quinta-feira, 6 de agosto de 2020

"A Mala Vermelha" - Capítulo 13



Não sabia bem quanto tempo já teria passado desde o momento em que Filipe caíra no poço, sentia-se completamente dormente e vazia. João acalmara devagar, e todas as esperanças de que o cão aparecesse a saltitar se tinham esfumaçado no ar. Chorara bastante tempo, pelos dois, pelo seu futuro sem Filipe, pela infelicidade que João trazia dentro dele, minando-o como um parasita silencioso. Alguma coisa despoletara nele a crise de pânico, mas Marta não conseguia perceber o quê, seria o facto do cão ter caído?, ela ter ficado com medo? Seria sempre assim a vida dele? Uma corda bamba de estados emocionais, que balouçava instável a tentar mandá-lo ao chão. 
Passava-lhe os dedos no cabelo, consolando-o, quando João pareceu renascer, olhando-a com mágoa.
- Onde é que ele está? – perguntou abatido.
- Não sei… - respondeu emocionada, sentindo as lágrimas a voltar.
- Desculpa, por favor… - pediu-lhe com a voz fraca.
- Mas desculpar o quê, João? Tu não foste o culpado de ele ter caído. – reagiu Marta puxando-lhe o queixo para que ele a encarasse.
- Se eu não tivesse entrado em pânico ele não tinha morrido. – confessou, limpando uma lágrima.
- Mas como sabes que ele morreu? Pode estar apenas magoado, à espera que o encontrem. – disse Marta sem perceber o raciocínio dele tão derrotista.
- Mas ele morreu, Marta, à minha frente, entendes? Bastava eu ter esticado o braço… - gemeu, colocando a cabeça nas mãos, poisadas nos joelhos.
- Quem é que morreu, João? Diz-me. – pediu Marta, abraçando-o.
- O Filipe… o meu irmão mais novo. – conseguiu dizer, olhando-a desesperado.
- Achas que consegues andar? Tens de ir deitar-te e descansar. Vamos. – beijou-o na cara, fazendo força para não chorar ainda mais.
- Não, tenho de encontrar o Filipe. – disse-lhe decidido. Levantaram-se e começaram a percorrer o caminho da água, na esperança de que o cão tivesse sido arrastado pela corrente no meio das pedras.
Marta não estava certa de que caminhar rio abaixo fosse a decisão mais inteligente depois de se sofrer uma crise de pânico, mas sabia que João precisava de encontrar Filipe com vida, pelo menos aquele, pensou, engolindo em seco. O que teria acontecido com o irmão para se afogar?, que idade teriam?, há quantos anos ele viveria com aquela culpa? Não lhe admirava que tomasse tanto anestesiante. A dor emocional podia ser a mais difícil de ultrapassar de todas.
- Vamos voltar, João, já andámos imenso, daqui a nada não conseguimos encontrar o carro. – disse estoirada da caminhada sinuosa entre os calhaus gigantes que ladeavam o rio.
- Espera, - exclamou agitado – acho que está ali qualquer coisa. – correu de pedra em pedra, para alcançar a mancha cinzenta e peluda que se via ao longe, do outro lado da margem, saltou para dentro de água, conseguiu chegar ao animal e pegou-lhe com cuidado. Parecia bastante ferido, com uma pata torta, partida em dois, e a respiração ofegante e difícil.
- É ele? É ele? – gritou Marta, saltando na pedra, a sentir uma felicidade e um alívio que lhe pareciam saltar da boca.
- Sim, conseguimos. – exclamou João, sorrindo de alegria por ter conseguido salvar o cão que ela adorava. – Ajuda-me a subir. – pediu, com dificuldade para trepar as pedras com o cão pesado nos braços. 
Marta puxou-os com força, mas cuidadosa, para não magoar ainda mais o seu querido Filipe, que a olhava com tristeza.
- Meu amor… - beijou o cão com carinho, ajudando João a sentar-se um pouco numa pedra mais alta e a recuperar as forças para conseguirem levar o animal até ao carro e procurarem um veterinário. Olhou o salvador da sua companhia de tantos anos e beijou-o também com força. – Obrigada.
- Sabes a cão molhado. – brincou João fazendo uma careta.

Conseguiram encontrar um veterinário com serviço de urgências 24 horas, e Filipe estava a ser observado com Marta e João do seu lado, abraçados. Já lhe tinham feito rx e o médico preparava-se para lhe colocar uma tala na pata partida. Felizmente não batera com a cabeça ou as costelas, o que teria sido mais difícil de tratar, explicou o veterinário que já tinha visto de tudo naquele rio.
- Mas ele pode ir já connosco? Não precisa de vigilância? Tem a certeza de que só magoou a pata? – perguntava João nervoso.
- Está tudo bem. – acalmou-o o veterinário sorrindo – Agora só precisa de comer, descansar, um comprimido para as dores e mimos.
- Obrigada Dr. – agradeceu Marta, guardando a receita para os analgésicos.
João pegou paternalmente no cão, levando-o até ao carro e acomodando-o com cuidado, para não o magoar.
- Vês? Isto  é o que acontece quando não tens juízo… - ralhou Marta na brincadeira, entrando para o carro e colocando o cinto.
- Vais ficar de castigo um mês! Nada de dormir na cama da dona, agora só na almofada do chão. – acrescentou João – E não me olhes assim, estás com a pata partida, não consegues saltar.
- Não me fales em cama…estou estoirada. – disse Marta com o olhar cansado e inchado de tantas horas a chorar.
- Vamos já tratar disso. – acelerou em direção ao hotel.

O funcionário da receção acorreu a abrir-lhes as portas ao ver o grande animal ao colo, ferido. Pareciam ter saído do filme o “Parque Jurássico”, descabelados, sujos e em estado catatónico. Aquela natureza selvagem do Gerês não era para todos, concluiu.
- Boa noite, precisam de alguma coisa? Magoou-se muito?
- Sim, precisamos de comer, podia levar-nos ao quarto um bule com chá de Camomila e umas torradas? – respondeu João, que carregava o enorme cão nos braços e amparava Marta, já a dormir em pé.
- É para já. – disse o rapaz saindo apressado.
Entraram no quarto e João poisou o cão na almofada gigante que tinham colocado no chão, sentando-se estoirado na cama, com os músculos dos braços a tremer do esforço. Marta abraçou-o de pé, encostando a cabeça dele ao seu peito, afagando-lhe o cabelo, carinhosamente. O momento fraterno durou apenas segundos, quando João a abraçou de volta, percorrendo-lhe o corpo com as mãos, suavemente, num movimento lento e sensual. Um bater na porta trouxe-os para a realidade, quebrando o momento, e Marta aproveitou para se soltar dele, não sem antes lhe sussurrar ao ouvido: “já volto, não saias daí…”, dirigindo-se à casa de banho para tirar a sujidade de cima e pensar um pouco sobre o que estava prestes a fazer. 
João levantou-se para receber o serviço de quartos e colocou a ceia na mesa do quarto, a sentir uma dormência nervosa carregada de expectativa sobre o que estava para acontecer, esforçando-se para não invadir o banho dela. Filipe perseguia-o com o olhar, atento aos seus movimentos neuróticos, com curiosidade, abanando a cauda, como se o entendesse nos dilemas masculinos. 
- Também gostas dela, não é? – perguntou-lhe João suspirando. – Eu compreendo-te.
Marta surgiu enrolada num robe fofo, com os cabelos molhados e de aspeto bem mais recomposto, sorrindo-lhes e sentando-se à mesa, servindo-se de chá.
- Eu espero por ti, vai tomar banho. Só não gosto do chá muito forte. – disse-lhe com o olhar quente que derreteu os ossos de João, aparvalhado com a beleza dela tão simples acabada de sair do duche. 
Decidiu esticar um pouco as pernas, deitando-se na cama, exausta e fechou os olhos momentaneamente, ouvindo-o a mexer-se na divisão ao lado, imaginando o que estaria a fazer. Conseguia vê-lo a despir-se, deixar tudo espalhado no chão para depois ela apanhar, o que a fez sorrir, a ligar a água, entrar na cabine de duche, a ficar demasiado tempo com os olhos fechados e a cabeça debaixo de água, a finalmente se ensaboar, tirar o sabão, desligar a água, molhar a roupa toda do chão à procura do robe que obviamente não levara para perto do duche, a pentear os cabelos com os dedos, desajeitadamente, a abrir a porta da casa de banho e ficar a olhá-la em silêncio.
João tapou-a e beijou-lhe a cara em vários sítios; dormia profundamente, sem reagir, constatou embevecido. Filipe começou a gemer, tentando levantar-se, inquieto e João percebeu a intenção do cão, queria adormecer no seu local preferido, junto dela. Juntou a sua cama à dela, pegou no cão e colocou-o com cuidado no meio das duas camas, ao fundo dos pés, deitando-se de seguida do seu lado da cama, a admirar Marta. Gostava cada vez mais dela… Abraçou-a, a sentir-se amolecer, dividido entre a vontade de a espremer contra si e o bom senso de se manter respeitoso. Filipe resolveu-lhe a questão, arrastando-se lentamente para o cimo da cama, enfiando-se submisso entre eles os dois, e João abraçou-os, a sorrir.


Acordaram com a cauda de Filipe a bater-lhes como um chicote duro e implacável, era hora de “ir à rua”, e alguém teria de o levar.
- Vai lá tu, o cão é teu… - gozou João, aconchegando-se no édredon.
- Pago-te o almoço. – brincou Marta sem sequer abrir os olhos. Era demasiado cedo para carregar um cão daquele tamanho ao colo.
- Só lá vou se desistires da ideia de conduzir o meu carro. – provocou-a sorrindo para a almofada.
- Deixa estar. Eu levo-o. – disse-lhe a começar a levantar-se – Eu quero muito saber como é conduzir a 200 à hora! – gozou, sendo lançada novamente para a cama, no meio de uma luta encenada. 
João aproveitou o momento, prendendo-a com o peso do seu corpo contra a cama e beijando-a com paixão, sendo automaticamente correspondido com a mesma violência. Beijaram-se durante bastante tempo, ora acalmando e olhando um para o outro, ora lançando-se naquela espiral de loucura que só terminaria sem roupa. Marta dava o ritmo, puxando-o para a realidade atrasando a intensidade dele, ou dando-lhe estímulos que o enlouqueciam, sem conseguir contrariá-la.
- Lição número um… o beijo tântrico. – sussurrou-lhe ao ouvido, empurrando-o lentamente de cima do seu corpo.
- Vamos Boby, vamos à rua respirar ar puro… - disse João vestindo-se e olhando Marta divertido. – A tua dona é uma professora perversa e mal intencionada. – pegou no cão e Marta beijou-o novamente com paixão, amolecendo-o instantaneamente, o que o fez quase deixar cair Filipe dos braços.
- Já lá vou ter. Vai pedindo o pequeno almoço, por favor. – disse-lhe, sorrindo maliciosamente e fechando a porta do quarto devagar.



- Não atendes o telefone? – rosnou Tiago enfurecido com a ideia de que Marta não tivesse dormido em casa. Observa-lhe os movimentos na última semana, como habitualmente, e assim que vira o tipo a rondar a casa percebeu que ia ter chatices. Tornou a marcar o número de casa dela e bateu furiosamente com o auscultador na mesa, libertando a ira dos ciúmes. – Eu disse-te que tu eras minha, não percebes a bem, percebes a mal. – vociferou, acendendo outro cigarro.


Sentaram-se no terraço do hotel, esfomeados, depois de um jejum forçado no dia anterior, com Filipe deitado  aos seus pés, já de barriga cheia. O funcionário da receção trouxera-lhe uma taça de ração e água antes de Marta aparecer de túnica semi-transparente e fato de banho por baixo, provocando espanto nos três machos. João olhara com desagrado para o rapaz, que se afastou atabalhoadamente, perturbado pela visão sempre sugestiva de roupa transparente.
- Não tinhas nada mais discreto para vestir? – perguntou-lhe sorrindo para dentro do decote, quando a ajudou a sentar, cavalheiresco.
- Isto é absolutamente próprio para passar o dia à beira da piscina. – explicou, colocando as pernas à chinês, despreocupada com a transparência da roupa. – Acho que já vimos beleza natural que chegue.
- Não quero mais ser teu irmão. – brincou, pegando-lhe na mão e beijando-lhe o pulso na parte de dentro, o que provocou um arrepio visível nos braços de Marta. – Também já li o livro, esqueceste-te?
O funcionário mantinha-se de pé corado, de ementa na mão, sem coragem para olhar a cena incestuosa matinal. 
- Então, já decidiram o que vai ser? – gaguejou com a garganta seca.
- Sim, - respondeu Marta sorridente – Chá de menta para os dois, ovos mexidos aqui para o mano, torradas para mim e… ah, e geleia de morango. Obrigada. – disse decidida sem retirar a mão poisada no antebraço de João, que por sua vez não conseguia tirar os olhos dela, sem ligar ao empregado.
- Sim, senhora. – disse o rapaz, engolindo em seco e retirando-se o mais rápido que conseguiu.
- O mano está curioso, porquê chá de menta? E ovos mexidos? Nunca comi ovos ao pequeno-almoço, nem no estrangeiro, isso é muito forte. – comentou apreciando a descontração dela tão bem integrada no ambiente chique de todo o espaço. Compreendia agora que antes de se ter mudado para Coimbra, Marta nunca tinha vivido de outra forma, rodeada de empregados e salamaleques, guardanapos no colo e copos de vários tamanhos.
- Chá de menta para te pôr alerta, ovos, para te dar força. – piscou-lhe o olho, subindo a mão até ao ombro de João, massajando-o.
- Mais alerta ainda? – gracejou, dando um gole na água fresca, e suspirando.
- Precisava de praticar um pouco, desde anteontem que não faço yoga, sinto-me a emperrar… - desconversou divertida, passando a massagem do ombro para a palma da mão, sem quebrar o toque, mantendo-o sempre concentrado nela.
- Eu também precisava de praticar, e se não paras quieta um momento, é aqui mesmo. – resmungou, estimulado continuamente pela mão experiente de Marta.
- Não querias sexo Tântrico? Já estamos a praticar desde que acordámos. – disse com naturalidade.
- E quanto tempo é que isto vai durar? – perguntou-lhe genuinamente aflito com a ideia de estar um dia inteiro em “alerta”, chegando-se a ela para manter a conversa mais privada.
- Depende do objetivo. – respondeu-lhe bem perto da cara – Não leste a parte teórica! – ralhou, beijando-o de seguida.
Terminaram o beijo escaldante e demorado e aperceberam-se de que o funcionário já havia colocado a refeição na mesa, com todos os preceitos, e desaparecido depois.
Olharam a mesa maravilhados com o aspeto do comer, e lançaram-se sem mais conversas, apenas interrompidos pelos beijos ocasionais que Marta exigia, limpando os lábios com o guardanapo com elegância e puxando João na sua direção.
Acabaram a refeição e levaram Filipe para junto da piscina, onde se mantiveram colados, da forma mais decente que conseguiam em público, parando para mergulhar, praticar algumas Asanas, Pranayama e mais beijos escaldantes.
João aprendeu novos exercícios de respiração que Marta achava vitais que praticasse diariamente, para prevenir outros ataques de pânico; recusava-se a aceitar que ele, um Psiquiatra, não conseguisse dominar o seu corpo sem drogas. Falava de forma tão natural sobre o problema de ansiedade que parecia ser a médica, e ele o paciente. João suspeitou a dada altura que aquilo não fosse uma completa novidade para ela, tão certa que estava de que, assim que ele compreendesse o que disparava o seu corpo naquela defesa emocional, tudo ficaria resolvido.
- Tens a certeza de que não és médica? – perguntou-lhe desconfiado com tanta sabedoria, talvez ela tivesse vivido aquele tipo de problemas com o ex-marido, concluiu.
- Não, Sr Dr., não sou. Apenas tive uma pessoa na família que sofria do mesmo problema, e curou-se. Agora faz o que te estou a dizer, preguiçoso. – explicou, obrigando-o a concentrar-se no fluxo da sua respiração. 
- Já almoçámos, já lanchámos, já fui estimulado em todos os sítios possíveis e imaginários, e confesso que não sabia que no pé podia haver tanta comichão boa, - confessou a sorrir com malícia – afinal, quando é que vamos arrumar as malas ao quarto?
- Se me permites, sugiro-te que “arrumemos as malas” em minha casa. Tenho paranóia com camas de hotel. – disse corando – Preferia estar no meu habitat natural. – pediu constrangida.
- Isso significa que vais até Coimbra a massajar-me as orelhas? – exclamou em pânico, imaginando a viagem terrível que seria estar duas horas a conduzir com ela a mexer-lhe com os nervos.
- Bem, se for eu a conduzir, não. – disse-lhe sorrindo de orelha a orelha.
- És uma sabida. A tua sorte é que te adoro. – confessou naturalmente, sem se aperceber. Beijou-a e levantou-a do chão, sem perceber o seu ar chocado com a declaração amorosa que lhe saíra da boca, pegando em Filipe e dirigindo-se para o quarto. Estava a ficar tarde e tinham ainda muitos quilómetros pela frente, e se ela fosse a conduzir teriam de ser feitos com calma, pensou nervoso.
Passavam pelo balcão da receção e Marta não pôde deixar de parar para falar com o rapaz simpático que os tinha aturado durante aqueles dois dias.
- Estamos quase a ir embora, obrigada por tudo. – Inclinou-se e deu-lhe dois beijos – Nós não somos irmãos. – sussurrou-lhe, piscando-lhe o olho e deixando-o corado a sorrir de alívio.

- Devagar… devagar… DEVAGAR! – bradou, vendo o ponteiro dos conta-quilómetros a chegar com facilidade aos 220.
- Conta, ou então não abrando! – gritou-lhe de volta, decidida a tirar a limpo os fantasmas que o assombravam.
- Ok, OK! Mas para de acelerar, por favor. – suplicou, a ficar receoso de que ela estivesse mesmo a falar a sério e aquilo não fosse mais uma das suas piadas.
- Já abrandei, vamos. Desembucha. – ordenou, olhando-o duramente.
- Estas tuas terapias são altamente duvidosas!
- Não me enroles, olha que eu fico com uma crãimbra no pé. – ameaçou-o.
- Tudo bem. – disse resignado, descontraindo no banco e olhando para a janela do seu lado. – Tinha 14 anos, estávamos a passar o dia no rio com amigos, família, havia comida, jogos, brincadeiras, o normal… - enumerou com a voz grave – O meu irmão, Filipe, mais novo que eu 5 anos, era um chato, andava sempre colado a mim. Onde eu ia, ele também queria ir… - relembrou sorrindo para a janela – E eu fui nadar… sem lhe dizer nada. Fugi dele, entendes? Estava farto de ser babysiter, queria estar um bocado sozinho. Não vi que ele me seguiu, entrou na água por trás de mim. – limpou uma lágrima discretamente – Quando regressei à tona de um mergulho ouvi gritos, estava longe da margem e não percebi o que se passava. Toda a gente esbracejava, os homens mergulhavam na minha direção… e eu olhava-os, sem entender… Foi quando vi, mesmo ao meu lado… o braço dele, esticado para mim, e o olhar dele, submerso, aterrorizado… não consegui… não me mexi. – silenciou-se durante uns momentos, absorvendo a tristeza das suas lembranças antigas – acho que foi o primeiro ataque de pânico que tive. – confessou, respirando fundo – Depois disso, já perdi a conta.
Marta abrandava o carro sem se aperceber, engolindo uma dor quente que lhe descia devagar pelo esófago, queimando-lhe tudo. Conseguia visualizá-lo no rio, um miúdo, a ver o irmão morrer ao seu lado. Como é que alguém poderia viver depois disso sem sequelas? Encostou na berma, soltou o cinto e trepou-lhe para o colo, precisava de chorar e de ser abraçada. Sentia-se culpada por ter forçado João a falar sobre coisas tão dolorosas. Precipitara-se e fora leviana.
- É terrível João, muito triste aquilo que vos aconteceu. – disse emocionada, com a cabeça encostada nele. – Só de imaginar já fico desesperada, deves ter sofrido muito, nem consigo sequer quantificar esse tipo de dor. – continuou, já em choro solto.
- Sh… tem calma. Já passou, não há nada a fazer. – consolou-a, como se tivesse sido ela a perder um irmão. – Eu era um miúdo, não percebi o que estava a acontecer… foi uma fatalidade. – concluiu, respirando aliviado. 
- Desculpa, não devia ter-te forçado a falar. – olhou-o, sentindo-se mortificada.
- Não, fizeste bem. Nunca tinha explicado tudo o que aconteceu a ninguém. Estive anos bloqueado, sem me lembrar. Depois quando recordei começaram as crises agudas, desesperava só de pensar em falar sobre o Filipe. – explicou, fazendo-lhe festas no cabelo. – Ouvir assim a história é diferente. O César sempre disse que tinha de o verbalizar. – confessou, com um sorriso triste – Tinha razão.
- Não consigo conduzir mais, podes trocar comigo? – pediu-lhe, limpando a cara e abraçando-o novamente.
- Claro. – respondeu-lhe calmamente – Até fico mais aliviado, para ser sincero. – brincou, tentando animá-la um pouco. Era estranha aquela reação tão forte aos sentimentos dos outros, pensava intrigado ao vê-la enrolada como uma bola a chorar. Sempre tão pragmática com as suas coisas, desvalorizando tudo o que para ele seria um drama, mas quando o assunto eram as dores dos outros, parecia uma criança. Beijou-lhe as lágrimas, sugando-as com barulho, o que a fez rir e voltar a um estado mais calmo, o que possibilitou a troca de lugares e prosseguiram a viagem, em silêncio, sem rádio ou futilidades, apenas o som ocasional de uma melodia daquelas que ela entoava quando meditava. Sem a letra esquisita, apreciava João, afagando o focinho de Filipe, todo esticado para a frente do carro, quase em cima dele.

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(imagem, internet)

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