dividido entre a vontade de rir e o amuo. - Há uma semana que me anda a pôr doido... e não desiste dessa ideia. Estou aqui, estou a ser preso por violação consumada ao mais alto nível! - engoliu o resto do fino de um trago, sorrindo no final, induzido pelas gargalhadas do amigo que já limpava os cantos dos olhos de chorar a rir.

- E a louraça? Nunca mais a viste? - perguntou respirando fundo e tentando acalmar a risota.

- Claro que vi, foi um escândalo... apareceu-me lá no apartamento, histérica e pronta a matar. - explicou - A minha sorte é que a Isabel tinha ido dar aulas e não estava, senão, em vez de quarentena era ano sabático! - comentou, com um ar genuinamente preocupado. - Fui levá-la a casa da tia, a Rosário, que ficou destroçada, coitada da mulher. Tem ali muito com que se preocupar. Eu devia era ter ido à polícia fazer queixa da tipa, mas a Isabel pediu-me para não o fazer. Assim acabou de vez a história e pronto. - resumiu, pedindo mais um fino num gesto.

- Ah pois, nunca mais te livravas desse fantasma, a Isabel tem razão. - comentou entregando a bebida a João. - Agora não afogues as carências físicas no álcool!, bebe devagar que já vais no quarto. 

- Não é nada disso... - bufou constrangido - Estou a ganhar coragem para fazer uma coisa mais logo, quando a Isabel chegar. - confessou, tirando do bolso uma caixa pequena.

- E vais pedi-la em casamento aqui no bar? Isso não é nada romântico, pá! - insurgiu-se Salvador, chocado com aquela insensibilidade.

- Achas? Eu tinha preparado um discurso e tudo... - gozou - Claro que não vai ser aqui!, já tenho tudo pensado. Durante a festa de anos vou fingir que tenho a prenda dela em casa, o que na realidade é verdade, só que não é uma prenda física, é o pedido. A Lisa está a ajudar-me e já lá deve estar a preparar o cenário romântico. Eu disse-lhe para não se poupar, queria mesmo uma coisa exagerada, já não aguento mais dormir com uma almofada entre nós os dois...

- Portanto, a prenda és tu que a recebes?, Está certo, isso é tão romântico que até eu já me estou a apaixonar por ti! - gozou.

- Menino, vou-lhe dar presentes a noite toda, se ela aceitar o pedido, claro. - acrescentou, já a duvidar do seu esquema infalível. - Salvador, pára de me colocar macaquinhos na cabeça. Tu não a conheces. Tenho de a surpreender de forma excêntrica, para ela ceder da sua teimosia. Eu sei que anda a esforçar-se por não quebrar o “celibato pascal”, também tem sofrido, mas quer marcar uma posição. E eu acho sinceramente que está à espera do pedido, ela não liga nenhuma a prendas, das que as mulheres normalmente gostam. Tem de ser “tchanam!” - exibiu um sorriso orgulhoso nas suas intenções.

- Bem, tu lá sabes. Mas eu, no teu lugar, arranjava uma mala ou uma echarpe só em caso de o plano A não funcionar. - opinou sabedor.

- Olha, ela vem aí. Agora cala-te. - João ficou sentado a admirá-la, enquanto Isabel cumprimentava Janota, e uma ponta de ciúmes abrasou-o, terminando o fino fresco de uma assentada. O segurança parecia conformado com a amizade que ela lhe reservava, mas João conseguia ver nos olhos do gigante a mágoa de um homem não correspondido. Era notória a frustração, mesmo que bastante dissimulada. Era a sua pequena vingança pessoal, nunca lhe conseguiria bater a ponto de o magoar, bem pelo contrário, por isso gozava secretamente da vantagem que tinha em ser o escolhido dela. Levantou-se quando ela chegou perto dele e Janota desapareceu dos seus pensamentos. Toda aquela energia sexual reprimida subia-lhe à cabeça como fogo de artifício e cegava-o. João sabia que Isabel fazia de propósito, para o ter na mão, mas ele adorava ser o seu fantoche. Agarrou-a e beijou-a de tal forma que se fosse necessário iria com ela para os lavabos, como dois adolescentes no pico das hormonas.

- Ó Isabel, por favor, olha que o homem rebenta! - gozou Salvador, expondo as confidências do amigo.

- Olá, então, somos os primeiros? - perguntou, libertando-se dele e sentindo a cabeça à roda. Sexo tântrico era uma disciplina exigente e difícil, que apenas com muita prática se conseguia dominar. Iria aguentar aquilo só enquanto João não lhe parecesse magoado. Mas estranhamente ele parecia andar entusiasmado com os travões que ela lhe punha, o que a intrigava durante horas, enquanto não conseguia adormecer a senti-lo em alerta à espera de um movimento em falso que denunciasse o fim da lei seca. Não queria ser cruel, apenas dar uns dias para que estabilizassem e recomeçassem tudo sem a lembrança de Nélia ainda fresca na memória. 

- O César e a Lisa devem estar mesmo a chegar. - respondeu, olhando-a apaixonado - Estás muito bonita. - sussurrou-lhe ao ouvido.

- Obrigada, também estás muito bonito. - respondeu-lhe de volta, na mesma moeda, certa de que ele ficaria muito mais incomodado com um bafo quente junto ao ouvido.

- Olhem, até eu já estou a ficar com os calores, por favor, não nos martirizem mais. Acabem lá com isso e voltem a ser pessoas normais, pode ser? - rugiu Salvador, afastando-se do casal que se espremia um no outro junto ao balcão.

- 30 anos... estás oficialmente a ficar no ponto! - brincou, sentando-se e puxando-a para perto de si.

- Velha, queres tu dizer!, - resmungou, afastando-se e sentando-se no banco ao lado - Mas ok, ainda me falta 10 para ficar acabada, ainda há tempo. - sorriu-lhe feliz como já não se sentia há muito tempo. João estava com um brilho nos olhos diferente, misterioso. - O que foi? Porque é que me estás a olhar assim?

- Amo-te, sabias?

- Sim. - conseguiu dizer, depois de alguns segundos de paralisia vocal. Ele desmontava-a com uma facilidade que a deixava incapaz de pensar.

César e Elisabete chegaram interrompendo o momento e transformando-o na festa de aniversário que realmente deveria estar a acontecer, acalmando os ânimos com a serenidade madura que os caracterizava. Só Elisabete transparecia uma leve excitação quando João cruzava o olhar com o dela, garantindo-lhe em linguagem muda que tudo estava pronto para a surpresa final.

- Permitam-me que diga umas palavrinhas, enquanto todos estamos sóbrios e capazes de testemunhar no futuro, se necessário! - gracejou, colocando-se de pé e abraçando Isabel, ligeiramente desconfortável com declarações públicas. - O ano que passou foi um dos melhores e piores da minha vida, encontrei o amor da minha vida e perdi-o, e os pormenores vocês todos já sabem. - despachou, com pressa para chegar à parte importante - Mas o mais incrível de tudo o que vivi foi a descoberta de que o João não existia na realidade. Nunca fui psiquiatra, nem mulherengo, muito menos um ricalhaço cheio de mordomias. O meu nome é João, mas sou jardineiro a aprender agricultura, só amo a Isabel e gosto de casas pequenas e de madeira. Desculpa, querida, se te desiludi. - brincou, olhando-a - Nunca foi minha intenção enganar-te. E agora que já me confessei, queria agradecer-vos a todos o que fizeram por mim e pela Isabel, nunca vos vou conseguir pagar a amizade que nos dedicaram. - levantou a cerveja em gesto de brinde - Mas, e agora vem o mais importante, - disse, com um tom misterioso que deixou Isabel ligeiramente ansiosa. Tinha a sensação de que ele andava a tramar alguma, e secretamente desejava que fosse um pedido de casamento para acabarem de vez com o celibato - A minha Isabel faz hoje anos, e é a ela que devemos fazer o verdadeiro brinde! Parabéns amor! - beijou-a, deixando-a ligeiramente frustrada. Tinha sido a altura ideal, ali junta de todos os amigos, para lhe fazer a proposta romântica, pensou abatida. Porque deixava ele arrastar aquele sofrimento físico?

A noite já ia longa, quando João se decidiu a ir para casa com Isabel, que desfalecia de sono. Dançaram quase até já não sentirem os pés, num frenesim de festejo que não combinava com aquilo que Isabel sentia, depois do brinde. Não podia dizer que estava triste, João dedicara-se toda a noite a adorá-la de todas as formas e feitios, mas o corpo pedia cama e descanso, para conseguir absorver a frustração de ter pensado que ele não queria casar. Talvez esse fosse o limite dele, depois de tudo o que tinha vivido com a morte do irmão, da mãe e depois da primeira mulher. Isabel era uma romântica, no fundo imaginava-se a vestir-se de branco e casar com um príncipe, para apagar finalmente da memória o seu casamento com o demónio. Dizer que sim a João era o seu desejo mais profundo, mas nunca lho diria. No caminho para casa pouco falou, fingindo-se dormitar, mas os seus pensamentos giravam e traziam-lhe dúvidas que não facilitariam o resto da noite. Estava implícito que acabaria naquele dia o celibato, mas Isabel não se sentia propriamente excitada com isso, o que a deixava receosa de o magoar. O carro parou e João saiu, pensando que ela dormia, abriu a porta do lado de Isabel devagar e chamou-a, ajudando-a a sair, com um abraço que a fez amolecer ainda mais.

- Estás muito cansada? - perguntou-lhe, ansioso com o que tinha ainda por fazer. Sabia que ela estava desiludida com o seu discurso, conhecia-a bem, e custara-lhe não revelar a surpresa que a esperava.

- Hum, hum... - Isabel abriu os olhos, caminhando abraçada a João, quando este parou à entrada da casa, e ligou as luzes do alpendre, que abriram uma fiada de gambiarras que iluminaram o espaço, transformando-o num local idílico.

- Isabel... ainda falta a minha prenda. - sussurrou-lhe ao ouvido de forma sensual, acordando todas as células do corpo dela. - Precisas de estar acordada... - respirou-lhe desde o ouvido até à boca, beijando-a com intenção e sentindo-a a desfalecer, pronta. Olhou-a. - Nunca tive tanta vontade de fazer isto, e tenho aguentado até hoje, para que este fosse o teu momento. - tirou a caixa do bolso e mostrou-lhe um anel simples, com uma beleza igual à dela, verdadeira - Isabel, queres casar comigo? Ter filhos comigo? Ou cães, ou o que gostares mais?

Isabel olhava-o sem falar, completamente rendida ao romantismo delicioso dele, do qual duvidara horas antes, a sentir um calor que subia e descia do chakra Muladhara ao Anahata, numa espiral de prazer quase idêntico ao orgasmo. Seria quilo possível? 

- Isabel... não dizes nada? - perguntou confuso com o ar de prazer dela e o silêncio. Percebeu que algo se passava dentro dela, algo estranho, e abriu a porta, puxando-a levemente para dentro de casa, orientando-a em transe até à sala de prática. Fechou a porta, num impulso, selando-os naquele local espiritual, colocou as luzes em modo baixo e levou-a até ao centro da sala. Os olhos de Isabel emitiam um brilho que já tinha visto antes, e como ela parecia noutra dimensão, decidiu ouvir a sua intuição e não esperar por ordens. Despiu-se totalmente, despiu-a a seguir, sem pressas, beijando-a em todos os locais possíveis e imaginários, e deitou-a, ficando a pairar por cima dela, que continuava em transe, como se apenas ali estivesse o corpo, que o reclamava cada vez mais. João esperou que Isabel voltasse, e assim que percebeu nos olhos dela que chegara o momento, consumou a união entre os dois.

Milhares de estrelas rodopiavam à volta dos dois, soprando cânticos de louvor e êxtase, enquanto Isabel atingia o clímax e o chakra Sahastrara abria um feixe de várias cores em direção ao céu. Chegara, finalmente, pensou, sentindo-se ainda a levitar, com a respiração violenta a normalizar. Recuperou a visão, e João olhava-a divertido, com um sorriso vitorioso, como se sentisse orgulhoso de qualquer coisa. 

- Isto foi um sim? 


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