sexta-feira, 28 de agosto de 2020

"A Mala Vermelha" - Capítulo 19

 



- Posso entrar? – perguntou docemente depois de bater na porta entreaberta do quarto de João.

- Sim. Boa tarde. – respondeu meio espantado com a visão daquela mulher vistosa que lhe sorria familiarmente.

- João… meu amor… - choramingou, aproximando-se da cama devagar, enquanto avaliava a reação dele.

- Desculpe, conhecemo-nos?

- Sou eu, a Isabel. – disse mentindo descaradamente e sentando-se na cama de forma íntima.

- Isabel…? – aquele nome não lhe parecia totalmente desconhecido, mas, ou a proximidade física entre os dois estava a ser demasiado rápida, ou a memória daquela cara não existia simplesmente.

- Querido… estive no estrangeiro quando tudo aconteceu… não fazia ideia de que tinhas sofrido um acidente… quando cheguei hoje a nossa casa e não te vi fiquei em pânico! – explicou, agarrando-lhe nas mãos suadas dos nervos, o que a deliciou – Mas não te preocupes, agora vai ficar tudo bem!

João endireitou-se na cama, para respirar melhor e afastar-se do cheiro do perfume da mulher, que o enjoava ligeiramente, com uma ansiedade a crescer-lhe no peito. Esperara por aquela visita durante vários dias, quando a consciência do que lhe tinha acontecido permitiu o surgimento de várias questões práticas sobre o seu passado. Mas, ao contrário do desejado, não sentia nada ao olhar nos olhos da mulher que se identificava como seu amor.

- Desculpe… mas explique-me com calma quem é… - conseguiu dizer com a boca a secar-lhe.

- Claro, eu não devia ter entrado assim nervosa. Estive tanto tempo sem te ver… e quando soube que estavas aqui… felizmente o acidente não te magoou… - disse, observando-o com cuidado – Eu sou a tua namorada, Isabel. Vivemos juntos há algum tempo, eu sei que não te lembras de nada, o Dr. César explicou-me. – acrescentou, no exato momento em que o médico entrou no quarto e interrompeu o seu discurso.

- Bom dia. – exclamou confuso ao ver uma mulher de mãos dadas com João, que parecia aterrorizado – O que é que passa aqui? – Não se recordava de ter autorizado aquela visita, ou sequer de alguma vez a ter conhecido.

- Bom dia, Dr. – disse João – Esta é a Isabel. – explicou, surpreendido com o visível espanto do médico.

- A Isabel? – virou-se instantaneamente para ela, à procura de uma resposta para toda aquela loucura. 

- Sim, a Isabel, não se recorda? Falámos ontem ao telefone. Sou a namorada do João. – encarou-o firmemente, estendendo-lhe a mão – Prazer em conhecê-lo pessoalmente.

- Prazer. – respondeu gravemente, a sentir-se ferver de raiva com aquela situação lunática. – Pode por favor acompanhar-me ao meu gabinete? Precisava mesmo de conversar consigo. 

Nélia levantou-se, beijou João na boca e fez-lhe uma festa carinhosa, sossegando-o.

- Eu volto já amor.

- Faça favor. – César abriu-lhe a porta e sorriu a João, para não o alertar ainda mais. Sabia que não tinha disfarçado o nervoso daquele encontro e seria ainda mais difícil explicar-lhe tudo depois de perceber o que quereria aquela mulher misteriosa que se intitulava macabramente de Isabel, utilizando o nome das duas mulheres do passado de João. 

Caminhou em silêncio até ao fundo do corredor, seguido por Nélia que não demonstrava qualquer constrangimento com aquela conversa privada e fazia a sua primeira análise do que estava a acontecer. Uma oportunista sem escrúpulos, gritava-lhe a sua vozinha interior. 

- Sente-se por favor. – ordenou, tomando o lugar em frente do outro lado da grande secretária cheia de processos clínicos.

- Obrigada. Então? O que queria conversar?

- Sou amigo do João há vários anos. Ele teve uma mulher chamada Isabel e tem de facto uma namorada também com esse nome, e nenhuma delas é a senhora. Quer explicar-me o que vem a ser isto?

Nélia sorriu indolentemente e recostou-se na cadeira, observando o psiquiatra nervoso.

- Bem, lá porque nunca me viu antes, não significa que eu não faça parte da vida dele. Nós temos uma relação, que começou antes dessa tal suposta namorada. Se ele nunca lhe contou é porque tencionava manter-me em segredo.

- Não, nunca mencionou conhecer uma terceira Isabel. E eu duvido que isso seja verdade. – respirou fundo e continuou – Menina, eu não sei o que pretende com esta abordagem, mas tenho de a avisar de que está a comprometer o tratamento e a recuperação ativa do paciente. Ainda não lhe falámos sobre detalhes do passado que ele esqueceu momentaneamente porque aguardamos que recupere sozinho, sem influências. Aquilo que fez pode ser altamente prejudicial! – disse já exaltado.

- Então deixam um homem já quase recuperado, pelo que pude perceber, completamente às cegas, à espera que se dê um milagre e ele se lembre de quem era? Parece-me bastante cruel. – ironizou – Cruel e pouco correto.

- Desculpe mas não tem qualquer legitimidade para tecer considerações sobre o que é correto ou não no tratamento do paciente. Como já lhe disse, não a conheço de parte nenhuma.

- Pois, já me disse, e eu repito-lhe também: Eu e o João temos uma relação. Eu tenho provas. – tirou o telemóvel da carteira, procurou as fotos dos dois na cama e mostrou ao médico, sem pudores.

- Isso não prova nada. – uma azia ameaçou aparecer com aquela visão que sabia que ela utilizaria também com João.

- Quer apostar?

- Minha menina, eu não vou permitir que faça o que está a pensar! O João não namora consigo. Se andaram enrolados meia dúzia de vezes isso não lhe dá o direito de querer assumir um lugar que não é seu! – berrou, dando uma palmada na mesa.

- Vamos ver se não dá! – respondeu sorrindo – Ele deve estar ansioso por retomar a vida que deixou pendurada e que ninguém o deixa lembrar. – levantou-se e saiu apressadamente do gabinete deixando César embasbacado, voltando ao quarto o mais rapidamente que conseguiu. O médico não teria hipótese de a desmentir, principalmente porque temia confundir ainda mais o amigo. 


João saía do quarto de banho, amparando-se nos móveis, ainda pouco certo nos movimentos, quando Nélia apareceu bruscamente e se lançou nos seus braços, emocionada.

- Que saudades… tive tantas saudades tuas… - levantou a cabeça e procurou o seu olhar, beijando-o com paixão, no exato momento em que César entrava de novo no quarto.

- Desculpe Dr… - disse João envergonhado com aquela indiscrição da namorada. – Já conversaram tudo?

- Não, mas fica para uma outra altura. – rematou o médico, olhando Nélia duramente.

- Querido, agora deita-te, ainda estás fraco. – encaminhou-o para a cama com suavidade – Dr, onde estão as coisas pessoais do meu namorado? – perguntou com os olhos sorridentes, deixando-o encurralado.

- Guardadas.

- Então pode pedir que as tragam? Precisava de usar o carro, o meu está na oficina, ainda não o fui buscar.

- Preciso da autorização do paciente, e nas condições atuais não podemos colocar-lhe essa responsabilidade… - explicava, a tentar safar-se da situação e negar o pedido da mulher, que infelizmente parecia astuta o suficiente para conseguir o que queria.

- Desculpe Dr, mas parece-me um pouco de zelo profissional a mais. Afinal, isso são pormenores de protocolo! Eu preciso de usar o carro e estão lá as chaves! Não achas João?

- Sim, claro. Se ela precisa do carro, dr… - concluiu assarapantado.

- Pronto, está a ver? Peça lá a uma funcionária que traga tudo o que é do João, inclusive a roupa que trazia quando deu entrada. Eu levo para casa.

- Sim, claro. – resignou-se furioso, levantando-se e fingindo-se convencido. Sentia-se a perder o controle de tudo aquilo, a aquela maluca agia demasiado rápido, sem lhe dar hipótese de pensar como poderia reverter a situação sem prejudicar João. Caminhou nervoso pelo corredor, e pensou em telefonar para Isabel, perguntar-lhe se saberia quem era aquela mulher misteriosa, mas iria simplesmente magoá-la com aquela história surreal. Calma, dizia a si mesmo, era preciso ter calma para não piorar tudo. Pegou nos pertences de João e colocou-os num saco da clínica, suspirando. Quase quarenta anos de profissão e nunca tinha lidado com uma excêntrica daquele calibre. Lisa saberia como lidar com ela, lamentou-se, porque não conseguia ele calar a matraca à loira sabichona?



Isabel fechou a porta de casa de João e limpou uma pequena lágrima que teimava em querer sair desde que se encaminhara para a saída. O medo de nunca mais ali voltar invadia-a, tornando-a ansiosa e frágil. Sabia que estava a dramatizar, era uma questão de tempo até João recuperar a memória, mentalizava-se, colocando a chave na caixa do correio, como Rosário pedira. Todas as suas roupas, saco de viagem, vestígios diretos e indiretos da sua breve presença na casa foram meticulosamente retirados, e Isabel sabia que era para o bem de João. César estava certo, não poderiam criar uma realidade alternativa na sua mente, contando-lhe pormenores importantes do passado esquecido, simplesmente porque iriam colidir positiva e negativamente com o que o seu subconsciente bloqueava. Quando ele se lembrasse, deveria estar o menos influenciado possível, para conseguir lidar de forma saudável com os sentimentos que todas as memórias lhe trariam. Isabel sabia-o, percebia e respeitava a sua opinião profissional, e deixou apenas Ganesha, discretamente arrumado numa prateleira superior, praticamente invisível, para o guardar durante a noite, assim que regressasse a casa. Saiu do prédio e dirigiu-se ao jipe, acelerando nervosamente. Já estava atrasada para a sua aula da tarde e ficar por ali era torturante. Felizmente tinha o yoga para a ajudar, suspirou agradecida.


Esperou que Isabel desaparecesse na rua e saiu detrás da carrinha estacionada, correndo até à porta do prédio e apressando-se a retirar da caixa do correio a chave da tia. Se tudo corresse como planeara desde a clínica até ali, nunca mais a Rosário entraria naquela casa e essa era uma das primeiras coisas a providenciar, afastar a empregada de João e do seu apartamento. Entrou em casa e sorriu de orelha a orelha, com uma satisfação que lhe fazia inchar o peito. Há muito tempo que não se sentia tão feliz, realizada e optimista. Na sua cabeça nada poderia correr mal, era tão fácil que dava vontade de gargalhar. A vingança mais fria que poderia ter imaginado, assumir o lugar de Isabel, deitar-se na sua cama, conduzir o seu carro, usufruir de todas as mordomias chiques que João nunca lhe dera a oportunidade sequer de desejar, expulsando-a de casa como se fosse um pedaço de esterco sem utilidade. Iria ocupar o seu lugar na vida dele, usá-lo enquanto a sorte lhe permitisse, organizar-se financeiramente, introduzindo-se naquele meio social requintado, e se João recuperasse a memória, depressa encontraria outro possível namorado rico a quem se encostar. A vida tinha-lhe sido até então madrasta, estava na altura de mudar as regras e fazer-se esperta. Esperar pela bondade do destino ficava fora de questão, nem que para isso tivesse que se transformar em Isabel.


- Podes por favor explicar-me isso tudo com calma? – Elisabete esforçava-se por entender o discurso atrapalhado e nervoso do marido, que lhe ligara antes de chegar a casa, o que era raro e sinal de problemas.

- Lisa, o João está a ser vítima de burla, entendes? Estava lá uma mulher no quarto que assumiu ser a “Isabel”, a namorada, me enfrentou descaradamente, sem papas na língua… - gemeu, a sentir-se patético à medida que verbalizava tudo aquilo.

- Tem calma, demoras muito a chegar? Não é melhor falarmos em casa, tomas um banho, jantamos e explicas-me tudo com tempo? Vamos, não há nada que não se possa resolver, anda. Conduz com calma que eu vou terminar o jantar. – disse carinhosamente, transformando a neurose do marido automaticamente.

- Sim, sim… tens razão, já vou a caminho. – confessou, respirando fundo – Até já. – desligou o telefone e concentrou-se no trajeto, olhando-o com mais atenção que o costume. Fazia aquela estrada, ida e volta, há vários anos, mas só quando ficava realmente preocupado é que lhe prestava atenção, procurando nos seus pormenores uma âncora para o desespero. Agarrava-se à enormidade das árvores à sua volta, estudando a sua forma, para não pensar em nada do que assistira naquele fim de tarde. A Lisa saberia desdramatizar tudo aquilo, encontrar uma solução prática e tirar-lhe aquele peso da culpa, pensou, aliviado com a perspectiva de chegar a casa. Não poderia nunca ser Psiquiatra se não estivesse casado com ela, admitiu, recordando-se de lhe ter pedido um dia que fosse sua e nunca o deixasse, por puro egoísmo, a que muitos chamavam de amor. Sem ela não seria nada, amava-a, ou melhor, precisava-a mais que tudo. 




“… quem está livre és mesmo tu! O menino ria, deitando a cabeça para trás, em provocação, mas adorava-o, não conseguia sentir raiva dele. Tão bonito quanto atrevido, sempre a sorrir a cada partida, sem nunca perder a energia infantil, como um pião giratório, que enlouquecia tudo e todos. Anda cá! Gritou, correndo no seu encalço, excitado com a fuga. Queria ver-lhe o rosto, perceber porque se sentia tão feliz perto dele. Sabia que o conhecia, só queria apanhá-lo a tempo de o olhar, pois sentia-se a acordar, estava quase lá, a pequena mão escapava-se-lhe como se estivesse besuntada de manteiga, mas nesse momento percebeu que não, era geleia, de marmelo, que a avó fizera de manhã e lhes dera dentro de um pão, que cheirava a amor e felicidade, o cheiro dos lanches da avó Lena…”


João acordou sobressaltado com aquele breve sonho, efeito da digestão do jantar com mais uma dose de comprimidos variados, a nova sobremesa do hotel de cinco estrelas a que estava confinado, sem data para sair. Não era a primeira vez que lhe aparecia uma criança nos sonhos, pensava curioso, nem aquele cheiro a pão fresco, mas César alertara-o de que os sonhos noturnos poderiam ser confusos e pouco credíveis. Era necessário deixá-los aparecer, sem que isso se transformasse num factor de mais angústia. Havia remédios para não sonhar, informaram-no numa das visitas consulta, mas só seriam necessários se ele não lidasse positivamente com essas manifestações do inconsciente. Como estava farto de medicamentos, esforçava-se para não sucumbir à angústia que o rosto indefinido do menino lhe provocava. 

E também havia Isabel, a bela mulher que aparecera naquela tarde, trazendo-lhe mais um raio de esperança. Era nela que teria de pensar, como um objetivo claro para a sua recuperação total. Iria visualizar a sua cara antes de voltar a adormecer, na tentativa de sonhar com ela. Estava farto de ser prisioneiro do passado, queria dedicar-se ao futuro.



César abriu a porta de casa e sentiu automaticamente metade do peso sair-lhe de cima. Dias de trabalho duros eram sempre difíceis de ultrapassar, mas por vezes dava por si a desejá-los, só para sentir aquele alívio quando entrava em casa e recebia aquela energia positiva que Lisa colocava em tudo, nos pequenos pormenores. Uma flor diferente no hall, aquela velinha acesa em honra da Sagrada Família que os olhava da sapateira da entrada, o cheiro de um ambientador por cima da mesa de café no centro da sala que se misturava com o odor a pele gasta dos sofás já a pedir reforma, mas que teimosamente iam ficando por serem os únicos anatomicamente adaptados ao casal. Tudo aquilo o curava, menos naquele dia. Sentou-se no seu lugar, como habitualmente, à espera que Lisa aparecesse de uma das divisões, enquanto ele remoía nas suas dores, sentindo-se especialmente em baixo. Uma mistura de frustração com medo, que não conseguia bem explicar, apertavam-lhe a barriga. Levantava-se do sofá quando Elisabete lhe surgiu por trás, abraçando-o com um braço e colocando-lhe um copo generosamente servido de whisky, com duas pedras a dançar, tilitando.

- Como é que sabias que ia mesmo agora buscar um? – perguntou espantado com a clarividência da mulher.

- Muitos anos, meu querido. Já tenho o Doutoramento em maridos psiquiatras. – brincou, sentando-se do seu lado intimamente.

- Sim, é verdade, eu tenho muita sorte. Não sei como é que os meus colegas aguentam aquelas mulheres de vinte e poucos anos,… não é que estejas velha, - sorriu-lhe atrevido – mas és como eu, andamos na mesma rotação. Acho que já tinha pirado se não fosses tu. – confessou, pegando-lhe na mão e dando-lhe um beijo.

- Isso é verdade, tens mesmo muita sorte! – gracejou – Agora explica-me lá o que te deixou assim tão cabisbaixo, velhote!

- Ainda não percebi bem o que aconteceu. A imagem que ilustra é um grande trator a arrebanhar tudo e todos, passando por cima sem dó nem piedade.

- Deixa-te de ilustrações, - disse curiosa – conta-me tim tim por tim tim o que viste. 

- Bem, quando cheguei ao final da tarde ao quarto do João, entro e vejo uma mulher loira, vistosa, sentada à sua beira na cama, de mãos dadas com ele. – começou a explicar – Fiquei naturalmente surpreso com a cena, nunca a tinha visto, e o João parecia também estupefacto, coitado.

- Pois, ele ficaria estupefacto com qualquer coisa, não se lembra de nada… - acrescentou.

- Claro. Mas a tipa tinha qualquer coisa no olhar que assusta, sabes? Apresentou-se como a “Isabel”, namorada do João. Acreditas? – exclamou infamado.

- Hum… Sim, e que mais? – perguntou, de olhar fixo no nada, concentrada nos pormenores do discurso do marido.

- Chamei-a logo ao gabinete, para tentar perceber o que é que ela queria… Confrontei-a com a verdade, que sabia que ali havia esquema e ela não negou nem confirmou. Apenas me esclareceu que era conhecida do João e mostrou-me as provas dessa relação… umas fotos nojentas dos dois na cama. 

- Como eram as fotos? 

- Como eram as fotos? – perguntou escandalizado com a curiosidade da mulher.

- Sim! Como estavam? Deitados, de bruços, de cócoras… diz lá!

- O João deitado, de olhos fechados, e ela em várias posições… a fotografar, com o braço estendido, assim. – demonstrou como deveriam ter sido captadas as fotos, pela lógica da perspectiva.

- E depois? O que disseste quando as viste?

- O óbvio, que aquilo não provava nada! E ela desafiou-me, literalmente, levantou-se e saiu disparada de volta para o quarto dele… Quando a consegui alcançar, já a apanhei aos beijos com ele.

- Esperta… E o João? Embasbacado, não? 

- Coitado, com cara de quem não sabia onde se meter… Mas o pior não sabes… - acrescentou gravemente – Ela pediu os pertences pessoais dele na sua frente, chaves do carro, casa, roupa, e não nos deu outra hipótese senão obedecer-lhe. Como é que íamos explicar depois ao João que não podíamos dar as chaves à “namorada”, sem transformar aquilo num problema ainda maior?

- Que loucura… E agora a tipa deitou a mão à casa e ao carro? – perguntou, sem precisar de uma resposta – Será que está lá neste momento?

- Não sei, espreita aí da varanda e vê se há lá luz. – disse sem emoção na voz, bebendo mais um gole.

Elisabete obedeceu energicamente, olhando discretamente para o prédio ao lado e confirmando que a tal “Isabel” estava em casa do João. Uma ideia surgiu-lhe, seria arriscado, mas precisava tentar ajudar o seu amigo e resolver a trapalhada que o marido não tinha tido coragem de fazer.

- Não há luz nenhuma… - mentiu, fechando um pouco do estore para dissuadir o marido de confirmar o que ela dizia – Bem, deixa-te estar aí a terminar o teu whisky, relaxa, que eu vou lá abaixo ver o correio e já venho. Podias ir tomar um banho, o jantar está quase pronto, e já continuamos a conversa. – beijou-o na cabeça e saiu em direção à porta de casa, sem demonstrar qualquer constrangimento.

- Está bem. – disse, engolindo o resto da bebida de uma só vez. A ideia do banho animava-o, e precisava de jantar rapidamente, senão o whisky tomar-lhe-ia conta do juízo.

Elisabete bateu a porta de casa e apressou-se a dirigir-se ao prédio do lado, onde a tal mulher se encontrava, a ocupar uma casa que não lhe pertencia. Não sabia bem o que lhe iria dizer concretamente, mas precisava de a ver ao vivo, dirigir-lhe algumas palavras para tentar entender com que tipo de pessoa o João teria que lidar, e consequentemente, todos eles. Tocou a uma campainha ao acaso e pediu educadamente para lhe abrirem a porta do prédio, inventando uma desculpa coerente. Ninguém desconfiava de uma voz de mulher aflita, comprovou, ao ouvir o som da porta automática a abrir prontamente. Subiu as escadas, evitando o elevador, na tentativa de ganhar tempo para se preparar, sentindo-se ligeiramente nervosa. Agora não poderia desistir, e teria de ser rápida, para que César não desconfiasse.

Colocou o ouvido delicadamente junto à porta de casa de João, parecia-lhe ouvir música um pouco estranha e agressiva, daquelas que passavam na rádio do café perto da escola de yoga. Tocou à campainha e fez o seu melhor ar, certa de que a rapariga iria estudar a imagem pelo óculo e esperou um instante antes de premir novamente o botão, insistindo.

- Sim? – uma voz em alerta soou do outro lado.

- Sim? Vizinha? Desculpe incomodar, mas estou muito aflita! – disse fingindo-se com um problema grave.

Nélia abriu uma nesga da porta, desconfiada daquela visita repentina, mas já tinha denunciado a sua presença, não poderia deixar a mulher sem resposta.

- O que aconteceu?

- Desculpe querida, mas moro aqui ao lado, e acho que o meu gato saltou para a sua varanda… estou tão aflita, posso ir lá ver se ele está bem? – choramingou, já entrando pela casa, desaustinada.

- Sim, claro… - reagiu sem hipótese – Mas tem a certeza de que o gato veio para esta varanda? – perguntou, abrindo a porta de vidro e espreitando para o local já escurecido da noite.

- Ai, meu Deus… não está aqui! – exclamou, deitando as mãos à cabeça – Eu vi-o saltar… não me digam que caiu lá para baixo!

- Tenha calma, os gatos têm muitas vidas! Sente-se um pouco, pode ser que tenha saltado novamente para a vossa varanda… - Nélia esforçou-se por ser simpática, afinal iria morar ali por uns tempos, não queria ser mal falada.

- Obrigada… - fungou, tirando um lenço do bolso e fazendo de conta que limpava uma lágrima dos olhos – Podia dar-me um copo de água? Estou muito nervosa. – pediu, tentando perceber se ela já era íntima do local, observando-a a procurar o armário correto dos copos e analisando todas as movimentações da loira espampanante. 

- Aqui tem. Beba. Vou espreitar melhor a varanda. – Nélia deixou-a a recompor-se, não lhe apetecia nada ficar a dar conversa a mulheres com chiliques da menopausa.

- É muito atenciosa… - suspirou, assim que a rapariga voltou da varanda – Desculpe invadir assim a sua casa… deve estar atrasada já com o jantar, não é? – comentou, devolvendo-lhe o copo e mostrando intenção de sair – O Dr deve estar a chegar…

- Eh… sim, ia agora começar a fazer o jantar. – mentiu, começando a ficar incomodada com o seguimento da conversa.

- Engraçado, nunca a vi aqui no prédio. Está cá há pouco tempo, de certeza.

- Sim, sim. Mudei-me apenas há algumas semanas… Mas quase nunca saio de casa. O João não quer que eu trabalhe. – inventou, tentando encaminhar a mulher para fora do apartamento.

- Ah, faz muito bem. Uma rapariga assim tão bem apessoada, é normal que ele tenha ciúmes e a queira guardar! – gracejou, dando-lhe o braço e deixando-se levar até ao corredor. Já tinha percebido o que queria e feito a primeira abordagem à mulher. Já não era uma total estranha para a suspeita de burla, e isso seria importante.

- Obrigada, mas agora tenho de ir fazer o jantar…

- Claro, querida. Obrigada pela sua simpatia, vou procurar o “Tareco” na casa da outra vizinha. Adeus, e espero vê-la mais vezes! – deu-lhe um par de beijos e deixou-a fechar a porta, antes de se lançar em direção a sua casa. O marido já devia estar pronto do banho e a lasanha tinha ficado no forno por esquecimento. Seria uma catástrofe!


- Mas onde é que tu te meteste? – exclamou César aborrecido, à luta com as luvas de pano com que tentava tirar o jantar do forno.

- Desculpa, a Dona Perpétua apanhou-me lá em baixo e não se calava! – mentiu, tirando-lhe tudo das mãos e puxando a travessa com facilidade para a mesa já posta na sala. – Vamos, que isto está no ponto! – disse animada.

- Cheira muito bem… Mas não tenho assim muito apetite.

- Nem penses em fazer-me uma desfeita dessas. Nada de depressões imaginárias, tens de comer, e este é um dos teus pratos favoritos! Vamos, dá cá o prato! – ordenou, tomando as rédeas da situação, ali quem mandava era ela, como uma mãe de substituição, mantendo a família na ordem. 

César obedeceu e deixou-a encher o prato, sorrindo ligeiramente, afinal, era muito bom ter alguém que gostava dele ao ponto de o querer alimentar como uma criança. Serviu os copos de vinho e lançou-se na Lasanha, adiando um pouco o resto da conversa sobre João. Lisa tinha aquele dom, o de o chamar à realidade mais básica, puxando-o daqueles planos mais abstratos e angustiantes dos pensamentos. Comer era um dos seus trunfos, e se ela cozinhava bem, pensou satisfeito.


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