segunda-feira, 31 de agosto de 2020

"A Mala Vermelha" - Capítulo 20

 



Há muito tempo que não acordava tão esperançosa com o futuro. A ideia de visitar João na clínica, lhe cortar o cabelo como prometido, conversar com ele, era  tão doce, que lhe iluminou o início da manhã, como já não acontecia há meses. O dia de chuva que se adivinhava, frio e desconfortável não a incomodavam minimamente. João esperava-a, iriam estar juntos, e felizmente a amnésia não o tinha transformado em ninguém diferente. Continuava o mesmo, pensava satisfeita, apenas não se recordava de nada, nem das coisas boas, nem das más, e isso poderia nem ser assim tão negativo. Tinha fantasmas terríveis que o assombravam desde adolescente, libertara-se de tudo, agora Isabel teria de o conquistar, uma vez mais. Isso parecia-lhe um pequeno preço a pagar pela paz de espírito que a perda de memória provocara. Se havia coisa que tinha aprendido com a Dazinha era aquela forma positiva de transformar uma situação dramática numa possibilidade de novas perspectivas. "Só não há solução para a morte, menina Isabelinha!", diria ela, resolvendo o problema instantaneamente.

Fechou o jipe e encaminhava-se para o edifício da clínica, quando viu Nélia estacionar o carro de João e estacou confusa. Estaria a ver bem?, seria um carro igual?. César apareceu no seu raio de visão, no que lhe pareceu serem minutos, depois da assombração com a loira espampanante. Isabel saiu do transe e correu até o alcançar, a sentir uma nuvem agoirenta a cobri-los, na eminência de uma carga de água. - Dr César!- gritou, temendo dar de caras com a mulher no átrio da clínica.

- Isabel... - sussurrou desanimado. Tivera pesadelos com aquela situação, até a mulher o obrigar a tomar um chá calmante a meio da noite. Teria de explicar à verdadeira Isabel que não fora capaz de lidar com a outra, e agora João vivia uma mentira.

- Dr César... - arfou com o esforço da corrida – Conhece aquela mulher? Aquele é o carro do João, não é?, ou estou doidinha?!... É que me parece mesmo o carro... - lançou sem parar, já com as pernas a tremer.

- Isabel... temos de conversar... - confessou, agarrando-lhe paternalmente no antebraço e conduzindo-a para o elevador, enumerando mentalmente o seu discurso e pedido de desculpas.



- Querido... bom dia! - ronronou Nélia ao entrar sem bater, interrompendo uma conversa entre João e uma enfermeira que o medicava antes do pequeno almoço.

- Olá Isabel... - esforçou-se por sorrir – Aqui tão cedo? - Uma estranha sensação invadiu-lhe o peito, deixando-o levemente aborrecido com a visita da namorada. Tinha pensado em dormitar um pouco antes do corte de cabelo prometido pela enfermeira albicastrense. Não sabia se Isabel ali estava só de passagem ou se ficaria algum tempo, o que o deixou amuado. Sentia-se sem paciência para conversas.

- Vim ver como te sentes, se precisas de alguma coisa... tenho ginásio agora de manhã, mas não queria deixar de te ver primeiro... - ronronou, encostando-se a ele sem cerimónias e pudor, sem se importar com a presença da enfermeira que arrumava os seus utensílios bastante corada.

- Isabel... - olhou a enfermeira envergonhado, tudo aquilo lhe parecia não ser bem o tipo de comportamento que gostava. 

- João, a senhora enfermeira está habituada a ver esposas apaixonadas com saudades, não está? - olhou-a com firmeza e um certo atrevimento, sem se afastar do médico constrangido.

A enfermeira saiu sem responder, deitando um olhar duro à visita tão mal educada, e deixou-os a sós, apressando-se por ir alertar o Dr César dos novos desenvolvimentos.

- Pronto, já estamos sozinhos. - sorriu-lhe satisfeita – Queria mesmo falar-te em privado. - disse, modificando o tom de voz, denunciando um tema mais sério – Sabes aquele cartão que eu tinha da tua conta bancária? Olha, perdi-o... e agora preciso de levantar dinheiro para pagar o ginásio e não consigo... Eu avisei-te que devias ter-me posto como 2ª titular da conta, afinal, foi lá que depositaste o dinheiro que fizeste com a venda do meu apartamento. - recriminou-o, fingindo-se ofendida com a ação – Eu logo vi que isto podia dar problemas... tudo bem que íamos comprar uma casa os dois, e metade sou eu que vou pagar, mas eu podia ter-te dado o dinheiro só na altura... agora estou de mãos e pés atados. Explicas-me como vou sobreviver até tu voltares para casa?

- Isabel... - reagiu estupefacto com toda aquela informação estranha e confusa – Eu não sei o que dizer... bem, o melhor é fazer-se outro cartão e tiras o diheiro... não sei... - conseguiu dizer, perante aquela mulher tão aborrecida. 

- Acho bem, e vou tratar disso ainda hoje! Vou ao banco e de lá peço ao gerente para te ligar, assim explicas-lhe que estás internado e eu trato de tudo, trago-te depois os papeis para assinares e resolvemos isto num instante! - beijou-lhe a boca, lentamente, deixando-o dormente e confuso, e saiu vitoriosa, sorrindo de costas para o médico desmemoriado. Aquilo era tão fácil que até dava vontade de rir! Conseguira em alguns dias o que andara anos a imaginar, ser mulher de um médico cheio de dinheiro, a fazer vida de dondoca, com a vantagem que nem tinha de o aturar enquanto estivesse no hospital. Afinal a vida nem era assim tão madrasta, sofrera muito até ali chegar, e tinha todo o direito de usufruir daquele momento, o seu momento.


- Por favor, desculpa-me... - murmurou desanimado sem saber o que dizer mais.

- Ela não se chama Isabel... o nome dela é Nélia, eu já a "conhecia". - acrescentou às informações que César lhe tinha dado.

- A culpa é minha, eu não soube enfrentá-la, fiquei com receio de a abordar logo no quarto, por causa do João, não o queria confundir ainda mais....

- Não... isto é tudo demasiado complicado e cada vez me convenço mais de que o João não é o meu futuro, o universo parece conspirar contra isto, e eu estou cansada César... - confessou, largando uma lágrima.

- Não digas isso, por favor Isabel, o João precisa de nós, não o podemos deixar ser enganado desta forma! Eu sei lá o que esta tipa psicótica pode fazer? Tu tens de me ajudar a resolver isto. - suplicou, sentando-se mais perto de Isabel e pegando-lhe nas mãos.

- César, eu prometi ao João que lhe cortava o cabelo hoje, trouxe a tesoura e vou cumprir a promessa. Mas será uma despedida. Não quero, nem posso lutar contra uma loira demasiado vistosa com intenções pouco claras. Ela entrou nisto para ganhar, e eu já tive a minha dose de psicopatas na  vida. Vou voltar para Castelo Branco daqui a uns meses, depois de a escola arranjar uma substituta para dar as minhas aulas, e chega. Tenho andado a pensar em vários cenários e soluções, e este é o mais seguro para mim, para a minha sanidade mental. - levantou-se, abraçou César, que se mantinha calado com a surpresa e a abraçou de volta, como se precisasse ele de ser consolado.

- Eu... não sei o que dizer... - murmurou emocionado e a sentir-se estupidamente fraco.

- Não tem de dizer nada, apenas prometer-me que o vai defender e ajudar, estar atento para ela não o tratar mal, pelo menos enquanto estiver vulnerável. Depois, se ele quiser ficar com ela já é uma escolha, e cada um faz o que quer da sua vida. - rematou pragmaticamente e com um certo desdém na voz. Saiu da sala, dirigiu-se à casa de banho mais perto e lavou a cara com água fria, na tentativa de se acalmandar o suficiente para conseguir entrar no quarto de João. Olhou-se demoradamente ao espelho, perdendo momentaneamente a lucidez, como se olhasse alguém estranho e não se reconhecesse. Um arrepio percorreu-a dos pés à cabeça, matar Tiago tinha sido mais fácil que o que estava prestes a fazer, constatou com pavor. Não queria deixá-lo, queria lutar por ele, devia entrar pelo quarto a dentro e beijá-lo, contar-lhe tudo o que a sua memória perdera, dizer-lhe que o amava e recuperar a sua vida. Mas o medo congelava-lhe as pernas, mantinha-a em pausa física, como se temesse que Tiago não tivesse de facto morrido, e a apanhasse no corredor, segundos antes de ela entrar no quarto de João. Obrigou-se a respirar cadenciadamente, como tantas vezes explicara aos outros nas suas aulas, sentou-se no chão da casa de banho para corrigir a postura do tronco e assim o oxigénio chegar mais eficazmente ao cérebro, sem se permitir chorar, porque sabia que no momento em que começasse, teria de berrar e espernear, e ali não era o local. Um último sacrifício para conseguir cumprir a promessa.



João levantou-se devagar, ainda meio zonzo das horas intermináveis que passava deitado durante o dia, e ligeiramente enjoado com o efeito da visita matinal da namorada. Era estranho como a Isabel parecia tão doce nos seus pensamentos, mas pessoalmente lhe dava sensações tão negativas, matutou com culpa. A sua vida era uma incógnita, e sabia que teria de dar algum crédito às pessoas que diziam conhecê-lo, porque elas o iriam ajudar a melhorar, mas os seus instintos não o deixavam confiar a cem por cento naquela mulher em particular. Seria correto aquilo que sentia?, perguntava-se angustiado, quando a porta abriu ligeiramente e uma voz familiar surgiu pouco segura.

- Bom dia. Posso? - Isabel espreitou para dentro do quarto, com uma leve esperança de que ele estivesse a dormir e pudesse observá-lo um pouco, antes de se afastar de vez de João. 

- Olá, bom dia! - respondeu animado, ajeitando-se rapidamente para se certificar de que estava minimamente apresentável.

- Vim terminar o serviço. - puxou da tesoura de dentro do bolso da bata emprestada que pedira a uma enfermeira do piso. - Acha que é boa hora? Posso voltar depois, se preferir...

- Não, estava mesmo à sua espera. - apressou-se a dizer, sentando-se no fundo da cama satisfeito com a visita prometida. - Vejo que hoje trouxe a bata, afinal não é nenhuma maluca fugida da ala feminina. - gracejou, curioso com o semblante abatido da enfermeira que lhe parecera reservada, mas otimista no dia anterior.

- Muito bem. - esforçou-se por sorrir, sem conseguir sentir de facto alegria – Vamos lá então tratar dessa juba de leão! - encaminhou-se para a casa de banho do quarto, colocou o banco na posição ideal e procurou por uma toalha de rosto para colocar nas costas de João, sempre sendo observada em silêncio, o que a deixou dormente e incomodada. - Então, mudou de ideias? - disse, tentando acabar com o momento estranho.

- Não, claro, vamos a isso. - sentou-se, deixou que Marta lhe colocasse a toalha nas costas, e ficou a olhá-la no espelho, sem saber bem porquê. - É engraçado, parece que a conheço de outro local... já ontem tive esta sensação...

- Não, - mentiu – isso é impossível. - rematou sem se alongar – Agora vou só molhar ligeiramente o cabelo para o corte ficar mais certo. - esfregou água nas mãos e passou-as pelo cabelo de João que emitiu um som de prazer com a súbita massagem capilar.

  - Isto é mesmo bom... Marta, mas que vocação perdida aqui nestes corredores. Porque não é massagista a tempo inteiro? Eu ia diariamente pagar por uma massagem destas. - sorriu de olhos fechados.

- Gosto mais de dar injeções a maluquinhos. - gracejou, a sentir-se amolecer contra as costas de João, que desatou a rir com a piada, descontraído pelos dedos experientes de Isabel.

- As suas injeções são assim tão boas? Quero experimentar isso! - brincou, abrindo os olhos e notando um rubor súbito nas bochechas da enfermeira. - Desculpe, não a queria ofender. - tratou de se redimir, pensando que talvez aquela troca de palavras a pudesse estar a incomodar ou deixar desconfortável.

- Não se preocupe, eu estou habituada a que os meus pacientes fiquem relaxados, até na língua. - concentrou-se em pentear o farto cabelo e analisar os ângulos em que teria de cortar mais, para que a sua cara ficasse proporcionalmente bem enquadrada.

- Pois, a culpa é sua. - rematou satisfeito ao ver que ela não se deixava intimidar com a brincadeira. - Agora por favor não se vingue no meu cabelo... não quero ficar um Anhuca!

- Logo se vê. - deu a primeira tesourada com prazer, retomando a concentração e permitindo-se aproveitar o momento em que ali estavam encostados, de forma íntima, como se nada tivesse acontecido e ainda fossem namorados.

- Já lhe disse que acho que gosto de cães? - lançou, decidido a conversar o máximo que pudesse.

- Sim, já disse. Mas se quer a minha opinião, não saia daqui a correr e a ir adoptar um cachorro! Esses animais enquanto são pequenos dão muito trabalho, precisam de muita paciência, tempo, disponibilidade, e vão sujar-lhe a casa toda. Se ainda tivesse um quintal, podia lá deixar o cão, mas...

- Como sabe se eu tenho ou não um quintal?... Eu não sei. - exclamou espantado com a observação.

- Claro que não sei, apenas deduzi pelo aspecto das suas mãos cuidadas... - apressou-se a esclarecer, fingindo-se naturalmente concentrada no corte e desviando a cabeça de forma a que ele não tivesse acesso direto à sua imagem.

João observou as suas mãos, curioso com a perspicácia dela, que já olhara tempo suficiente para si para fazer deduções. - Hum... de facto não devo fazer muita jardinagem..., mas não deixa de ser surpreendente como as enfermeiras hoje em dia são dotadas. É massagens, cortes de cabelo, investigação... - gozou, procurando o seu olhar e virando ligeiramente a cabeça, quando uma dor fina e insuportável o atacou na orelha esquerda e o fez gritar, afastando-se automaticamente das mãos de Marta.

- Desculpe, por favor, desculpe... - gaguejou Isabel, horrorizada com a tesourada que dera na orelha de João, que sangrava sem parar. Pressionou a ferida com a toalha, em pânico. - mas porque é que se mexeu? - berrou nervosa, com as mãos a tremer.

- Agora a culpa é minha? - gemeu, olhando-a espantado.

- Espere, vou chamar ajuda. - disse sem pensar.

- Vá mas é buscar uma agulha e linha e ponha-me isto novamente no sítio! - ralhou, com a dor a abrandar rapidamente.

- Deixe-me ver... - retirou suavemente a toalha e percebeu que o corte não era tão grave como o grito dele fizera parecer. - João, acho que não é preciso linha..., vou buscar um penso, já volto. - saiu apressada, sem sequer lavar o sangue das mãos, a sentir o coração na boca. Recordou rapidamente o que deveria fazer para parecer minimamente profissional quando lhe limpasse a ferida e colocasse o penso e procurou pelo material necessário num dos carrinhos que estava no corredor. Voltou a correr para o quarto, fechou a porta e respirou fundo. Aquilo não podia estar a acontecer... "apanha-se mais depressa um mentiroso que um cocho!", diria a Dazinha, e ela tinha sempre razão. 

- Estou à espera! - resmungou, enquanto tentava ao espelho observar a ferida que parecia já não sangrar.

- Já aqui tenho tudo. - disse, erguendo uma quantidade enorme de gazes e adesivos, e obrigando-o a sentar-se novamente.

- Tem a certeza de que é preciso isso tudo?

- Quem é que é aqui a enfermeira? - exclamou, disfarçando o embaraço.

- Como quiser... - disse, levantando as mãos em desistência. - Também não vou ao "Pírulas" hoje... não há problema de ficar ridículo....- acrescentou.

Isabel olhou-o espantada, tinha tido um flash de memória sem se aperceber. Uma bolha de oxigénio formou-se no seu peito, invadindo-a de esperança, o que a fez sorrir.

- O que é o "Pírulas"? - perguntou confuso com aquela sua afirmação.

- Acho que é um bar na Praça... - respondeu, ficando estupidamente à espera que toda a memória aparecesse de repente e ele a beijasse com saudade.

- Bem, não me recordo de nada disso... - murmurou abatido com o acontecimento que o deixava mais angustiado que esperançoso. Temia ficar tolo, sem recuperar a memória de forma eficaz, apenas tendo uns vislumbres do que tinha sido. Isso seria pior que nascer de novo, como tinha sugerido Marta no dia anterior. - Pode deixar-me sozinho?

- Mas... e o resto do cabelo? - uma azia desceu-lhe pela garganta, junto com uma vontade enorme de chorar. Terminaria ali a sua relação com ele? Depois de lhe dar uma tesourada numa orelha e o deixar como um mendigo de cabelo desordenado..?

- Desculpe, tem razão, termine o corte, por favor, acho que preciso de descansar... - murmurou, sem a conseguir olhar. Sentia-se a descer a pique para uma angústia sufocante, com o desespero a tomar-lhe conta dos pensamentos.

- Eu prometo que sou rápida... - gemeu, a sentir os nervos a descontrolarem-lhe os movimentos das mãos, que cortavam a um ritmo cada vez mais rápido. - Por favor, desculpe-me, não fique chateado, foi só de raspão, eu faço-lhe um penso perfeitinho e daqui a uns dias já nem se nota... 

- Não faz mal, eu também não devia ter mexido a cabeça... - murmurou abatido, sem vontade de continuar a conversar. - Eu mesmo faço o penso, deixe estar.

- Eu já tive um cão, já lhe tinha dito, era um companheiro... - fungou, tentando não se deixar levar pela tristeza de tudo aquilo, pelo desespero que via no olhar dele.

- Hum, hum... - disse, sem emoção, olhando o infinito, sem lhe prestar grande atenção. Até o simples facto de se sentir excitado perto daquela enfermeira o fazia sentir-se mal. Seria assim tão canalha, que preferia a companhia de uma estranha à da sua namorada? Porque nada fazia sentido, nada do que sentia o acalmava ou elucidava do seu passado. Deu uma última olhadela nela, e viu-se obrigado a desviar o olhar, porque a vontade que tinha era a de a abraçar.

- Pronto, está feito. - sacudiu os cabelos do pescoço e dos ombros e arrumou tudo, para disfarçar a tristeza. - Pode deitar-se agora, se quiser, deve precisar de descansar. Depois quando estiver mais bem disposto tome um banho, para tirar os restantes cabelos que aí ficaram.

João obedeceu, arrastou-se para o quarto e deixou-se cair na cama, virando-se para a parede, para esconder o choro que o começava a ameaçar.

Isabel ficou estática a olhá-lo, sem saber o que fazer. Queria tanto abraçá-lo e dizer-lhe que o amava, mas não conseguia desobedecer a César. Aproximou-se o mais que conseguiu da cama e respirou fundo.

- João? Posso ajudar? Quer que chame o médico? - sussurrou emocionada.

João manteve-se em silêncio, sem coragem para lhe pedir que ficasse e lhe desse a mão. Tinha medo, muito medo do que pudesse vir a recordar ou não, mas ela não o podia ajudar, não o conhecia, não sabia nada sobre a sua antiga vida, era uma enfermeira simpática, ponto.

- Vou embora, então... - reprimiu um soluço de choro, apertando os lábios. - As melhoras, e trate de se pôr bom e arranjar o tal cão... - deu meia volta e saiu, fechando a porta e correndo dali para fora. Não era assim que tinha imaginado a despedida, com João de costas voltadas para ela, em sofrimento, sem precisar dela. Procurou por César no gabinete do médico, mas nem esse parecia importado, tendo-se esfumaçado no ar. Chegou à rua sem se aperceber do caminho que tinha feito, com a cabeça pesada e confusa, procurou pelo jipe e entrou, acelerando até casa, em piloto automático, tinha de rebentar num local seguro e sem testemunhas. Uns sons agoniantes saíam-lhe desgovernados da boca, como que uns lamentos guturais que precisam de se libertar, e temeu não conseguir conduzir até casa, tal era o estremecimento do seu corpo, sempre que tentava silenciar os gritos. Parou o carro desajeitadamente na entrada da quinta, saiu a correr e dirigiu-se à campa de Filipe, onde se sentou agarrando nos joelhos enquanto os sons ganhavam força e a faziam temer o pior. Tinha de abraçar o seu cão, pensou enlouquecida, começando a esgravatar a terra com os dedos, furiosamente. Sim, estava a enlouquecer, mas já nada importava, apenas precisava de ver o seu Filipe e chorar agarrada a ele. Não conseguia que as lágrimas saíssem de outra forma, constatou, escavando mais e mais, à procura do cadáver do cão. Umas ossadas surgiram, revelando os restos mortais já bastante deteriorados, numa imagem que a fez parar e soltar a primeira lágrima. O seu amor reduzido a meia dúzia de ossos, o bebé que ele tinha morto, o seu filho, João, o cão, tudo ali morto e enterrado.

- Isabel! - um grito ao longe chamou o seu nome, segundos antes de perder a consciência.


 


Senta! Não... Senta! - disse, de dedo espetado em direção a Filipe, que estava mais interessado no biscoito – Ai, que guloso... se não aprendes não levas o doce! Vamos, temos de praticar agora, enquanto ele não chega, já sabes que depois o papá irrita-se contigo a saltitar de um lado para o outro... Tiago? Olá... estava a ensinar o Fili...- Tiago passou pelos dois furioso, sem os olhar, trazendo aquela energia agressiva que modificava o ambiente de um local – Vamos, Filipe, vai lá para fora, acabou a brincadeira. Vai!

- Filipe... pára... - resmungou, acordando com dificuldade ao sentir o nariz frio do cão no seu pescoço. - Deixa-me dormir... - ralhou, quando subitamente teve consciência do que dizia e levantou o tronco – Filipe? - olhou pelo quarto e não o viu, como seria previsível, mas barulhos vindos da cozinha deixaram-na em alerta, não se recordava bem de como tinha ido parar à cama, nem trocado de roupa.. seria ele? Um ardor de felicidade subiu-lhe pelo abdómen em direção à garganta, com a ideia de que João tinha tido alta, se recordara de tudo e estivesse a fazer-lhe chá com torradas. Correu até à cozinha e estacou ao ver Janota de avental, um homem enorme de luvas de cozinha e faces coradas com o esforço de cozinhar. A felicidade que sentiu apanhou-a de surpresa, e abraçou instintivamente o grande segurança que não sendo o João, era com toda a certeza o segundo homem por quem nutria amizade e carinho. Era graças a ele que ainda estava viva, e isso não conseguiria nunca esquecer.

- Olá, então, sentes-te melhor? - disse naturalmente, como se ter uma pequena mulher agarrada ao seu tronco fosse a coisa mais normal do mundo.

- Janota... o que fazes aqui? - perguntou, largando-o e facilitando-lhe os movimentos atabalhoados com as panelas.

- Bem, isso é uma história grande, que te vou contar durante o almoço... se algum dia conseguir terminar uma destas tuas receitas esquisitas de comer sem carne... - explicou, sorrindo-lhe encavacado.

- Estive a dormir desde ontem? - sobressaltou-se, retirando-lhe uma das panelas das mãos e ajudando no cozinhado. - Não me lembro de nada...

- Acho que estas coisas verdes já estão cozidas... vamos para a mesa? - escorreu a água da panela, ficando completamente camuflado no vapor da água quente e provocando um riso em Isabel.

- Sim, tenho muita fome... - espreitou a outra panela e verificou se a massa já estava pronta – Acho que isto já está. Vamos.

Sentaram-se na mesa exterior, onde corria uma brisa agradável de um dia solarengo de outono, e Isabel lançou-se na refeição, sendo observada por Janota que exibia um sorriso paternal de satisfação.

- Mastiga devagar, ainda ficas com dor de barriga.

- Diz lá, o que foi que aconteceu ontem? - perguntou, depois de comer algumas garfadas.

- Bem... ontem vim até aqui para te trazer uma prenda... e quando cheguei não te encontrava em lado nenhum da casa, por isso fui dar a volta lá atrás ao quintal e vi-te no chão de gatas a mexer na terra... - explicou, tendo cuidado nas palavras, com todo o tato que conseguia ter para não a deixar perturbada. Se lhe dissesse textualmente aquilo que vira certamente que ela ficaria envergonhada. - ...depois, desmaiaste. 

Isabel corou, ao recordar o surto que tivera junto à campa de Filipe, e pousou os talheres, nervosa. Não sabia que tinha sido vista naquela situação, e podia imaginar o choque dele.

- Desculpa, estás sempre a ver-me nas piores figuras... - gracejou.

- Posso imaginar o que te levou a ficares nervosa daquela maneira... mas sentes-te melhor? - desconversou.

- Sim,... mas, e ficaste cá durante a noite?

- Eu e o Dr. César e a Elisabete... só o Salvador é que não pôde, ficou no bar. O Dr deu-te um comprimido, por isso dormiste tanto... de manhã cedo foram-se todos embora e eu fiquei para ver quando acordavas.- explicou.

- Que vergonha... - pousou as mãos no colo e desviou o olhar do dele.

- Vergonha é roubar! Mas diz-me lá, gostaste da prenda? - Disse mais animado e aliviado por já ter explicado tudo.

- Mas o que é? Onde está? - respondeu curiosa com a surpresa.

- Não viste? Esteve toda a noite em cima de ti... Espera, vou procurar. - levantou-se e voltou rapidamente de dentro de casa com um cachorro irrequieto que lhe cabia na mão enorme. - Aqui está! Estava com medo que não fosse boa ideia, mas o Dr garantiu-me que ias gostar!

- Oh... meu...Deus... - exclamou a sentir lágrimas de alegria nos olhos – Janota.... que coisa mais fofa... - pegou-lhe reverencialmente e deu-se a cheirar, satisfeita com aqueles cumprimentos que só um cão bebé conseguia dar. - Quem é a coisa mais linda da mamã?! Quem é, quem é? Sim... é o meu... - olhou repentinamente para o sexo do animal, para confirmar se era macho ou fêmea – o meu Filipe!

- Ainda bem que gostas... estava com algum medo que fosse um bocado cedo para substituir o Filipe. - explicou, recostando-se na cadeira e recomeçando a comer.

- Não... - disse a sorrir com os beijos e fungadelas no pescoço – todos os cães são únicos, têm uma personalidade própria, e o meu Filipe foi um cão excepcional... - relembrou, emocionada – Vivemos muita coisa juntos, boa e má, sem ele nunca tinha aguentado o que aguentei – confesosu – e aqui o Filipe Júnior vai ser um bom cãozinho e só fazer xixi e cocó cá fora na rua, certo? - olhou o cachorro que se contorcia de excitação.

- Pois... sobre isso... acho que o teu Júnior já marcou a casa em todos os sítios possíveis e imaginários... e o pior é que não é macho verdadeiro, ele agacha-se para fazer xixi, como as cadelas e nunca sabes se está só sentado ou se já está a molhar a carpete outra vez...

- Enquanto são pequeninos não levantam a perna... aqui o tio Janota não percebe nada de cãezinhos fofinhos, pois não? Mas o menino vai ser lindo e não sujar a casa, é preciso é muita paciência e salsichas.

- Salsichas? - perguntou curioso.

- Sim, não há nada que não consigas ensinar a um cão se tiveres salsichas no bolso. Acredita. - explicou.

- Acho que também fazia umas habilidades por umas salsichas... - sentenciou divertido.




Quem está livre és mesmo... tu! - o menino desatou a rir provocadoramente, fez-lhe uma careta e figiu – Não m'apanhas! - João aceitou o desafio e seguiu-o, sem conseguir alcançar a passada do menino, que ria e olhava para trás divertido. Olhou para a direita e viu a água cristalina a brilhar - Vamos ao banho?Por favor... eu quero ir ao banho... mano, anda... vem comigo... - suplicava o menino, puxando-lhe por um braço, sem desistir – Tu prometeste... - fez beicinho, largando-o e correndo na direção da água. Um medo apoderou-se do seu corpo, queria dizer-lhe que era perigoso, mas a voz não lhe saía, tentou correr, mas os pés enterravam-se na areia rija, sugando-o lentamente, enquanto o menino desaparecia na água, dizendo-lhe adeus.


- João! Acorda! 


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(imagem, internet)

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