quarta-feira, 26 de agosto de 2020

"A Mala Vermelha" - Capítulo 17






 - Isabel, Salvador, Janota. Como estão? – cumprimentou César gravemente à porta do quarto de João na clínica onde trabalhavam. Esperava ansioso pelos três, e apreensivo pela reação de Isabel quando lhe contasse o que acontecera depois de João acordar. 

- Bom dia César. Passa-se alguma coisa? – perguntou Isabel, estranhando o semblante preocupado do psiquiatra, e percebendo que ele fazia consciente ou inconscientemente uma barreira física entre eles e a porta.

- Bem, - pigarreou desconfortável – o João dormiu calmo, já acordou, está bem disposto. Um pouco confuso, mas isso é normal, a medicação ontem foi forte e mesmo ele não está habituado.

- Ok, posso vê-lo agora? – perguntou ansiosa por abraça-lo.

- Isabel, antes de entrares, queria ainda dizer-te outra coisa. Não fiques assustada, mas ele pode não te reconhecer. – disse, olhando-a com carinho.

- Como assim? 

- Ele não se lembra quem é. Parece que o choque de ontem lhe provocou algum tipo de amnésia momentânea. Ainda estamos a discutir isso aqui com os colegas de psiquiatria e neurologia no gabinete da especialidade.

- Amnésia?... Mas isso costuma acontecer nestes casos? – perguntou nervosa. Sentia que César não conseguia disfarçar o incómodo que aquela situação lhe causava profissionalmente. Algo de errado se estava a passar.

- Não é habitual, mas aconteceu. Ainda é muito recente, o quadro médico dele ainda não estabilizou, pode ser momentâneo, ou… Bem, não importa o que poderá acontecer, não vale a pena estarmos a divagar, agora só peço que as visitas sejam rápidas e sem desconfortos para o paciente. Por favor não perguntem “não me conheces?” e coisas do género. Entrem, cada um por sua vez, eu irei convosco. Se ele não vos reconhecer, improvisamos, mas não o podemos deixar ansioso. Ele precisa de estar calmo e de descansar. – explicou, falando para os três amigos que se mantinham atentos e meio desconcertados. – Isabel, queres ir primeiro?

- Sim, por favor.

Entraram no quarto meio escurecido, João dormia novamente, aparentemente calmo e o mesmo homem do dia anterior. Isabel travou a vontade de o beijar e abraçar, limitando-se a observá-lo, como César pediu, sentindo-se demasiado emocionada e frágil. Sabia que não poderia chorar, nem demonstrar emoções que o pudessem abalar, e esforçou-se por obedecer às orientações do médico. Pelo menos nada de fisicamente grave lhe acontecera, como Filipe, que fora sacrificado em nome de toda aquela loucura psicótica de Tiago… João estava ali, seguro, longe do seu ex-marido, acompanhado por médicos, mesmo que não a reconhecesse, nem a beijasse com a paixão que ela imaginara que ele faria. Estava vivo e isso era o suficiente.

- Obrigada César… - deu a mão ao psiquiatra, reforçando a sua gratidão e inconscientemente procurando um ponto de apoio.

- Senta-te um pouco. Pode ser que ele acorde entretanto. – dirigiu-a ao pequeno divã em frente à cama, sem a largar.

- O que digo, se ele não se lembrar de mim?

- Dizemos que és enfermeira, estás a monitorizar os aparelhos a pedido do médico. – respondeu naturalmente.

- Ok…

João acordou naquele momento, ou parte dele, abrindo os olhos, mas não reagindo às duas presenças do quarto, como se fossem invisíveis. Isabel sentiu o coração disparar, quando ele cruzou o olhar com o seu, ficando abalada por não sentir a alma dele lá dentro. Alguma coisa não estava certa…

- Olá João. Como te sentes? – perguntou, da forma mais profissional que conseguiu encontrar.

- Olá. Sinto-me bem, acho. – respondeu com a voz fraca e arrastada – Quem és?

- Enfermeira aqui no piso. Pediram-me para monitorizar o teu sono. – respondeu com dificuldade.

- Dr., tenho dor de cabeça. – disse, voltando-se para César e ignorando Isabel, como se ela não existisse.

- Vou pedir que lhe deem alguma coisa. Já volto. – olhou para Isabel, que se mantinha paralisada no divã, e saiu apreensivo.

- Tens sede?

- Não.

- Fome?

- Não. Só tenho dor de cabeça. – respondeu laconicamente, sem sequer a olhar.

Isabel sentiu as lágrimas a invadirem-na, e pediu licença para sair, fugindo do quarto o mais rápido que conseguiu. Passou pelos dois amigos, esbracejando para que não a agarrassem, tinha de sair daquele prédio, respirar ar puro, gritar, fazer qualquer coisa que a libertasse daquela dor. Tiago tinha conseguido matá-lo também, pensou desesperada. Mais uma vez conseguira dar-lhe cabo da vida, destruir tudo o que lhe era querido. Um filho, João e Filipe… Chegou à porta da rua e olhou em volta, com uma raiva que aumentava a cada momento. Ele devia estar a observar, a espiá-la, aquele doente mental, e Isabel desejava que naquele momento isso fosse verdade. Ficou uns segundos a analisar a rua e teve a certeza de que era ele num carro estacionado ao fundo da rua. Chamou um táxi e pediu que a levasse a sua casa, iria resolver aquilo de uma vez por todas. Ou um ou outro sairiam de lá vivos, disse a si mesma. 


Tal como imaginou, o carro seguiu-a até à quinta, mantendo sempre uma distância constante. Isabel pagou e entrou em casa, deixando a porta apenas no trinco, para que ele entrasse com facilidade. Não queria mais entraves, dar-lhe-ia o que ele tanto queria, a sua vida, se assim fosse a vontade do Destino. Largou a mala no sofá, descalçou-se, passou pela cozinha e entrou na sala de yoga, sentando-se de frente para Shiva e Ganesha, orando à sua proteção, enquanto esperava. Já não sentia medo, apenas raiva, e estava cansada de fugir. Não poderia andar toda a vida com aquele fantasma a persegui-la, aquilo não era viver, era ser uma presa. Se João já não se recordava dela, seria muito mais simples Isabel desaparecer. Se não podia viver com ele, também nunca poderia viver com mais ninguém, nem queria. O seu egoísmo levara a tudo aquilo, ao desfecho dramático do dia anterior, e não poderia permitir que mais ninguém sofresse por causa de Tiago. Estava na hora de ser altruísta, acabar de vez com ele e a única forma que sabia ser eficaz era acabar com o objeto da sua obsessão. 


Tiago entrou em silêncio, excitado com aquela reviravolta. Isabel chamava-o, não fugia. Encostou a porta e trancou-a, colocando uma cadeira em posição de tranca, limitando ainda mais a tentativa de entrada de terceiros. Queria privacidade total. Tinha imaginado aquele reencontro todos os dias antes de adormecer, agora parecia-lhe quase um sonho, sentia-se excitado e nervoso.

Espreitou para a sala onde no dia anterior tinha morto o cão e viu-a, serena, sentada de costas, sem medo, o que o arrepiou ligeiramente. Não estava acostumado a ser apanhado de surpresa, ela deveria estar a implorar que não a matasse, ou a fugir como um rato enjaulado. Só assim teria o controle da situação. Se ela não reagia era estranho, mas sedutor.

- Olá Isabel. 

Isabel manteve-se de costas, de olhos abertos fixos nas imagens danificadas de grafiti vermelho, sem reagir à voz, propositadamente. Conhecia-o tão bem que podia imaginar o que a sua mente depravada estava a pensar. Deveria estar confuso, excitado, e pronto a atacar. Respirou mais algumas vezes, para se acalmar, agora não havia volta a dar. Ia ser o último encontro.

- Eu disse olá! – reforçou meio alterado, dando alguns passos incertos na direção dela, que se voltou nesse momento, mantendo-se sentada e olhando-o com ódio.

- Eu ouvi. Ainda bem que vieste. - observou-o a, sem mostrar fraqueza, queria que ele não reagisse, para lhe dar tempo para conseguir concretizar o que tinha imaginado - Estava a preparar-me para fazer uma coisa muito importante, e queria muito que estivesses presente. Senta-te por favor! – disse, sem emoção na voz. Tiago obedeceu confuso, colocando-se a uma distância de segurança por não saber o que se iria passar a seguir. Normalmente era ele que tinha o controlo da situação, e deixava que Isabel se lhe adiantasse por curiosidade mórbida. Isabel tirou uma faca debaixo das pernas e mostrou-lha sorrindo.

- És tu que gostas de esfaquear coisas, não é? Pois vou-te oferecer um presente. – pegou na faca  e as mãos tremeram-lhe ligeiramente, temendo não ter coragem para acabar com tudo – Nunca percebi porque me odiavas tanto, o que fazia de mal para que me quisesses bater, pensava que era a culpada de tudo o que me acontecia, mas hoje percebi que não, - começou a explicar, deixando uma lágrima cair sem conseguir evitar mostrar as emoções – o teu objetivo é matares-me, porque não és uma pessoa normal, és um monstro. E os monstros escondem-se debaixo das nossas camas, à espera que caiamos no sono, para nos atacarem. Cobardes e maus, como tu. - ameaçou cortar o pulso ao vê-lo mexer-se na sua direção e conseguiu mantê-lo em espera, continuando o seu discurso – Um dia gostei de ti, quis ser tua, faria tudo por nós, até levar porrada, e nem isso te satisfez. Mataste tudo o que um dia amei, e desta vez conseguiste matar até o que restava de mim, a minha vontade de continuar, a força de lutar contra ti. Foi-se tudo. - Sentia os nervos crescerem dentro dele, que começava a tremer no lugar, desorientado com a imagem da faca na pele dela, e uma vontade mórbida de o ver sofrer deu-lhe a coragem que lhe estava a faltar. Fez um golpe rápido no pulso esquerdo, que começou automaticamente a verter sangue, pegou com essa mão na faca e repetiu o gesto no pulso direito.

- Não!!! – berrou, lançando-se na direção dela, em pânico, depois de recuperar do choque daquela visão. Tentou agarrar-lhe na faca, mas Isabel foi mais rápida e aproveitou o embalo dele para enterrar a faca no centro do peito de Tiago, que arfou violentamente e lhe caiu em cima, de olhos abertos e assustados.

O peso do corpo sufocava-a, como uma sentença de morte que iria chegar para eles os dois, ali sozinhos na sala, sentindo-se cada vez mais fraca. Fechou os olhos, visualizou a imagem de João e respirou fundo, finalmente teria paz.


Salvador e Janota pararam o carro atrás do de Tiago e correram até à casa, que estava trancada. 

- Eu disse-te que ela ia fazer um disparate! – berrou Salvador, histérico.

Janota rebentou a porta com facilidade e entraram aos tropeções na sala, dirigindo-se à sala de yoga, onde certamente ela estaria.

- Não… - Janota arrancou Tiago de cima dela, a tremer das mãos, para analisar o que se teria passado. Ela tinha-o morto, concluiu. – Chama o INEM! Tentativa de suicídio e uma morte. Ela está viva. – Rasgou dois pedaços da t-shirt e fez um garrote improvisado nos braços dela, para que não se esvaísse enquanto esperavam os paramédicos. – Isabel… estás a ouvir-me?

Salvador encostou-se à parede, longe do cadáver e sem manter contacto visual com Isabel, que parecia estar a morrer. Era demasiado terrível tudo aquilo, todo aquele sangue. 

- Como é que aguentaste isto toda a vida? – perguntou a Janota, a sentir um vómito eminente.

- Empresta-me a tua t-shirt. – ordenou, sem explicar o que tinha em mente.

- Mas para quê? – perguntou confuso e cada vez mais nauseado.

- Preciso de apagar as impressões digitais dela da faca. Anda, dá-me a tua t-shirt virada do avesso.

Salvador obedeceu e Janota limpou o cabo da faca ainda espetada no peito de Tiago, provocando um vómito no amigo que fugiu da sala para o ar fresco da rua. Friccionou a mão direita de Tiago, depois de se certificar pela lógica da posição do relógio, nos ângulos em que seria normal alguém exercer força para aqueles golpes, virou-o ligeiramente de lado, de costas para ele e Isabel e concentrou-se novamente em prestar auxílio a ela. Ao longe o som da ambulância crescia, abrindo-lhe os pulmões e relaxando-o. Se ela fosse forte, ainda resistiria, tinham chegado a tempo de a salvar.

- Isabel, não te preocupes, não vais morrer…. – consolou-a, mantendo-se a pressionar os braços, reforçando o bloqueio dos garrotes.

A ambulância saiu disparada em direção ao hospital, ficando no local do crime a polícia e as duas testemunhas que encontraram os corpos e alertaram as autoridades. Salvador vestia a t-shirt ensanguentada por dentro, mas como Janota previra, ninguém notou, o que facilitou à polícia imaginar uma sequência de acontecimentos. “Isabel fizera queixa do ex-marido no dia anterior. Alegadamente a sua casa teria sido vandalizada por Tiago. No dia seguinte ela volta ao local do crime, ele segue-a , corta-lhe os pulsos e suicida-se a seguir. Parecia simples, faltava apenas a confirmação dos testes periciais. A ameaça escrita na parede da sala onde tudo acontecera ajudava a compreender a loucura de todo o crime. Um novo relacionamento amoroso da vítima feminina despoletara aquele desfecho dramático, mas felizmente os amigos de Isabel apareceram a tempo de a ajudar a sobreviver.” 

- Acompanhem-nos à esquadra por favor. Ainda é preciso formalizar o vosso depoimento, só depois disso poderão ir ter com a vítima ao hospital. – informou o polícia secamente.

- Claro, só temos de avisar alguns familiares e amigos próximos do que aconteceu que possam ir ter com ela ao hospital. – interveio Salvador, pedindo autorização formal para divulgar entre César e os pais de Isabel a condição física dela.

- Com certeza, apenas seja discreto nos pormenores, por favor. – respondeu o polícia afastando-se dos dois e encaminhando-se para a casa dando-lhes um momento de privacidade.

- Tens cá uma prosápia… - brincou Janota já mais restabelecido do choque.

- Eu acho é que mais uma vez não vou abrir o bar… ainda vou à falência por causa destes dois… - lamentou-se, sabendo que nada era mais importante que os amigos, e fazia dinheiro suficiente para encerrar portas vários meses seguidos. – Agora vamos avisar o César e tentar descobrir o contacto da família dela lá de Castelo Branco. Ainda tenho de pensar como contar uma coisa destas sem que as pessoas fiquem desesperadas.

- O número dos pais eu arranjo, dá-me uns minutos. Vai falando com o César.

- Ok… vamos a isto. – pegou no telemóvel e procurou o contacto do psiquiatra. Teria de recorrer aos seus serviços se o seu dia a dia continuasse assim agitado. Era demasiado sangue, e o cheiro da sua camisola poderia comprová-lo, mortes eminentes, cadáveres…



- Como?! – exclamou o psiquiatra chocado com o que Salvador lhe dizia. – Peço desculpa João, tenho de ir atender um caso urgente.- Despediu-se  à pressa e saiu do quarto da clínica, correndo em direção às urgências, onde Isabel deveria dar entrada a qualquer momento. Porque teria tentado matar-se, perguntava-se confuso, aquilo não era típico do seu tipo de personalidade. Não compreendia como se podia ter enganado relativamente a Isabel. Mais um diagnóstico errado a um amigo e uma quase morte. O que se andaria a passar com as pessoas? Ou seria ele a chegar à altura da reforma e o universo a dar-lhe sinais claros de demência?

Entrou na ala de urgências da clínica e pediu informações sobre a chegada de Isabel. Tinha sido encaminhada para o bloco, os cortes precisavam de suturas profundas e talvez levasse uma transfusão para estabilizar o organismo que ficara enfraquecido com a perda de sangue. Esperou ansioso pela saída da paciente da sala de operações e ficou aliviado ao perceber que não fora utilizada anestesia geral. Isabel vinha consciente e aparentemente normal, apesar das ligaduras nos pulsos e dos tubos que a acompanhavam.

- Olá Isabel. Pregaste-nos um grande susto… - disse-lhe carinhosamente, fazendo um festa no seu cabelo. – Queres companhia até ao quarto? Acho que vais aqui ficar hoje, por causa da transfusão. – informou-a calmamente.

- Como quiser. – respondeu sem forças. Os braços picavam-lhe arrepanhados e quentes e uma dor de cabeça afundava-se com o mal estar geral do corpo.

- Então vamos. – olhou a funcionária que transportava Isabel e deu-lhes passagem para o elevador que dava acesso aos internamentos, seguindo-as de perto.

- Ala psiquiátrica? Outra vez? – escarneceu Isabel ao ver o botão que a senhora premia e que correspondia a essa especialidade.

- Não te preocupes, é só um procedimento normal nestes casos. Amanhã revemos o caso.

- Façam o que entenderem. – pouco lhe importava de facto o que lhe pudessem fazer. Apenas queria certificar-se que Tiago não sobrevivera. Depois disso tinha toda uma nova página em branco para recomeçar de novo. Só temia alguns dos medicamentos a que fora sujeita da primeira vez, em Castelo Branco. Eram angustiantes, provocavam uma dormência sufocante na mente e retiravam liberdade de movimentos. Se pudesse ali ficar sossegada em silêncio seria muito bom. Precisava de paz e de tempo para se habituar à sua nova condição de solteira. Sem ex-marido nem namorado.

As funcionárias do piso colocaram-na o mais confortável possível, cheias de cuidados e simpatia, possivelmente por estarem a lidar com uma paciente amiga do grande Diretor da especialidade para a qual trabalhavam e Isabel agradeceu a gentileza com um sorriso caloroso e sincero. César não pôde deixar de reparar nos modos agradáveis de Isabel e compreendeu o fascínio de João por ela, era uma mulher genuinamente simpática e empática. E para compreender o amigo era necessária muita boa vontade. João tinha uma carapaça de arrogância que nem todos conseguiam ultrapassar, e só se revelaria a alguém que o impressionasse. Isabel era bonita, bem educada e gentil. Daquelas mulheres que antigamente nasciam em casas de algum nível aristocrático e que não haveria aos pontapés nos bares que ele frequentava de noite. Elisabete previra essa química entre os dois, quando os tentou juntar, e como sempre, estava certa.

A última enfermeira saiu e César sentou-se perto de Isabel, queria tirar a limpo o que se tinha passado e perceber aquela atitude extrema de Isabel.

- Podemos falar um pouco? – perguntou calmamente olhando-a com amizade.

- Sim. Ele morreu? – respondeu com a pergunta que a preocupava.

- Sim. – disse sem emoção.

Isabel fechou os olhos e respirou fundo. Não tinha sido em vão o seu quase sacrifício.

- Eu matei-o. – confessou, com sentimentos díspares a invadirem-na.

- Não é isso que a polícia pensa, e talvez seja melhor assim. Isabel, porque cortaste os pulsos?

- César, aquele homem nunca ia deixar-me em paz. Já não tenho nada que me prenda a tudo isto, ele matou tudo o que me era importante… - uma lágrima caiu-lhe do rosto chegando à almofada.

- O João não está morto. Para de pensar assim. Apenas está momentaneamente confuso. Se o Salvador e o Janota não chegassem a tempo tinhas morrido também. – explicou, tentando demonstrar empatia com a sua atitude.

- Primeiro foi o meu filho… ele bateu-me tanto que eu abortei… depois a minha liberdade, depois o Filipe, o João enlouqueceu, não acha que são motivos suficientes para eu dar cabo daquele homem? – disse exaltada.

- Tinhas todos os motivos e mais alguns para o quereres morto, mas se sais por aí a dizer isso, vais presa. Por favor, acalma-te, e o João não está louco. Já te expliquei. – disse com firmeza.

- Acha que ele se vai lembrar de tudo?... De nós?... – perguntou mais resignada.

- Acho. Mas temos de lhe dar tempo. – respondeu – Porque é que fizeste isto a ti própria? – insistiu.

- Quando saí da clínica ia doida, sentia uma raiva dentro de mim que não tem explicação… Não sei, pus nas mãos de Deus… Sabia que ele me iria seguir até casa, esperei por ele, e quando se sentou à minha frente o olhar dele ainda me deu mais convicção. Todos os mortos ali espelhados naquela loucura… queria fazê-lo sofrer, ter medo, vingar-me, talvez. – explicou, chorando em silêncio – Depois ele lançou-se sobre mim e eu aproveitei o descontrolo dele e virei a faca na sua direção. Na verdade, foi só porque ele caiu em cima de mim que morreu. Eu só tive de segurar a faca… Não, não estou arrependida, se me vai perguntar isso. Faria tudo de novo.

- Não digas isto a ninguém, por favor. Já chega de castigos, não achas? Matar ou ver morrer outra pessoa sem lhe prestar auxílio, mesmo que a odiemos e tenhamos muitas razões para lhe querer mal, é sempre errado, e sabes disso. É hipocrisia dizer-te isto, mas a polícia e os tribunais é que deveriam ter esse papel, mas como sabes, nem sempre funcionam. Lançaram sobre ti essa responsabilidade, e só por isso, eu entendo. Condeno, mas entendo. Se me perguntassem se faria algo semelhante, talvez o fizesse. O desespero não é um bom conselheiro. – deu-lhe a mão em solidariedade com as lágrimas de tristeza e choque – Compreendes?

- Sim. Por favor, não avisem os meus pais. Não quero que se preocupem.

- Acho que já o fizeram. E Isabel, os amigos e família servem para nos ajudar a superar os momentos difíceis, não tens de carregar tudo sozinha.

- Talvez vá então até casa, em Castelo Branco. Não sei se aguento ver o João a olhar-me como se eu fosse transparente. – disse, fungando mais um pouco.

- Fazes bem, eu estarei aqui todos os dias a cuidar dele, e se houver alguma melhora telefono-te. Cuida de ti agora, e já sabes, o Tiago tentou matar-te e suicidou-se de seguida. É isto que vais dizer. Combinado?

- Sim… Posso pedir só mais uma coisa?

- Claro.

- Por favor não os deixe drogarem-me. Não quero calmantes, nem coisas do género. Prefiro chorar tudo o que preciso e deixar a dor passar. – pediu, agarrando-lhe com força na mão.

- Tudo bem. Eu vou dar essa ordem. Mas se mudares de ideias, manda-me chamar. – levantou-se, beijou-lhe a testa e despediu-se.




“ De todos os meninos, aquele era o mais bonito e mais bem comportado. Diziam que parecia um anjo, de cabelo claro, olhos azuis, bochechas vermelhas… Mas um dia, veio uma fada e quis fazer-lhe uma marca, para o nomear anjo de Deus. O menino gritou, esperneou, tinha medo de ficar feio e que já não gostassem dele! Os pais, tristes com aquela reação, deixaram de lhe fazer as vontades, e o menino deixou de acreditar de que era o preferido. O seu cabelo escureceu, os dentes pequeninos e imaculados começaram a cair, aparecendo outros no seu lugar, maiores e estranhos, borbulhas vermelhas encheram as suas bochechas, e o menino começou a perder a alegria da primeira infância. O seu irmão mais novo, transformou-se num menino ainda mais bonito do que ele fora um dia, e ao contrário de si, ficou muito feliz quando a fada lhe fez a mesma proposta. Deixou que ela lhe fizesse a marca dos anjos, mas como pagamento, teria de voltar com ela para o céu. Os pais e o primeiro menino choraram muito, suplicando para que ela lhe retirasse a marca e o devolvesse à terra, mas ela não quis saber. Aquele menino queria ser anjo, e os anjos só podiam viver perto de Deus.”



- Não o leve!! Não! – gritou João, que acordou desesperado coberto de suor. Uma voz de mulher contava-lhe uma história em sonhos, sem rosto nem nome. Uma angústia sufocante apertava-lhe o peito, tirando-lhe oxigénio, como se se afogasse lentamente. Os enfermeiros subiram a dose do calmante, aliviando-lhe a dor, e depois de alguns minutos, retomou o seu sono induzido e involuntário. O último pensamento que teve foi o anjo, que lhe sorria, sorrindo feliz, em direção a Deus.


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(imagem, internet)

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