terça-feira, 1 de setembro de 2020

"A Mala Vermelha" - Capítulo 21




 - Mas o que foi que aconteceu com o meu namorado? - berrou Nélia descontrolada ao se aperceber que João estava sob o efeito de calmantes e não poderia assinar o papel que tinha trazido do banco para conseguir ter acesso à conta do médico, como tinham combinado.

- O paciente teve um episódio grave de ansiedade durante a manhã, esteve agitado toda a noite e foi necessário medicá-lo para ele descansar. - explicou sem sequer a olhar – Acho que por hoje já não será benéfico mais visitas, ele não deve acordar tão cedo. - lamentava aquela recaída no amigo, mas o ar desiludido e furioso da bisca dava-lhe um certo gozo. Alguma ela devia andar a tramar, para ficar tão decepcionada com o facto de João estar inconsciente.

- O Sr acha-se muito esperto, não é? - disse, com o dedo espetado na direção da cara do diretor da especialidade – Sabia que ele ia assinar hoje os papéis do banco e drogou-o para ele ficar incapaz! - berrou, sem medir o tom de voz ou se importar com quem pudesse ouvir.

- Menina, não fazia ideia de que tinha papéis para assinar, mas ainda bem que o paciente está adormecido, não sei se esses documentos seriam benéficos para ele. - esclareceu, sorrindo – Mas ainda bem que falou nisso, há aqui algumas regras que deveria saber, uma, é que o paciente não se encontra capaz de assinar nada, ele não se recorda de nada, a assinatura é por isso considerada invália oficialmente, enquanto eu não lhe der alta. Outra regra é que eu estou a perder a paciência consigo, e mais uma piadinha destas e proíbo-a de visitar o paciente. Terei de explicar ao João o porquê, mas não é só a menina que sabe mentir. Ou dá meia dúzia de passos atrás nas suas intenções, ou acaba aqui esta palhaçada. - agarrou-lhe no dedo que continuava na sua direção e baixou-o, sem desviar o olhar do dela, que lançava faíscas de ódio. - Agora, se nos faz a todos um grande favor, retire-se e volte amanhã. - agarrou-lhe no braço e fez questão de a encaminhar até à porta, fechando-a sem culpas na cara de Nélia, espantada com a ousadia do médico. Deu uma olhadela à enfermeira que fingia estar ocupada com a tensão arterial do paciente e sorriu-lhe comprometido.

- Eu não ouvi nada, Sr Dr. - descansou-o, arrumando o aparelho medidor de tensão arterial.

- Obrigado Helena. 



Isabel perdia-se nos seus tristes pensamentos, enquanto afagava o pequeno Filipe que dormia profundamente no seu colo. Olhava para a janela da sala, de onde se podia ver parte do jardim e ao fundo o tanque, onde tantas vezes se lamentara e dissera impropérios alto e bom som, nos seus queixumes pessoais de pouca sorte quando lavava roupa à mão com água fria. Um leve sorriso nostálgico surgiu-lhe, quando relembrava Filipe, o primeiro, a saltitar em volta dela, nos dias de calor, à espera que uma ou outra gota de água fresca "voassem" para ele caçar. Como eram fáceis esses tempos, como tinham sido felizes naqueles cinco anos, antes de aparecer João, e reaparecer Tiago... Seria quase impossível esquecer o ex-marido, aquilo que tinha sofrido, mas mais difícil seria esquecer como João sabia amá-la, física e psicologicamente. Todo o seu corpo se arrepiou ao imaginá-lo novamente a entrar pela sua casa a dentro, sorridente, a invadir todo o seu espaço de sons e alegria. Ironicamente, ele é que era o doente com depressão, quem deveria precisar de ânimo, mas para ela sempre fora o contrário. A sua vida tinha sido colocada em pausa, depois de fugir de Castelo Branco, estava em banho-maria até o conhecer. O estado zen em que vivera sempre a satisfizera plenamente, à medida que as feridas de Tiago iam sarando devagar e Isabel recuperava a sua fé no futuro. João entrou-lhe pelo portão da quinta a dentro e a Marta viu aí a sua oportunidade de sair de cena. O que ela não esperava é que tudo voltasse aos tempos do casamento, que aquelas sensações de medo regressassem, e a assombrassem de novo. Muitas vezes se mantivera ali naquele cadeirão, onde João gostava de se sentar, com Filipe no colo, em compasso de espera, a olhar o jardim, na esperança de que ele aparecesse. Se o cão levantava uma orelha e denunciava algum som estranho rezava para que não fosse apenas o Janota, ou a Elisabete, sentindo-se péssima logo depois, por perceber como era ingrata com aqueles dois amigos, sempre presentes para a animar. Mas quem ela queria mesmo era ele... e isso só confidenciava a Filipe. O cão levantou a cabeça de repente, olhou a porta e saltou-lhe do colo, abanando-se até à porta, excitado. Isabel sentiu novamente aquela bolha de esperança, mas ao contrário dos primeiros tempos, afastou-a do peito e levantou-se, caminhando até Filipe e abrindo a porta a Janota, que a visitava diária e religiosamente antes de ir trabalhar, trazendo-lhe alguma normalidade ao dia longo e tristonho.



- Olá, então? Apanhaste trânsito? - questionou Salvador, espantado com o atraso do colega e amigo segurança, sempre cumpridor das suas tarefas e escrupuloso nos seus horários.

- Não, desculpa, devia ter-te avisado, mas quando tentei ligar vi que tinha o telemóvel sem bateria. - explicou-se, meio encavacado com a sensação de estar a falhar, coisa que detestava – Fiquei mais um pouco com a Isabel, ela precisava de uma lenha mais miúda para acender a lareira, e eu estive a cortar e distraí-me com as horas. Já ligaste as câmaras? Hoje vai ser outra daquelas noites, não é? Vou trocar-me. - disse, deixando Salvador sem tempo para lhe responder.

- Hum, hum... parece-me é que eu sou o único aqui que não acho piada à vida do campo... - ironizou, lamentando que o segurança estivesse demasiado apegado à amiga em comum. Ainda se ia magoar, e com um corpanzil daqueles, teria muita massa corporal para sarar. Precisava de o abordar, delicadamente claro, sobre o facto de ele estar a apaixonar-se pela Isabel e pela ideia de ser o macho alfa da quinta, o protector da frágil donzela, que todos os dias parecia precisar de algo diferente, não que ela o pedisse, sabia-o, mas que Janota inventava para justificar as suas idas diárias a casa de Isabel. Aquilo ainda ia dar porcaria, quando João acordasse do estado desmemoriado e reclamasse a mulher, ela iria a correr para ele e o segurança ficava sem tarefas para ocupar os dias, para além de um grande desgosto e desilusão. Tirou um fino e bebeu-o quase de um gole, na tentativa de ganhar coragem para a conversa difícil mas necessária. Janota surgiu ao fundo da sala bem animado e enérgico, com uma daquelas t-shirts pequenas e justas que lhe acentuavam sempre os argumentos em qualquer discussão. Imaginou como seria levar um murro daqueles braços e a ideia tirou-lhe logo o rancor de se meter nos assuntos dos outros. Ainda não era a hora de o aborrecer, e o rapaz andava tão satisfeito... pensou cobardemente, sorrindo-lhe de longe. Guardaria a conversa para uma outra altura, ele já era grandinho o suficiente para saber no que se estava a meter...



João lia um jornal para distrair a cabeça, já começava a ficar farto daquele quarto. Há alguns dias que se sentia plenamente restabelecido, e não entendia as reservas do médico em deixá-lo ir para casa. Mesmo que não recuperasse a memória, tinha ainda que continuar a sua vida, e ali fechado seria bem mais difícil. Fechou o jornal aborrecido, não lhe interessava nenhuma daquelas notícias, queria era passear, ver coisas, apanhar sol, conhecer a sua casa e as suas recordações por lá espalhadas. A enfermeira entrou naquele momento com o jantar, sempre profissional e sorridente, poisando-o na mesa, juntamente com os comprimidos da noite e começou a sua rotina de check up.

- Sente-se bem? Algum desconforto? Quer algum outro jornal... um livro...?

- Sim, queria. - disse, lembrando-se de algo – Será que conseguia trazer-me o meu telemóvel? Eu devia ter um certo?

- Bem... eu não sei se o Dr César iria concordar. - disse meio confusa com aquele pedido.

- Porquê? Já me disseram que terei alta nos próximos dias. E terão de me devolver o telemóvel. Não acha que tenho o direito de ter curiosidade?

- Sim, claro. Mas em todo o caso, certamente que o aparelho está desligado, sem bateria. Já não é utilizado há tanto tempo...

- Pronto, então não é preciso ter receios. Traga-me o telefone ainda hoje, por favor. - um certo autoritarismo surgiu-lhe na voz, surpreendendo-o, talvez aquele fosse um hábito antigo, dar ordens. Parecia ter resultado, a enfermeira saiu do quarto meio espantada, como se fosse sua secretária particular. Já tinha pensado como fazer relativamente ao carregamento da bateria do telemóvel. Tinha conversado com um outro paciente numa das tardes de jogos de damas, e o rapaz tinha comentado com ele que possuía um carregador dos chineses que dava para todos os aparelhos. Vangloriara-se daquilo durante todo o jogo, ao ponto de João se vir embora aborrecido com a conversa amalucada, e afinal ainda ia dar jeito, pensou satisfeito. Talvez houvesse pormenores interessantes nas mensagens, estava curioso por ver o que conseguiria descobrir. Só esperava não ter o telefone bloqueado com códigos... pois não se lembrava nem tinha forma de o conseguir.

A enfermeira entrou momentos depois, mais rapidamente do que João previra, e deu-lhe o aparelho moderno meio contrariada. Notava-se que não tinha a certeza de estar a tomar a decisão certa.

- Obrigada. É de facto um telemóvel muito bonito! - agradeceu, olhando-o de várias perspectivas. - Prometo que só o ligo quando o César me deixar, e também não tenho cá o carregador, não fique preocupada. - sossegou-a, sorrindo-lhe.

- Ok, uma boa noite então, já mando vir recolher o seu tabuleiro. - retirou-se mais descansada. Se o chefe lhe cobrasse aquilo estava tramada.

João esperou alguns momentos que o caminho ficasse livre, aproveitou para engolir a sopa rapidamente e deu duas garfadas rápidas na vitela assada, excitado com a possibilidade de descobrir alguma coisa sobre si. Engoliu um dos comprimidos e o soporífero guardou-o no bolso do robe, para não adormecer antes de concretizar o seu plano. 



- Senta! - ordenou com voz firme. - Lindo menino! - atirou-lhe um biscoito e voltou-se assustada ao ouvir o som de notificação de mensagens do telemóvel, que estava quase sempre em silêncio. - Espera Filipe, deixa-me ver quem é... - uma sensação de medo invadiu-a, recordando-se da mensagem de Tiago, e a imagem horrenda do cão. Pegou no telemóvel e ficou em apneia ao ver o nome de João no remetente do sms. Que brincadeira estúpida era aquela? As mãos tremiam-lhe, sem coragem para abrir a mensagem, e duas lágrimas caíram-lhe, largando o aparelho e fugindo da sala, cobardemente. Seria a Nélia a gozar com ela? Só podia, João não tinha acesso ao telemóvel há semanas, raciocinava. Mas porque é que não a deixavam em paz?

João limpava o suor da palma das mãos nas calças do pijama, excitado com aquela descoberta. Não tinha qualquer conversa gravada com o número de telefone da Isabel, e estranhamente estava não atribuído, mas uma tal de "Ganesha" mandava-lhe fotos maravilhosas de umas pernas, e rira-se bastante tempo com a conversa que lera. Num acesso de coragem, e porque não tinha nada a perder, mandara uma mensagem de volta a dizer "Olá", na esperança de que aquela pessoa respondesse de volta e ele conseguisse perceber de quem se tratava. Os minutos passavam dificilmente, desesperando-o, acedeu à internet e procurou o significado de ganesha, ficando ainda mais confuso com os resultados. Um elefante hindú? 



- Olá vizinha! Tudo bem?

- Olá... como está? - disse a contragosto, aborrecida com o facto de ter de dar conversa à chata da mulher que falava sempre pelos cotovelos.

- Então o nosso Dr? Ainda está sem memória? - perguntou Elisabete dissimulada, afagando o braço de Nélia.

- Sim, mas a melhorar. Qualquer dia volta para casa. - olhou o relógio a fingir pressa para ir a qualquer lado e se poder livrar do questionário.

- Desculpe,... eh, - deu a entender que já não se recordava do nome.

- Isabel... - grunhiu incomodada.

- Isso! Desculpe, Isabel, deve estar com pressa para ir visitar o namorado, claro. Mande-lhe os meus cumprimentos, e as melhoras! E um bom dia para si também.

- Obrigados, adeus. - soltou-se da mulher e dirigiu-se o mais depressa que podia para o carro.

- "Obrigados"... - bufou Elisabete com escárnio. Não gostava nada de sentir desprezo pelas pessoas, mas aquela tipa era mesmo uma ordinária da pior espécie, matutava, enquanto se encaminhava para o prédio do lado. Se já se tinha visto, uma bronca daquelas achar que alguma vez o João podia gostar dela, ou sequer viver com ela... Tinha de ir arranjar-se para a sua aula de yoga e tentar descobrir se a Isabel, a verdadeira, comentou consigo mesma, ainda continuava imune ao charme do segurança matulão. Ela não conseguia perceber como isso era possível, Janota era um homem impressionante e dava imenso jeito ali pela quinta. Sorriu com os seus devaneios de meia idade, ao imaginar-se no alpendre a debitar ordens ao musculado, que partia lenha obedientemente, e ainda lhe sorria de volta apaixonado. Abriu a porta do prédio com um sorriso palerma no rosto e ao ver o seu reflexo na porta de vidro corou ligeiramente com os seus pensamentos. Ai se o César sonhasse... Entrou em casa e deu de caras com o marido ainda de robe, todo desgrenhado e de olheiras, com um aspecto miserável de barba por fazer.

- A minha investigadora privada já tem novidades? - brincou, sentando-se à mesa do pequeno almoço.

- A tua sorte é seres sempre um galanteador, senão ias ver! - gozou, lançando-lhe um beijo de longe e continuando o seu caminho até ao quarto, sem conseguir parar de sorrir. Duvidava que o matulão, quando chegasse à idade do marido fosse assim tão encantador. Os esteróides deviam dar-lhe cabo da inteligência, e homem velho e burro é que não! 




- Bom dia, amor! Estás pronto para voltar para casa? - ronronou Nélia ao entrar no quarto, fingindo-se emocionada.

- Mas... é hoje? - perguntou ansioso. - Ninguém me disse nada... - confessou meio desiludido com o facto de ninguém o ter avisado. Sentia-se de mau humor e irascível, e aquela ida repentina para casa não o punha mais calmo.

- Devias estar a pular de alegria! - sentenciou – Afinal, vamos recuperar este tempo perdido, viajar, fazer compras, ir jantar fora a sítios elegantes... - o seu imaginário não parava, só com as possibilidades que aquele namorado lhe trazia.

- Desculpa Isabel, claro que estou entusiasmado, só que não me apercebi que era já hoje, apanhaste-me de surpresa. - explicou, começando a ajudar na arrumação das poucas coisas pessoais que tinha no quarto e na casa de banho. Isabel deu-lhe uma roupa lavada trazida de casa e apressou-o a ir fazer a sua higiene matinal. - Ainda vou demorar, se quiseres podes ir ao bar da clínica beber café... - sugeriu João desejoso que aquela companhia saísse dali e o deixasse sozinho. Não percebia porquê, mas aquela namorada era sempre estranha e inconveniente. Baralhava-o muito o facto de não ter qualquer sentimento positivo quando ela estava por perto. Isabel saiu e João tornou a pegar no telemóvel, sentia-se bastante frustrado por ainda não ter recebido nenhuma resposta do sms enviado à "ganesha" na noite anterior. Sabia que era também isso que o punha de tão mau humor, aquela centelha de esperança de que houvesse uma mulher com pernas bonitas e sentido de humor à espera de um contacto dele esfumava-se e a sensação de vazio crescia, bem como um leve desespero ao imaginar-se numa casa com Isabel. Ainda não descobrira nada de positivo e excitante no seu passado recente que não conseguia recordar, e algo dentro de si se recusava a aceitar que aquela era a sua namorada. Tudo isso misturado com a culpa que aqueles sentimentos lhe provocavam tornavam o regresso à vida normal num martírio. 

Antes de entrar no banho tornou a mandar um sms ao contacto misterioso em acto de desespero, fosse o que Deus quisesse. "Olá, preciso de saber quem és". Esperou alguns minutos por uma resposta e desistiu, ainda mais amargurado com a sua realidade. Tinha de se deixar de palermices românticas e admitir a verdade, tinha uma namorada bonita, sem nada na cabeça, mas haveria com toda a certeza um motivo para a ter escolhido e viverem juntos. Poisou o telemóvel e entrou no banho. 

Isabel sobressaltou-se novamente com o som do aparelho, cerimoniosamente poisado desde a noite anterior do seu lado esquerdo da cama, como uma presença simbólica de João durante a noite. Não percebia porque estava tão reticente em responder à mensagem, pensara nisso até adormecer de cansaço, com algumas tentativas escritas de resposta, mas que acabava sempre por apagar antes de carregar no "enviar". E se não fosse ele?, e se fosse?, qualquer uma das hipóteses a destabilizava, causava-lhe arritmias, suores frios e palpitações. Mas agora ali estava novamente uma mensagem "Olá, preciso de saber quem és"... Tão suplicante quanto a sua vontade de lhe ligar de volta. Filipe saltou para cima da cama e deitou-se perto do telemóvel, a olhá-lo com desconfiança, não entendia porque a dona suspirava com aquilo na mão, fez uns sons guturais e abanou a cauda com entusiasmo, olhando alternadamente para Isabel e para o telefone. - Achas que devo responder? - perguntou ao cão, que ladrou nesse exato momento como que a dizer-lhe que sim. - Bem... se tu achas, e tens um sexto sentido, eu vou arriscar. Se for a tal Nélia a tentar por-me louca destruo o telefone e pronto. Anda cá, - pegou no pequeno cão e sentou-o no seu colo, à medida que ia escrevendo alguma coisa que lhe parecesse adequada – Não me deixes sozinha agora, vamos ver se é o meu João ou não. - carregou no enviar e tapou-se com os lençóis por cima da cabeça. Não queria que nada a visse corar de raiva e desespero quando chegasse à conclusão de que estava a ser gozada pela "outra".



Entraram em casa de João e Nélia esforçou-se por tornar aquela presença masculina o mais natural possível para si mesma. Tinha estado algum tempo a viver ali sozinha, já construíra uma Isabel sofisticada e rica na sua cabeça e adorava aquele seu apartamento chique, mas só para si. Agora que o dono regressava à casa teria de se mentalizar de que o seu pequeno filme teria outras personagens e já nem tudo estava sob o seu controlo.

- Não imaginava a minha casa nada assim... - confessou meio desiludido, ao analisar por alto a sala e a cozinha. - Sempre pensei que fosse mais acolhedor.

- O que te apetece comer? Mando vir qualquer coisa num instante. - apressou-se a dizer, ignorando os lamentos dele, não estava com a mínima pachorra para conversas filosóficas. Tinha fome e já passava bastante da hora de almoço.

- Qualquer coisa, tanto faz. - respondeu, deixando-a ficar sozinha na sala a tratar do "comer", e aproveitando para analisar o resto da casa em paz. Bastava uma distância dela para se sentir logo mais calmo, constatou taciturno. O telemóvel vibrou e um arrepio na barriga percorreu-o, deixando-o meio dormente no baixo ventre. Só podia ser "ela". Esquivou-se educadamente para a casa de banho mais distante que encontrou na casa, a do quarto principal, que pela lógica seria o seu e trancou a porta. Sentou-se na sanita com as mãos a suarem e abriu a mensagem engolindo em seco. "Olá, sou a Ganesha, como te sentes?", leu várias vezes, respirando fundo com aquele contacto de quem já tinha perdido a esperança. Porque não dizia ela um nome normal... perguntava-se ansioso, mas levemente excitado com o suspense da situação. Teria de lhe devolver o sms de forma a que a conversa se prolongasse. Olhou em volta e deu consigo a imaginar-se a tomar banho com uma mulher que apenas lhe aparecia de costas na sua imaginação. Não lhe conseguia dar um rosto, mas a silhueta era quase palpável. Seria aquilo só imaginação? Olhou para o aparelho na mãos e pigarreou – Vamos a isto... "Sinto-me bem, confuso, não conheço nenhuma Ganesha. Qual é o teu nome verdadeiro?" - carregou no enviar e continuou o seu pequeno filme erótico imaginário, concentrando-se no poliban moderno, e no seu banho a dois. Percorria-a com as mãos, explorando as curvas suaves e naturais do seu copo de mulher, tão simples comparado com a volúptia que já percebera debaixo da roupa insinuante da sua namorada espampanante. Estranhamente mais cativante, natural, sem pretenciosismos nem melhoramentos artificiais. Simplesmente mulher, pequena, delgada, de cabelos castanhos, mãos finas que lhe agarravam possessivamente nos cabelos, encostou-a à parede, cada vez mais enlouquecido com o seu corpo, e ela respondia-lhe com a mesma ânsia, tentado subir-lhe para as ancas, levantou-a em peso e olhou-a profundamente, penetrando-a o mais devagar que conseguia. Tentou ver-lhe a cara, mas o êxtase que sentia não o deixava pensar claramente, só queria fazê-la perceber o quanto a amava, e sentir aquele amor de volta. Apertava-a com força, como se toda a sua vida dependesse daquele orgasmo eminente, tão perto e intenso, quando a porta sofreu um abanão e Isabel o trouxe à realidade como se alguém lhe desse um murro no estômago e o acordasse daquele sonho.

-João?! Queres molho agridoce? - esganiçou-se Nélia do outro lado da porta trancada.

- Não... - bufou, frustrado com o choque do coito interrompido.

- Sem molho agridoce, por favor. Sim, para ontem! - ralhou ao telefone, afastando-se novamente para a sala.

João encostou-se na parede e respirou fundo, olhou o telefone e nesse mesmo instante recebeu outra mensagem, colocando-se logo em sentido e limpando novamente as palmas das mãos suadas às calças. "Confuso porquê? Para ti sou a Ganesha. Não precisas de saber mais... por agora" Sorriu de orelha a orelha, aquilo era ainda mais excitante que a foto das pernas da mulher mistério que já tinha visto milhares de vezes desde o dia anterior. Aquela mulher devia conhecê-lo, tinha toda a certeza, só podia estar a fazer de propósito com aquele mistério todo. Mais um bocado e tinha de tomar um banho de água fria, pensou divertido. "Ah... mas depois da foto que aqui descobri eu QUERO que me digas mais... (por favor?)", enviou e bebeu água da torneira do lavatório, para se acalmar. Saiu da casa de banho, foi espreitar a namorada e certificou-se de que a mesma estava distraída e não achava estranho ele ainda não ter aparecido na sala. Disse-lhe que ia tomar um banho, mais um..., vestir uma roupa mais confortável e trancou-se  novamente na casa de banho. Despiu-se rapidamente e exibiu orgulhoso toda a sua excitação ao espelho, sentindo-se bem animado com a vida, pela primeira vez há muito tempo. Uma leve culpa de estar a trair a namorada tentava entrar na sua cabeça, mas João não se sentia minimamente ligado à mulher que batia portas na cozinha. No fundo, e para sua desculpa interna, ele nem a conhecia. Mas a Ganesha era diferente, trazia-lhe uma sensação de paixão que o fazia querer ser solteiro, livre e desimpedido. Não podia ser coincidência. Se ele tinha uma amante hindú teria de haver um motivo muito forte, e a Isabel tinha de ter defeitos que o levassem a olhar para outra, dizia a si mesmo. Entrou no banho, sempre de olho no telefone, tornou a imaginar aquele corpo junto ao seu, tão sedoso, a escorregar facilmente no seu, a espuma a cair devagar pelas curvas suaves, a beijar-lhe as nádegas... o telemóvel apitou e João tirou o sabão rapidamente, secando-se a seguir atabalhoadamente, só o suficiente para não estragar o telefone. "Se pedes assim, com tanta educação... Já estás em casa?" um arrepio fez-lhe regressar a excitação, será que ela iria propôr aparecer-lhe ali...? em sua casa? Teria de encontrar uma forma de se livrar da namorada, disse a si mesmo decidido. "Estou. Estive a tomar banho,... e acho que eras tu que me estavas a esfregar as costas..." riu-se com a sua ousadia. Saiu para o quarto em busca de uma roupa lavada, sempre sem tirar o sorriso do rosto, abriu todas as gavetas que lhe pareciam um local coerente para arrumar boxers, vestiu a roupa interior e continuou a abrir portas e gavetas, sem saber bem o que vestir, confuso com tanto fato e tão pouca coisa prática para andar por casa. Uma gaveta resistia em abrir, e João precisou usar de toda a perícia dos dedos para desentalar o que lhe parecia ser um livro a trancar a abertura, abrindo-a com esforço. Pegou no livro, bastante curioso, achava aquele um sítio bizarro para guardar literatura, junto às camisolas de inverno, ficando meio perplexo a ler a capa "Sexo Tântrico"... abriu-o e algo em si estremeceu ao ler escrito a lápis "Marta 2012". Já era a segunda Marta que lhe surgia na sua recente vida consciente, não poderiam ser a mesma, com toda a certeza, pensava confuso. Um quebra cabeças complicava-se a cada dia que passava, havia uma Isabel, uma Ganesha, uma Marta enfermeira e uma Marta que lhe emprestara aquele livro. Outra mensagem surgia no telemóvel poisado em cima da cama, e João sentou-se com o livro numa das mãos e o telefone noutra, cada vez mais intrigado com aqueles factos novos. "Quando saíres do banho vai até à estante embutida do lado esquerdo. Na prateleira mais alta, ao fundo, encontras-me." Deu um salto automático, como se fosse aquela uma ordem inquestionável, percorreu a prateleira com a mão e algo duro e frio lhe surgiu bem ao fundo, como se ali tivesse sido colocado propositadamente escondido do campo de visão. Pegou-lhe e deixou-se ficar uns segundos a olhar a pequena estátua de um elefante cheio de braços, uma mistura de fofice com excentricidade, uma imagem que já tinha visto quando fez a pesquisa da palavra "ganesha" na internet. Teria sido ela a colocar ali a estátua? A ideia de que já ali tinha andado no seu quarto aquela mulher misteriosa era tão excitante que tornou a fechar-se na casa de banho para continuar a conversa. Pensou no que lhe haveria de dizer... tinha tantas perguntas que seria difícil escolher uma. "Já aqui estás na minha mão... O que queres de mim?" Engoliu em seco e poisou a imagem no lavatório, desfolhando o livro que lhe parecia um ótimo prenúncio para toda aquela realidade hindú que surgia na sua vida. Posições e teorias sobre como prolongar orgasmos, durante horas!, constatou maravilhado, parecia o sonho de qualquer um, se com a mulher das pernas bonitas, claro. Já tinha pensado várias vezes como faria para lidar com a intimidade com a namorada, que mesmo bonita e sexy não lhe parecia nada o seu género de mulher. Não que lhe parecesse um castigo, afinal já há muito tempo que estava sem sexo, segundo a lógica, mas tinha-se apanhado diversas noites a matutar nessa questão. Os beijos ocasionais que Isabel lhe dava não o faziam sentir nada de especial, e para ser sincero consigo mesmo a massagem da enfermeira Marta tinha-o arrepiado mais... Mas talvez estivesse na hora de perceber se a namorada o conseguiria fazer esquecer a amante, pensou decidido. Iria aproveitar aquela excitação que sentia para tirar as suas dúvidas. Saiu da casa de banho e deixou tudo espalhado pelo quarto, tinha um objetivo em mente e teria de se despachar antes que lhe passasse o rancor. Entrou pela sala e abraçou Isabel, que se sobresaltou com aquela abordagem tão atípica. 

- Sabes o que gostava de experimentar? - disse-lhe ao ouvido.

- Bem, acho que consigo adivinhar... mas assim? Antes de comer? - reagiu confusa e ligeiramente contrariada.

- O almoço ainda deve demorar a chegar... - sussurrou antes de a beijar.

Nélia correspondeu o beijo o mais naturalmente possível, pensado em mil e uma formas de conseguir safar-se daquela. Não esperava nada ter de começar logo naquele dia as funções de namorada. - João, ainda estás fraco.... - ronronou tentando libertar-se dele suavemente.

- Eu aguento. - puxou-a por um braço e encaminhou-a ao quarto, sentando-se na borda da cama e apertando-a contra si. - Tens de me mostrar como é que antigamente fazíamos isto. - desafiou-a sorrindo.

- Ok, mas rápido. - disse secamente, sorrindo de volta contrariada. Deitou-o para trás e dedicou-se o mais que conseguiu a fingir excitação, representar papéis sempre tinha sido uma das suas atividades favoritas, mas aquele era difícil, ainda não se esquecera da humilhação que passara naquele quarto há algum tempo atrás. Continuou a sua cena de casal apaixonado, e sentia-o já bem dominado, aquilo seria mais rápido, constatou aliviada. Tirou a camisola e usou de todos os seus atributos para o enlouquecer, resultava sempre, olhando em volta indolentemente. Viu bem perto da cabeça dele o telemóvel a vibrar, aproximou-se do aparelho, certificando-se de que João estava distraído e abriu a mensagem que tinha chegado. "Quero que voltes para mim... procura-me" Uma raiva apoderou-se dela, cegando-a, num ciúme azedo que lhe invadiu a garganta. O nojento tinha estado escondido às mensagens com outra e agora aliviava-se nela... novamente usada como uma puta, pensou amargurada, enquanto João lhe despia as calças e a roupa interior. Carregou no botão de chamada e colocou o telemóvel novamente na cama, agora era esperar a sonsa atender e estava resolvida a questão. - João... agora, agora! - gemeu Nélia, fingindo-se a enlouquecer de prazer, caprichando nos sons. João obedeceu-lhe e fizeram amor como se não houvesse amanhã, sem inibições de qualquer espécie, levados pelo calor do momento. - Diz o meu nome! - gritou Nélia acelerando o ritmo dos dois propositadamente, já consciente de que a chamada estava a ser ouvida há alguns segundos. - Isabel... - sussurrou meio a contragosto. - Mais alto! - grunhiu alternado com sons de prazer teatralizados – Isabel!


Janota entrou na sala e sentou-se no cadeirão em frente a Isabel que chorava silenciosamente no sofá. Não sabia bem o que dizer, mas suspeitava que o motivo teria o nome de João. Isabel colocou o telemóvel na mesinha no meio dos dois e olhou para o chão sem conseguir encarar o amigo. Janota estendeu-lhe a mão e puxou-a suavemente para si. Queria consolá-la, tirar-lhe aquela dor do peito, aquele homem do coração. Sentou-a no seu colo e deixou-a chorar, sem dizer nada. Estaria sempre ali para a ajudar.


(direitos reservados, AFSR)

(imagem, internet)

Sem comentários:

Enviar um comentário