terça-feira, 25 de agosto de 2020

"A Mala Vermelha" - Capítulo 16

 


Entraram em casa de João, Isabel descalçou-se à entrada e deixou-se cair no sofá, exausta de tantas emoções. Demoraram quase toda a tarde na esquadra, entre declarações, conversas formais e informais, com uma visita a casa de Isabel para recolha de provas, fotos, impressões digitais e outros dados importantes para a investigação que se iria iniciar depois de apresentada a queixa contra Tiago. João mantivera-se imperturbável, sem recuar nas suas intenções, exigindo que os polícias olhassem todos os cantos da casa, numa versão dura e implacável de si mesmo, que a preocupou ligeiramente. Sabia que ele tinha os seus próprios fantasmas por resolver, sofria com eles, e ela tinha-lhe trazido mais um para o ensombrar.

Esticou-se no sofá, e procurou com o olhar por Filipe, que estranhamente ainda não a tinha vindo cumprimentar. 

- Onde está o Filipe? – perguntou-lhe sem se mover.

- Vou ver na varanda. Deixa-te estar. – respondeu-lhe, deixando-a a descontrair. Devia estar de rastos depois daquilo tudo. Tinha muita força mental para lidar com os problemas, dizia a si mesmo surpreendido. Já tinha visto pessoas desabarem por muito menos, mas ali estava ela, apenas abatida e cansada. Nada de histerismos, nem descontroles, e suspeitava que o motivo era ele. Não que se achasse importante ao ponto de a conseguir ajudar a manter o equilíbrio, mas tinha a impressão de que ela o estava a tentar proteger, engolindo a dor e forçando-se a lidar com os problemas de forma minimamente controlada. Não sabia bem se isso era positivo ou não, se não seria injusto para Isabel estar preocupada com ele num momento daqueles. 

Olhou a varanda e ficou surpreendido por não encontrar o cão estendido ao sol, como seria de esperar. Uma leve dor de barriga invadiu-o, deixando-o desconfortável. Onde se teria metido o animal? Fingiu naturalidade ao passar por ela em direção ao quarto, para não levantar suspeitas desnecessárias e fez uma pequena prece para que Filipe estivesse esparramado na sua cama a sujar-lhe a colcha toda de pelos. Abriu a porta e não o encontrou também. Um nervoso miudinho fê-lo abrir freneticamente todas as divisões da casa, sempre vazias e silenciosas. Passou as mãos pelo cabelo e respirou fundo, onde estaria o cão? Isabel surgiu atrás de si, olhando-o interrogativamente e reagiu instantaneamente à energia vinda de João, que já respirava aceleradamente.

- Não está em lado nenhum, pois não?... – gemeu, sentindo-se a gelar.

- Não… - agarrou-a pelos braços, apoiando-a em si, enquanto pensava no que fazer e no que poderia ter ali acontecido. – Tem calma, deve haver uma explicação. Vou telefonar à Rosário. – sem a largar encaminhou-se para a sala e sentaram-se no sofá, enquanto ligavam para casa da empregada.

- Estou? – atendeu Nélia descontraidamente.

- Estou? – aquela voz parecia-lhe familiar, mas dedicou pouco tempo a pensar nisso. – A Rosário está? É o João Marques, precisava de falar com ela com urgência por favor.

- Ah, sim, um momento…  - sobressaltou-se com aquela coincidência e fingiu um tom de voz mais grave, correndo a chamar a tia que atendeu prontamente.

- Sim, Dr? O que se passa? – perguntou nervosa. Sabia que aquela visita à hora de almoço lhe parecera estranha. Só temia que tivesse feito asneira ao confiar no homem.

- Olá Rosário. Onde está o Filipe? – perguntou de chofre a sentir-se cada vez mais desconfiado de que ali havia esturro.

- O dono apareceu aí em casa e disse que tinha combinado consigo para o levar… - respondeu com a voz fraca ao detetar no patrão nervosismo.

- Dono? – berrou – Mas qual dono? – uma dor aguda começou a nascer-lhe na cabeça, estalando à medida que a respiração se apressava.

- Ai valha-me Deus… Não me diga que aquele homem me mentiu… - choramingou Rosário que se sentou a desfalecer numa cadeira que tinha por perto.

- O que lhe disse ele exatamente? – forçou-se a ser prático, não seria prudente gritar com a empregada, afinal parecia ter sido enganada. 

- Que era o dono do animal, e que tinha combinado consigo ir buscá-lo para o levar ao veterinário, sabe, por causa da pata partida… e eu realmente achei estranho o cão rosnar, mas ele trazia açaime e tudo para lhe pôr, e disse que o cão era perigoso… - tinha ficado aliviada quando o homem o levara dali, pensou angustiada.

- Como era ele? O que tinha vestido? – perguntou automaticamente.

- Bem… muito elegante. Bem parecido. Moreno, de barba escura, óculos, meio calvo… - explicou.

- Até amanhã. – desligou o telemóvel sem mais conversa, mantendo Isabel agarrada a si, de olhos rasos de água, sem reagir. Pela descrição de Rosário tinha-o visto de manhã, e não tinha sido por coincidência. Quase lhe batera no carro, assustando-o de propósito, matutava furioso com a ousadia do traste. – Isabel, tem calma. Tudo se vai resolver. – disse-lhe, tentando encontrar o seu olhar, que parecia perdido. – Eu vou tentar encontrá-lo. Vamos, ficas com a Elisabete e o César. – concluiu, levantando-a e encaminhando-a para fora de casa.

- Por favor, não. Eu quero ir. – suplicou, desesperada com a ideia de ficar sozinha.

- Eu vou apenas a tua casa certificar-me de que ele não o levou para lá e vou direto à polícia. Prometo que tenho cuidado. – explicou, continuando a caminhada sem abrandar o passo.

- Não, não, por favor, não podes ir sozinho… - começou a implorar já a sentir-se descontrolada com a ideia de que desaparecesse também como o cão.

- Não vou sozinho, vou telefonar ao Salvador e ao Janota, se te sentes mais segura assim. Pode ser? – perguntou-lhe, abraçando-a no elevador.

- Sim, por favor, não vás sozinho.

- Não vou sozinho, prometo. – beijou-lhe a cabeça e dirigiram-se para o prédio do amigo, subindo até ao primeiro andar pelas escadas, aceleradamente.


Deixou-a com Elisabete, angustiado com o farrapo em que Isabel se tinha transformado, desde sua casa até ali, cada vez mais furioso com aquele psicopata que não os deixava em paz. O seu lado racional dizia-lhe para ir diretamente à polícia, mas se o traste tivesse feito algum mal ao cão, iria expô-lo em casa de Isabel, e ele não podia permitir que ela o visse ou descobrisse, sequer. Telefonou aos dois amigos, como lhe prometera e combinaram encontrar-se na quinta de Isabel, quem chegasse primeiro esperava no portão.

- Sabes o que vai acontecer quando lá chegares, não sabes? – perguntou César gravemente, temendo que João tivesse uma nova crise.

- Sei. Ele matou o cão, quer amedrontá-la e perturbar-me. – respondeu, acelerando a fundo.

- Achas que estás capaz de lidar com isto?

- César, por favor, não sou nenhuma menina de escola. – resmungou chateado com a insinuação de que não teria capacidade de lidar com tudo aquilo.

- Pois não, mas pelo menos trouxeste os comprimidos de SOS? – perguntou de forma prática.

- Sim… - resignou-se, pois sabia que o amigo tinha razão. Já sentira as primeiras palpitações ao telefone com Rosário, esperava que o cão não tivesse sido maltratado. Gostava dele, e a crueldade gratuita seria difícil de engolir.

Fizeram o restante caminho em silêncio, até chegarem à entrada da casa, onde já esperavam Salvador e Janota, que parecia diferente, com uma postura de ataque iminente, como se estivesse em alerta para o pior, o que o acalmou um pouco. Era bom saber que não enfrentaria aquilo sozinho, e se desmaiasse teria alguém para o ajudar.

- Onde está a Marta?, quer dizer, a Isabel? – perguntou Janota com cara de poucos amigos.

- Calma, ela está com a mulher do César. – apontou para o amigo que saía do carro. – Obrigado por terem vindo. Não era preciso tudo isto, só vim procurar o Filipe, que desapareceu de minha casa, hoje pela hora do almoço… - explicou, entrando pelo portão e sendo seguido pelos três homens.

- Mas fugiu? – perguntou Salvador.

- Não. Em princípio deve ter sido o ex-marido da Isabel que o levou. A minha empregada disse que apareceu lá um homem a dizer que tinha combinado comigo ir buscá-lo, que era o dono…

- Filho da mãe… - rosnou Janota, cada vez mais desconfiado de que aquilo não ia terminar bem. – João, deixa-me entrar primeiro, por favor. – pediu-lhe, afastando-o da porta e assumindo o controle da investigação informal. Entrou silenciosamente na casa escurecida e fechada há alguns dias, sem detetar sinais de presenças humanas. Inspeccionou as primeiras divisões, em silêncio, olhando tudo pormenorizadamente, como tinha aprendido nos treinos da sua antiga profissão, tentando não dar ouvidos à sua intuição que o enervava.

João não conseguia aguentar aquele ritmo lento de Janota, e lançou-se até ao local que sabia interiormente que seria o escolhido por Tiago para deixar algum outro “recado”. A porta da sala de prática estava trancada, o que o fez arrepiar-se dos pés à cabeça e estacar, parando por um momento para raciocinar. Colocou o ouvido na porta, espreitou pela fechadura, mas não conseguia perceber o que se teria passado lá dentro. Um cheiro estranho e acre surgiu de uma maneira agressiva, e os três homens surgiram por trás de João, tentando perceber o que seria.

- Sangue. – disse Salvador com a garganta seca ao olhar para os pés, que pisavam sangue vindo debaixo da porta, e que continuava a sair sem parar.

- Ajudem a abrir! – suplicou João, que forçava a fechadura nervoso.

-Calma, deixem-me passar. – ordenou Janota autoritariamente. Posicionou-se de lado e dirigiu toda a sua força contra a porta, rebentando com facilidade o encaixe de madeira, escancarando a porta com estrondo. – Foda-se…. 

Entraram os quatro devagar, olhando incrédulos e horrorizados a cena dantesca na sala de yoga. Filipe pendia do candeeiro de teto, a sangrar, como um animal de abate, pendurado pela pata partida e enfaixada, com a expressão vazia dos cadáveres, ainda com restos de líquidos corporais a saírem por um golpe profundo ao longo da barriga, girando em câmara lenta. João caiu de joelhos no chão coberto de sangue, apoiando-se com as mãos, a sentir a sala à roda, como se girasse com o cão, e uma dor na barriga perfurou-o violentamente, fazendo-o vomitar sem controlo, num movimento repetitivo e convulso.

- Ajudem-me a levá-lo daqui para fora! – berrou César, que o puxava por debaixo das axilas, tentando arrastá-lo sem sucesso.

César, Salvador e Janota agarraram-no em peso e tiraram-no da sala, levando-o até à rua, por sugestão do psiquiatra que escorria suor, empalidecido e transtornado. Temia que aquilo fosse demais para o amigo, que João não se levantasse mais voluntariamente, se mantivesse em posição fetal, até conseguirem chegar a um hospital e receber ajuda especializada. As mãos tremiam-lhe quando puxou pela cara de João, procurando o seu olhar, pedindo-lhe que lhe respondesse a questões simples, trazendo-o para a realidade imediata. O amigo mantinha-se apático e perdido, sem reagir, e Salvador não esperou a ordem de César, chamando o Inem imediatamente ao perceber o que tinha acontecido. João entrara no buraco negro das depressões, todas aquelas emoções provocavam-lhe um esgotamento nervoso, teriam de agir depressa para que não se afundasse demasiado.

Janota deixou-os com João na rua e tratou de limpar o local do crime. Sabia que ali tinham ido sem polícia para que Isabel não soubesse o destino que o psicopata dera ao animal, e ele iria terminar aquela tarefa. Tirou o cão do teto, trouxe-o para a parte de trás da casa e depois de procurar na garagem encontrou uma pá, abrindo uma cova e enterrando o corpo. Marcou o local com uma estaca velha e voltou para dentro de casa. A pior parte estava concluída, enquanto houvesse cadáver a testemunhar o crime aquela sensação de enjoo não lhe permitia pensar com clareza. Havia ainda muita limpeza a fazer, lamentou-se, agradecendo logo de seguida aquele sangue ser de cão e não de humano. Há muitos anos que não se via em situação semelhante, e prometera a si mesmo que terminaria com aqueles filmes de terror no seu dia-a-dia. Pediu a Deus que aquele fosse o último e tratou de pôr mãos ao trabalho, aquela sala teria de ficar imaculada. Alguém tem de o fazer, suspirou para si mesmo.


- Já está quase tudo limpo… - surpreendeu-se Salvador ao entrar na sala de yoga, depois de César ter acompanhado João na ambulância até à urgência da clínica. Sentia-se como se tivesse sido atropelado por um camião, com dores em todos os músculos, e admirou aquela tenacidade do segurança que não se abalava com as desgraças alheias e fazia sempre o que ninguém tinha coragem, o que tinha de ser feito. – Como é que conseguiste isto? Parece milagre… - exclamou meio afónico.

- Experiência. – respondeu pragmaticamente.

- Janota, desculpa ter-te deixado sozinho a limpar… e o cão? – olhou o local onde estivera horas antes Filipe a sangrar para morrer.

- Enterrado. Já só falta o corredor e arranjar a moldura da porta. – enumerou, passando por Salvador com o balde, para trocar por mais água limpa e lixívia.

- Tu tens um estômago de aço… - concluiu, olhando-o orgulhoso.

- Não, apenas sei separar as emoções dos acontecimentos. E fui treinado para isso. – explicou, passando novamente por Salvador já com outro balde e retomando a limpeza.

- Tenho de te aumentar. – disse em voz alta, sorrindo com amizade para Janota.



Isabel percorria a casa em passo lento, de braços cruzados a rodear a cintura, num autismo propositado, se parasse e desse corda à sua imaginação enlouquecia. Aquela espera corroía-lhe o peito e cada vez se sentia mais desesperada. Obrigava-se a respirar compassadamente, exigindo o mínimo de controlo ao seu corpo, que lutava para que ela caísse e esperneasse, libertando toda a tristeza e frustração.

- Porque é que eles não telefonam nem atendem os nossos telefonemas? – perguntou a Elisabete que se mantinha na sala de pé a olhar para fora da janela.

- Não sei querida… Mas as piores notícias são sempre as primeiras a chegar, não é? – consolou-a, pouco certa do que estava a dizer. Se o marido ainda não as tinha tranquilizado com alguma explicação era porque estava demasiado ocupado com algo muito grave. Engoliu em seco e voltou-se de novo para a rua, que começava a escurecer.

- Talvez… - sussurrou, retomando a caminhada pelo apartamento. Entrou para o corredor dos quartos, quando uma voz masculina surgiu do hall de entrada, provocando-lhe um arrepio. Lançou-se na direção da entrada da casa com o coração na boca e estacou ao ver César sujo de sangue nas roupas e sozinho. – O João?

- Isabel, o João ficou na clínica. – disse com a voz cansada, sentando-se de seguida.

- O que aconteceu? – Sussurrou emocionada, chegando-se até Elisabete que lhe deu as mãos em solidariedade. 

- O cão estava lá, mas morto. – suspirou a meio para a deixar respirar – Mas o João não aguentou ver. Ele foi-se abaixo. Eu temia que isto pudesse acontecer… Tivemos de o levar para a clínica. – explicou.

- Mas foi-se abaixo como? Explique-me, por favor… - implorou, já sem segurar o choro.

- Ele tem uma depressão desde os 14 anos, já sabes o que lhe aconteceu com certeza. Nunca recuperou totalmente da morte do irmão, depois foi a mãe que se suicidou. Ele manteve-se sempre em negação, resistia à terapia, era-lhe muito duro falar. – uma culpa profissional acompanhava-o desde essa altura, que mantinha escondida, lamentou-se César – Depois a relação com a mulher, Isabel, nunca foi a perfeita. E quando não estamos bem connosco, não conseguimos estar com outros. Havia muita tensão e divergências entre eles… enfim, depois ela adoeceu e ele assumiu a morte dela como penitência pelas suas falhas como marido. Nunca o consegui convencer do contrário…

- Mas e hoje? O que foi que o fez piorar? O que é que ele tem? – exclamou nervosa e impaciente com aquele discurso interminável.

- Tem calma, ele agora está bem. O João teve um esgotamento nervoso quando viu o cão morto. Havia muito sangue… Não interessa os pormenores. – retraiu-se de lhe fazer uma descrição do horror que tinham presenciado.

- Esgotamento? – perguntou derrotada – Eu quero vê-lo, por favor. Onde é que ele está?

- Hoje não pode receber visitas, tem de descansar. Não valeria a pena lá ires, - explicou paternalmente – está medicado, não vai acordar. Amanhã eu vou contigo. Prometo que tudo se vai resolver, ele vai ficar bem.

- Sim querida, deixemo-lo descansar. E tu também tens de dormir. Ficas aqui connosco?

- Não. Vou dormir em casa do João. Preciso de ficar sozinha… Mas obrigada… - soltou-se de Elisabete, pegou no seu telemóvel e arrastou-se para fora do apartamento, como um zombie.

- Espera Isabel, toma, trouxe as coisas pessoais dele. Deve aí estar a chave de casa. – César estendeu-lhe um pequeno saco que trazia no bolso do casaco e analisou-a rapidamente. Parecia em choque, mas consciente. Não haveria perigo de ficar sozinha. – Promete que trancas a porta e não a abres a ninguém. 

- Sim, claro. Obrigada. – olhou o saco e desceu as escadas, contando os passos, como fazia em pequena, sentindo aquela estranheza na perna que pisava mais vezes o chão. Sabia que a sua mente procurava distrações que a mantivessem operacional, pelo menos até conseguir chegar a casa, depois logo se veria o que lhe aconteceria. Contou dezenas de degraus, ficando com um número ímpar a incomodá-la, viu ao longe um degrau para subir para o passeio do outro lado da rua e fez os cálculos até lá chegar, de forma a compensar a outra perna e terminar aquela dormência. Resolveu a sua incómoda matemática de passos e entrou no prédio, voltando rapidamente atrás para se certificar de que não tinha visto o carro dele ao longe. O coração disparou numa correria atrapalhada, quando a razão lhe disse que João estava sob medicação no hospital, ao mesmo tempo que o carro parou ao seu lado e Salvador lhe sorriu com compaixão.

- Olá Isabel. Viemos trazer-te o carro. Já sabes o que aconteceu? – perguntou a medo.

- Sim. Obrigada, podes estacionar na garagem? Acho que não o vou usar.

- Claro. O Janota vem aí também, queres um pouco de companhia?

- Não, obrigada, prefiro ficar sozinha… - respondeu olhando Janota que se aproximava já depois de estacionar.

- Isabel, como estás?

- Não sei. Obrigada por terem ido com ele. Vou tentar descansar, se não se importam.

- Espera. Deixa-me só certificar-me de que não há ninguém na casa ou no prédio, pode ser? Também podemos aqui dormir, se quiseres. Para não ficares sozinha, pelo menos hoje. – sugeriu, com Salvador a acenar positivamente de dentro do carro.

- Acham que não seria abusar da vossa paciência? Há lá muitos quartos… - a ideia de não ficar sozinha em casa animou-a um pouco. Poderia isolar-se no quarto, mas sabendo que haveria pessoas nas divisões ao lado, prontas a ajudar, se fosse caso disso.

- Claro que não, já tínhamos falado sobre isso os dois. – explicou, referindo-se a Salvador.

- Então tudo bem. Acho que aceito. – suspirou e abraçou Janota, que a encaminhou para o prédio, deitando uma olhadela à rua.



  Entraram em casa de João e Isabel mostrou-lhes os quartos que poderiam ocupar naquela noite, pedindo licença para se ir deitar. Sentia-se morta por dentro, como se estivesse a ser presa por dois ou três cordéis invisíveis, comandados por outra pessoa qualquer. Fechou a porta do quarto, trancando-a de seguida e despiu-se, entrando no duche. Manteve-se vários minutos debaixo do chuveiro intenso, de olhos fechados, apoiando-se com uma das mãos na parede por sentir as pernas bambas meio adormecidas. Sabia que estava no limite das suas forças, terminou o duche e apressou-se a sair da cabine que lhe trazia cada vez mais recordações daquela manhã. Como podia a sua vida ser tão cínica e cruel, perguntava-se, lembrando-se do corpo dele a comprimi-la contra a parede, as suas mãos grandes a explorá-la sem pudores, a sua boca exigente e sensual. Quebrou nesse momento, deixando-se cair no chão, agarrada aos joelhos, chorando descontrolada. A imagem dele numa cama de hospital, adormecido pelas drogas, em letargia, consumia-a, estrangulando-lhe a garganta. Foi surpreendida pelo som do telemóvel, poisado na cama que interrompeu a sua crise de choro, obrigando-a a voltar à realidade. Embrulhou-se na toalha, apressou-se a chegar até ao aparelho, pegando-lhe com as mãos trémulas. Uma breve esperança de que fosse algum contacto dele surgia-lhe no coração, insuflando-o. Abriu a mensagem do número desconhecido e não conseguiu travar um grito histérico, largando o telefone como se esse queimasse. Caiu no chão de joelhos, sem parar de gritar, e arrastou-se até à porta, abrindo-a para fugir do espaço fechado que a começava a sufocar. Janota e Salvador apareceram no mesmo instante, sobressaltados, procurando pelo motivo dos gritos.

- Isabel! O que foi? – Salvador ajoelhou-se na sua frente, segurando-a.

- O Filipe… ele vai-lhe fazer o mesmo… - soluçou descontrolada, tentando soltar-se dos braços que a ajudavam.

Janota pegou no telemóvel, viu a foto do cão esventrado, e a legenda que se seguia: “Este já está. O teu namorado é o próximo”. – Eu vou matar este gajo… - rosnou, apagando a mensagem automaticamente.

Salvador pegou em Isabel que se debatia, colocando-a com dificuldade na cama.

- Calma Isabel, por favor tem calma. Ninguém vai fazer aquilo ao João. Nós prometemos-te. Janota, agarra-a, vou ver se o João aqui tem algum calmante. – deixou-os e vasculhou a casa de banho do amigo, encontrando um remédio que seria eficaz para acalmarem Isabel, voltando logo de seguida para o quarto. – Toma este comprimido. Vais sentir-te melhor… - pediu, sabendo que teria de a forçar a engolir o remédio. – Vamos, abre a boca, por favor. Janota, abre-lhe a boca. – ordenou.

- Achas mesmo necessário isto? – perguntou incomodado com aquelas manobras violentas numa mulher frágil.

- Ela está em crise de nervos, não vês? Não se vai acalmar por si só. Vamos, abre-lhe a boca! – disse já a perder a paciência.

- Isabel, desculpa, mas é para teu bem. – Janota obedeceu ao amigo e colocaram-lhe o comprimido à força no fundo da garganta, deitando-lhe depois um pouco de água na boca aberta pelas mãos do segurança, que tentava não a magoar.

Mantiveram-se com ela enquanto o corpo esperava pelo efeito do remédio, e repentinamente Isabel adormeceu, amolecendo automaticamente, caída na cama. Salvador e Janota respiraram fundo e deixaram-na coberta, com a toalha ainda em volta do seu corpo, por pudor em coloca-la mais confortável. Saíram, deixando a porta aberta por precaução, não fosse ela acordar durante a noite e precisar de ajuda. 

- Que dia… - suspirou Salvador, sentando-se derrotado no sofá – Vê se ele aí tem alguma coisa forte que se beba, por favor… Acho que preciso de anestesiar a cabeça…

- Whisky? – perguntou Janota, espreitando o bar sofisticado da sala.

- Serve, tem de servir… 



Isabel acordou devagar, com uma sensação de vazio mental que a angustiou. Tinha dormido artificialmente, depois do calmante que Salvador e Janota a obrigaram a tomar, devido à sua reação descontrolada com a mensagem de Tiago. Sabia que a tortura psicológica era um dos seus fortes, já não era novidade para si ter de lidar com as chantagens promovidas a medo, mas a imagem de Filipe, morto de forma tão cruel, deixara-a enlouquecida. Como podia alguém ter coragem de fazer semelhante barbaridade a um animal? Apenas para a magoar e assustar… lamentou-se chorando agarrada à almofada de João. O cheiro dele consolou-a minimamente, e deixou-se ficar uns minutos naquela posição, imaginando que ele tomava banho para ir trabalhar e tudo ainda estava como antes. Filipe precisaria de ir à rua e depois tomariam o pequeno-almoço… Alguns barulhos vindos da sala interromperam-lhe as divagações e Isabel obrigou-se a levantar-se e arranjar-se. O corpo estava estranhamente pesado e dormente, ainda efeito do remédio demasiado forte para ela, mas queria visitar João na clínica ainda de manhã. Tinha de cuidar dele, ajudá-lo a recuperar do esgotamento que ela também provocara… Não sabia bem como se tratavam essas doenças, quanto tempo precisaria para recuperar, se ficaria com algumas mazelas… Nada disso era mais importante que o ver e abraçar, pedir-lhe desculpa.

Entrou na sala e os dois amigos já bebiam café com Rosário, que parecia ter estado a chorar, de olhos inchados. 

- Bom dia. – disse Isabel sentando-se à mesa e esforçando-se por sorrir.

- Bom dia, como te sentes? – perguntou Salvador, incomodado com a abordagem violenta da noite anterior – Dormiste bem?

- Mais ou menos… estou ainda meio drogada. – respondeu, deitando um olhar de compaixão à empregada que fungava virada para o lava-loiças - Rosário, não fique assim, a culpa não foi sua. Aquele homem é louco, ele é o culpado disto tudo… E eu, por o ter trazido para as vossas vidas. Desculpem-me… - disse sem emoção. Não tinha nem força para chorar, surpreendeu-se. 

- Pára com isso. – exaltou-se Janota – Nem tu, nem a senhora têm culpa. Vamos lá ver se nos entendemos! Aqui, somos quanto muito, vítimas de um psicopata. Ninguém tem culpa de esse homem ser doido! 

- Sim Isabel, o Janota tem razão. E este doido quer perturbar-nos. Já conseguiu pôr toda a gente destabilizada, mas não pode continuar a infernizar-vos, temos de acabar com isto. Agora vamos comer e depois vamos à clínica ver o João.

Rosário rebentou num pranto sonoro, fugindo para a casa de banho, ao ouvir novamente que o seu patrão estava internado, e tudo aquilo porque se precipitara e não confirmara com ele se a história do homem bem-parecido era ou não verdade. Fora descuidada, desejosa por se ver livre do animal, lamentou-se chorando. Quem poderia adivinhar que houvesse na vida real homens tão maus… aquilo era pior que as novelas a que assistia de noite, era a realidade.


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(imagem, internet)

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