quinta-feira, 27 de agosto de 2020

"A Mala Vermelha" - Capítulo 18

 



- Amnésia? Como assim? Não se recorda de nada? – perguntou Nélia, surpreendida com as novidades que a tia contava enquanto arrumava a cozinha depois do jantar.

- Pobrezinho, diz que foi do choque de ver o cão morto… - lamentou-se, sentindo uma pontada de culpa com aquele trágico acontecimento – Se eu sonhasse que aquele homem era um criminoso… - fungou, limpando os olhos com o pano da loiça – parecia tão sério…

- A tia não tem culpa de nada! – exclamou exagerando no tom indignado – E o Dr está na melhor clínica privada de Coimbra, - acrescentou com escárnio – com os preços daquilo até podem devolver a memória a um morto!

- Nélia! Por favor,… isso lá são coisas que se digam…. O Dr João não está morto! – benzeu-se, olhando reverencialmente para o tecto da cozinha. – Amanhã tenho de o ir ver… coitadinho, sem família que tome conta dele. Já falei com o médico, o Dr César, e ele disse que agora já podemos vê-lo. Já lá vão três semanas… e nada… - explicou, referindo-se à recuperação da memória do patrão – mas já é seguro receber mais visitas.

- Se quiser posso ir consigo… - sugeriu, fingindo pouco interesse – Pode ficar emocionada e precisar de ajuda. – sentia uma curiosidade mórbida em ver o aspecto com que o homem arrogante que conhecera estava, depois de quase um mês a calmantes e outras drogas, num quarto de hospital.

- Obrigada querida, - surpreendeu-se coma simpatia da sobrinha – gostava muito de não ir sozinha. Aqueles sítios provocam-me calafrios…. – confessou, recordando a época negra em que a irmã e mãe de Nélia fora internada compulsivamente na Psiquiatria dos Hospitais de Coimbra.

- Então fica combinado. Precisa de ajuda? – perguntou cinicamente, depois de quase tudo estar limpo e arrumado pela tia.

- Deixa estar, vai descansar, eu termino isto aqui. – respondeu, passando o pano maquinalmente no balcão imaculado. Suspirou e esfregou mais um pouco, matutando naquela sobrinha que por vezes ainda a conseguia surpreender positivamente. Talvez a idade lhe estivesse a trazer juízo, concluiu, pondo aqueles pensamentos angustiantes de parte, ao mesmo tempo que poisava o pano. Desligou a luz da cozinha e despediu-se da santinha que a velava no corredor da casa, dirigindo-se ao quarto, num ritual antigo que a mantinha segura e em paz. Não conseguiria dormir sem a proteção da “Nossa Senhora de Fátima”, ou sequer passar por ela sem a admirar por breves segundos, tão linda e pura, de olhos tristes e empáticos, testemunha de tantos anos de sofrimento e dores, sempre ali para a consolar. 



João acordou com as vozes animadas que enchiam o corredor, ainda confuso com o último sonho que o perseguia há várias noites consecutivas. Uma mulher morena de tranças enormes embalava um pequeno elefante com variados braços, que o rodeavam com carinho, silenciando-o. A pequena criatura chorava de mimo, ou outra criancice qualquer, exigindo colo, como os pequenos bebés humanos, e apenas se acalmava quando ela lhe satisfazia o pedido. Uma voz melodiosa adormecia a cria elefante, entoando sons de uma língua estranha, mas familiar, sem sentido, que o acordavam sempre que tentava acompanhar a canção, ficando com a música presa naquele limbo de sonho e consciência, desaparecendo da mesma forma rápida com que lhe surgia no sono. 

Reconhecia a voz de barítono do seu médico, bem como o falsete da mulher dele, que trabalhava como voluntária no hospital e lhe fazia companhia durante algumas horas por dia. Uma presença agradável que o serenava, por já a sentir familiar. Tentava perceber o que falavam, e uma terceira voz mais moderada entrou na conversa, contrastando com o tom feliz do casal de meia idade. Gostava do som com que a mulher terminava as frases, musicando certas palavras, deixando-lhe claro de que tinha um sotaque diferente do que normalmente ouvia no hospital. Recordava-se de já a ter ouvido antes, mas não sabia bem onde, surgindo-lhe de repente a imagem de uma enfermeira pálida que vira há algumas semanas no seu quarto, mas que misteriosamente  nunca mais aparecera. Desde que tinha recuperado a consciência suficiente catalogava caras, nomes, sons, feitios, como exercício mental de memória, na esperança de se recordar de si mesmo, da pessoa que fora antes de ter acordado naquele quarto. Tudo lhe era dito com cautelas e reservas, como se o seu passado desconhecido o pudesse transtornar, e esse facto angustiava-o bastante. O que teria acontecido de tão grave na sua vida para que ninguém se atrevesse a contar-lhe? Temeriam que enlouquecesse ou não aguentasse a verdade? Chamava-se João, não tinha parentes, era psiquiatra, pela lógica e como ainda não tinha aparecido para o visitar, não tinha mulher ou namorada, filhos muito menos. Um miserável sozinho no mundo, com dinheiro para pagar a diária daquela clínica cara. Era tudo o que sabia de si mesmo. Uma coisa era certa, sentia-se incompleto, não pela falta de pai ou mãe, que já de si era triste, mas uma parte de si parecia ter sido arrancada. Talvez a sua mulher falecera e isso o levara até aquele quarto de hospital, matutava por vezes. Só isso explicava a sensação de saudade que o corroía. Saudades de um corpo, de uma mulher que um dia deveria ter tido. Porque sentia falta dela, e isso crescia dentro de si, como um balão de ar que lhe sufocava o coração de dia para dia. Não precisava de pai nem mãe, mas queria-a de volta, mesmo que apenas o nome de uma pessoa que existira em tempos. 

- Bom dia! – César interrompeu os seus pensamentos, inundando o quarto de animação, seguido por Elisabete e a enfermeira desaparecida.

- Bom dia. – respondeu, sentindo-se ligeiramente encavacado com a presença  pouco habitual da mulher bonita que se mantinha pouco à vontade sem saber onde colocar as mãos.

- Como passaste a noite? Tudo calmo? – questionou-o, com um brilho diferente no olhar.

- Bem. – desviou o olhar do médico para a enfermeira que ruborizou de uma forma que lhe agradou subitamente. – Já não vinha aqui há bastante tempo. – disse-lhe, endireitando-se na cama.

- Hum… sim, estive de férias… - inventou Isabel à pressão, sem saber o que dizer. Não esperava que ele lhe falasse diretamente, nem a olhasse durante tanto tempo seguido. César convencera-a a entrar, seguro de que ele não iria estranhar a sua presença, mas o quente que sentia crescer nas bochechas denunciava o seu nervosismo, lamentando ter seguido o seu conselho.

- Queria mesmo falar com uma enfermeira. – iniciou, sem perceber porque continuava a querer manter conversa com aquela técnica de saúde em especial – Acha que já posso começar a tomar banho num chuveiro normal e ir até à sala de convívio? Estou farto destas paredes e de me darem banho de gato… - resmungou, desejoso de que ela o autorizasse.

- Acho que sim… ainda não se levantou daí? – perguntou espantada, olhando interrogativamente César.

- Bem, só agora é que as doses dos remédios permitem essas movimentações, por isso sentes essa necessidade. – explicou, olhando João satisfeito com as súbitas exigências do amigo.

- Então, por favor, se tiver tempo hoje, precisava apenas de ajuda para o caso de me sentir tonto. Pode cá passar em alguma altura do dia? – questionou-a, desejando que fosse ela a monitorizar as suas atividades e não uma trombuda qualquer.

- Pode ser agora mesmo! – respondeu César, antes que Isabel se esquivasse – Vamos Elisabete, o João precisa mesmo de um banho, fazer a barba à homem e deixar esta cama por algumas horas. – apressou-se a puxar a mulher para fora do quarto, sorrindo.

Depois de uns segundos que pareceram horas a Isabel, João deixou de a olhar e começou a levantar-se, mostrando grande dificuldade nos movimentos, o que a despertou daquela perplexidade momentânea. Tinha imaginado tudo naquela manhã, enquanto se dirigia à clínica para o ver, depois de três semanas em Castelo Branco fechada em casa, menos que lhe iria dar banho.

- Desculpe, eu ajudo-o. – disse numa gaguez nervosa, apressando-se a ajudá-lo a levantar.

- Talvez seja melhor ir com calma… - sugeriu João ao sentir-se tonto quando ela o agarrou. 

- Sim, claro, desculpe… - sussurrou, respirando fundo para se acalmar. Depois de tanto tempo longe dele, estar tão perto e não o poder abraçar nem beijar era difícil de aguentar. Teria de se forçar a representar aquele papel de enfermeira imposto. – É natural sentir-se tonto, está deitado há demasiado tempo… - consolou-o, sentando-se calmamente a seu lado na cama – não é preciso ter pressa.

- Como se chama? – perguntou curioso, olhando-a mais de perto. Era uma mulher bonita, sem aliança, constatou, depois de analisar as suas mãos delicadamente poisadas nas pernas. 

- Ha…. Marta. – saiu-lhe sem pensar, fugindo com o olhar para a casa de banho.

- Ok Marta, vamos lá então? – estendeu-lhe a mão para se apoiar e tentou novamente levantar-se devagar, ficando surpreendido ao notar duas grandes cicatrizes nos seus pulsos.

- Sim, com calma. – disse-lhe, corando automaticamente quando o viu olhar as marcas do seu episódio dramático com Tiago.

João disfarçou o espanto da descoberta íntima sobre a enfermeira e continuou a caminhada pouco estável até ao quarto de banho que ainda não utilizara, cada vez mais ansioso com a ideia de se lavar com água corrente. Isabel entrou na frente, dando-lhe os braços como apoio e obrigou-o a sentar-se num banco para se restabelecer da tontura que aquele pequeno percurso lhe provocara.

- Temos tempo… fique aqui que vou buscar-lhe um pijama lavado. -  disse-lhe com ternura, emocionada com o ar desconcertado e frágil que ele mostrava naquele pequeno esforço de dar meia dúzia de passos de pé.

- Obrigado. – um leve pânico invadia-lhe a garganta. Nunca pensara que o regresso às simples atividades diárias lhe custasse tanto. Estava amorfo, sem vitalidade, com os músculos atrofiados de tanto descanso. Uma antiga sensação de boca seca apoderou-se dele, juntamente com o ritmo cardíaco descontrolado. Sabia que já tinha sentido aquilo antes, mas isso não o consolava, apenas o transtornava mais. Uma dormência forte crescia-lhe nos braços, enervando-o cada vez mais, ao mesmo tempo que temia desmaiar a qualquer momento.

- Estes pijamas são horríveis… - comentava, tentando descontrair o ambiente, quando o viu na mesma posição aflitiva em que ficara quando tivera o ataque de pânico no Gerês. Ajoelhou-se  nervosa e segurou-o na mesma posição em que o socorrera naquele dia. – Calma, não se preocupe, é apenas um ataque de pânico. – disse-lhe com a voz mais controlada que conseguiu – Respire comigo, afaste os braços e as pernas, inspire até encher a barriga, expire apertando-a o mais que conseguir… inspire… expire… inspire… expire… é normal isto acontecer… inspire… expire… - continuou, com o ritmo cadenciado da voz, massajando-lhe os braços lentamente, de forma a diminuir a dormência. Manteve-se alguns minutos naquele exercício, cada vez mais segura de que estavam a conseguir controlar aquelas reacções involuntárias. O fresco dos azulejos arrefeceu devagar o corpo tenso de João e o seu olhar ficava cada vez mais consciente, olhando-a diretamente, como se procurasse nela a calma que lhe faltava. Isabel sorriu-lhe fraternalmente, continuando a massagem, sem desviar o olhar, mantendo-se firme na sua técnica natural de restabelecer uma pessoa descontrolada.

- Como é que fez isto? – perguntou-lhe com a voz fraca, olhando na direção das suas cicatrizes, realmente curioso com aquelas marcas tão feias.

- É uma história triste e muito longa… - desconversou, sem no entanto se incomodar com a pergunta indiscreta. Ao contrário dele, ela ainda se lembrava de como era fácil conversarem, como se sentiam bem e confortáveis um com o outro. – Vamos levantar o tronco com calma. – incitou-o, ajudando-o a içar-se do chão.

- Desculpe, não tenho nada a ver com isso. – limpou o suor da testa com a palma da mão e respirou fundo várias vezes, sentindo-se mais restabelecido.

- Um dia conto-lhe. – acrescentou, confessando uma verdade que não poderia explicar. Tinha esperança de que ele acordasse um dia, chamasse por ela e recuperassem de novo a recente vida em conjunto que fora interrompida com o surto do dia do massacre de Filipe.

- Combinado. – disse-lhe sorrindo. 

- Vou colocar o banco dentro do chuveiro, assim é mais seguro. – levantou-se decidida.

- Mas vou tomar banho na mesma? – perguntou surpreendido.

-Claro, a crise já passou. E nada como um duche para nos fazer sentir melhor. – respondeu. Ligou a água, depois de colocar o banco estável e ajudou-o a retirar a camisola. João apoiou-se no chão e levantou-se, despindo o resto da roupa meio envergonhado.

- Não se preocupe, não é nada que eu já não tenha visto. – tornou a confessar, sorrindo-lhe e encaminhando-o para o banco. Iniciou o banho molhando-o, enquanto analisava o estado fraco e mais magro que o antigo corpo vigoroso perdera naquelas semanas de estado vegetativo. Um ardor crescia-lhe na garganta, ameaçando umas lágrimas de tristeza, e Isabel engoliu a sua mágoa, concentrando-se em esfregar o champô no cabelo demasiado comprido. – Precisa de um corte. – sugeriu, caprichando na massagem capilar.

- Isso é muito bom… - sussurrou a sentir-se deliciado com a destreza dos dedos experientes da enfermeira.

- Tenho um curso de massagista clínica. – disse, cada vez mais satisfeita com o facto de lhe poder estar a tocar novamente.

- Ah, está explicado… Porque é que não tem bata de enfermeira?

- eh… eu ainda não tinha iniciado o turno quando entrei no seu quarto. – conseguiu dizer sem gaguejar.

- Vai molhar a roupa toda. 

- Não faz mal, depois visto a bata. – brincou, passando água morna na cabeça ensaboada e continuando a massagem com a mão livre.

- Tinha razão, sinto-me muito melhor. – confessou, pegando na esponja e lavando o resto do corpo que a enfermeira ainda não tinha esfregado, poupando-os aos dois a embaraços. Uma sensação demasiado erótica crescia dentro de si e tinha a certeza de que se ela o massajasse da mesma forma pelo tronco abaixo ficaria muito mal visto. Não queria ofendê-la, principalmente porque ela poderia nunca mais lá voltar.

- Vamos só tirar o sabão do corpo e já está. – felizmente ele tinha tomado a iniciativa de se lavar, seria bastante desconfortável colocar-se de gatas para lhe esfregar as canelas, suspirou aliviada. Passou o chuveiro por todo o corpo e terminou o banho, apressando-se a colocar uma toalha em cima do homem completamente nu que parecia cada vez mais encavacado.

- Obrigado. – João deixou-a secar-lhe o cabelo, enquanto passava rapidamente a toalha, a sentir-se corar como um miúdo. 

- Fazemos a barba? – perguntou-lhe, ajudando-o a sair da cabine de duche.

- Não sei se ainda tenho forças para isso… - confessou.

- Eu faço. Não se preocupe. Sente-se aqui em frente do lavatório. Isto não deve ser nada do outro mundo. – gracejou, animada com o facto de prolongar aquela intimidade.

- Nunca fez a barba aos pacientes? – perguntou surpreendido.

- Sim, claro… - sentia-se corar indecentemente, como uma criança a quem apanham uma mentira. Preparou os utensílios necessários e colocou-se por trás dele, adivinhando que lhe seria mais confortável encostar-se nela.

- Se não se importar, precisava de me apoiar… 

- Claro, se sentir alguma tontura diga. Vou fazer isto rápido, acho que precisa de comer e descansar um pouco na cama.

- Obrigado. – encostou-se no corpo dela que se mantinha de pé e relaxou instantaneamente. Era uma mulher magra mas onde não se notavam os ossos, constatou agradado. Sentiu o queixo a ser inclinado para cima e automaticamente a sua cabeça ficou apoiada no peito dela, sem pudores. Deveria sentir aquelas manobras de uma forma profissional, mas em vez disso, um prazer familiar invadiu-o, colocando-o num estado de dormência idêntico ao pré-sono. Concentrou-se no respirar dela, mantendo-se de olhos fechados, deliciado com tudo aquilo. Desejou que a barba lhe crescesse meio metro todos os dias, e essa ideia fê-lo sorrir.

- Então, está a rir de quê? Estou a fazer-lhe cócegas?

- Não, nada disso. – respondeu, mantendo o sorriso – Posso confessar uma coisa?

- Sim. – um nó no estômago trouxe-a de volta à realidade.

- Marta, nunca uma enfermeira me fez tão bem a barba… - disse, sentindo-se divertido.

- Isso é porque eu não sou uma enfermeira na realidade. – confessou brincado.

- Não é?

- Não, sou uma paciente da ala feminina com demasiado tempo livre. Devem andar neste momento à minha procura. Por isso, nada de me denunciar.

- Você é demais! – reagiu divertido com o sentido de humor dela. Teve a noção nesse exato momento de que facilmente poderia gostar de uma mulher como ela. Pelo menos já tirara uma das dúvidas do seu inconsciente, não era gay.

- Acho que está a ficar perfeito! Dê uma olhadela no espelho.

João abriu os olhos e surpreendeu-se com o ar rejuvenescido que a sua cara transmitia. Ficava melhor sem barba, reconheceu, olhando alternadamente para a esquerda e para a direita.

- Obrigado, ficou muito bem. E tem razão, preciso de cortar o cabelo, acho que nunca o usei assim tão grande.

- Então amanhã se quiser eu corto-lho. – ofereceu-se automaticamente, iniciando a limpeza do local para disfarçar o embaraço.

- Enfermeira, massagista, barbeira… que mais é que sabe fazer?

- Também dou aulas de yoga. – confessou, ajudando-o a regressar ao quarto.

- Eu não sei bem o que fazia para além de ser psiquiatra…. E mesmo isso já não devo poder exercer nunca mais, se não recuperar a memória… - lamentou-se, sentindo uma azia nervosa.

- Não se martirize com isso agora. A memória vai voltar naturalmente, - disse, desejando ardentemente ter razão – com calma vai começar a relembrar pequenas coisas. Precisa é de ter alta daqui e voltar aos locais familiares, a sua casa, ver as suas coisas…

- E se nunca me lembrar novamente? – perguntou-lhe com o olhar nervoso.

- Se nunca se lembrar, começa tudo de novo. – respondeu naturalmente sorrindo-lhe – Já viu o que é poder renascer sem a carga de passado que acumulamos ao longo dos anos? Ficar livre de medos irracionais que temos, não sabemos bem porquê, esquecer as pessoas que nos magoaram, o mal que fizemos aos outros? 

- Visto assim, nem parece tão mau… - concluiu – Não sabe nada sobre mim?

- Não, - mentiu, para não desobedecer às orientações clínicas de César, que ainda queria aguardar pela recuperação natural do doente – e mesmo que soubesse, não poderia dizer.

- Então, se não podemos falar sobre mim, falemos sobre si. – sugeriu, com vontade de continuar à conversa com a enfermeira. – Pode ser?

- Sim, claro. O que quer saber? – sentou-se no fundo da cama, ansiosa com o facto de ser obrigada a mentir-lhe ainda mais. 

- Coisas banais… O nome já sei. É daqui de Coimbra?

- Não, sou de Castelo Branco.

- Ah, daí o sotaque.

- Eu tenho sotaque? – fingiu-se ofendida.

- Tem, mas é bonito.

- Devia ouvir a minha mãe falar, é ainda mais bonito. – disse, corando com o elogio.

- É casada?

- Não, divorciada. – engoliu uma bola de ardor que a queimou até ao estômago.

- Solteira?

- Sim, tecnicamente.

- Filhos?

- Não. – outro ardor queimou a garganta ainda em brasa.

- Não me diga que vive sozinha no meio de gatos? – brincou, tentando desanuviar o ambiente. Percebera que o tema divórcio e filhos lhe era desconfortável, e o antigo psiquiatra dentro de si parecia dar-lhe uma palmada na cabeça avisando-o de que estava a ser indiscreto e insensível.

- Não. Vivo sozinha, mas não tenho gatos nem cão. Já tive um arraçado de boxer, mas faleceu. Ainda estou a ganhar coragem para arranjar outro. Faz-me muita falta, tenho saudades de ter uma companhia saltitante e leal. – confessou, sentindo-se deprimir com aquelas lembranças.

- Eu acho que gosto de cães. Não sei se alguma vez tive um, ou se tenho lá em casa algum a morrer de fome à minha espera… mas se não tiver, também vou arranjar um. Pelo menos não fico a falar para as paredes, sozinho. – gracejou, ficando a matutar no termo “faleceu” que ela utilizara para definir a morte de um animal de companhia. Devia gostar muito desse cão, para o considerar falecido e não morto.

- São uma grande companhia, de facto. – concluiu, ganhando coragem para se despedir. Não podia ficar por ali o dia todo e tinha aulas para dar. – Amanhã trago a tesoura?

- Sim, por favor. – respondeu prontamente – E obrigado uma vez mais.

- De nada. Agora descanse. – levantou-se e acenou timidamente para se despedir, saindo do quarto com uma sensação de estranheza nos membros todos. Fisicamente era difícil aquela nova forma de estar junto dele, a distância formal, a necessidade não satisfeita de o beijar, o tratamento na terceira pessoa, e sempre a mesma energia a rodeá-los, como um íman invisível… seria apenas ela a sentir aquela vibração? Precisava de voltar amanhã, e de falar com o Dr César, para arranjar uma bata emprestada, comprar uma tesoura de cortar cabelo, enumerava distraída caminhando pelo corredor, quando uma mão lhe estacou a marcha.

- Menina Isabel! – exclamou Rosário deliciada por reencontrar a namorada simpática do seu patrão.

- Olá Rosário, como vai? – cumprimentou de volta, estranhando a companhia espampanante e loira da empregada de João, que parecia manter-se estrategicamente de costas, de uma forma muito indelicada.

- Vai-se andando, como Deus quer. Venho visitar o Dr João. Já esteve com ele? Como é que ele está?

- Está bem. Mais animado, já se levantou…

- E não se lembra ainda de nada?

- Não, e por favor, não podemos baralhá-lo com muitas recordações. O Dr César quer que ele se vá recordando naturalmente. – explicou, receosa de que ela mencionasse algum pormenor dramático do que tinha acontecido antes do internamento.

- Claro, claro. Não se preocupe, vou dizer-lhe quem sou, mas não conto nada. – sossegou-a. – Deixe-me apresentar-lhe a minha sobrinha… a N… - parou a meio do nome, procurando por ela confusa, sem a encontrar – Onde é que a cachopa se meteu?

- Rosário, tenho de ir. Depois falamos, ainda preciso ir ao apartamento buscar as minhas coisas que por lá ficaram.

- Eu arrumei tudo. Lembrei-me que quisesse levá-las… - confessou, corando com a insinuação de que Isabel teria de sair de casa do patrão.

- Obrigada, posso lá passar hoje?

- Eu hoje não vou lá, agora já não há necessidade de ir todos os dias… Mas fazemos assim, fica com esta chave, vai lá e depois deixa-a na caixa do correio. – sugeriu de forma prática.

- Perfeito. Então adeus.

- Adeus menina Isabel. E que tudo lhe corra bem. – procurou novamente pela sobrinha no corredor e desistiu de esperar, entrando no quarto, não sem antes se benzer. Não poderia esquecer-se de ser cuidadosa com as palavras. 



Isabel saiu em direção a casa dele, quanto mais depressa resolvesse aquilo melhor. Não poderia esperar muito mais, João recuperava a olhos vistos e rapidamente voltaria para casa. Meteu-se no jipe e acelerou, decidida a apagar todos os vestígios de si mesma do apartamento, apenas considerando deixar Ganesha de olho, como talismã, para o orientar e proteger. Arranjaria outra para a sua casa, João precisava mais que ela.


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(imagem, internet)


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