terça-feira, 8 de setembro de 2020

"A Mala Vermelha" - Capítulo 26




 - João, eu amo-te... - Isabel beijou-o, depois de o olhar profundamente, cravando-lhe uma angústia quente e funda no esterno, que o sufocou. A garganta seca dificultava a respiração e levantou-se, fingindo um mal estar repentino provocado pelo jantar sumptuoso que tomaram no quarto do hotel. Ela queria privacidade, intimidade, cumplicidade, e João tentou até não aguentar mais. “Amo-te...” era o limite da sua capacidade, pensou, molhando a cara com água fria na casa de banho, onde se refugiou. O pânico começava a alastrar-se na sua mente, e o corpo reagia como uma bomba. Recordava-se daquilo, pensou, obrigando-se a respirar fundo. Picadas leves percorriam-lhe os braços lentamente em direção às mãos, uma sensação de leveza nos joelhos parecia retirar-lhe as forças das pernas, o que disparou o pânico. Tinha de sair daquele quarto rapidamente, apanhar ar, já não suportava o perfume dela, que o estrangulava desde que fechara a porta do quarto mais cedo. Todo o corpo de Isabel estava envenenado com o cheiro agressivo a flores, e tinha-o beijado durante horas, lembrou-se assustado, estava contaminado, iria morrer. Abriu a porta da casa de banho e precipitou-se à procura do telemóvel, vestiu uma t-shirt, calçou-se e disse-lhe que ia tentar comprar champanhe. Foi o que lhe surgiu no momento. Precisava de se afastar dela, sem levantar suspeitas. Correu pelo corredor até encontrar a porta que dava acesso à zona exterior da piscina. Respirou como se estivesse submerso há alguns minutos, com os pulmões a exigir oxigénio furiosamente. Colocou-se de cócoras, para poupar as pernas que pareciam ceder com o peso da sua angústia. Precisava de a ouvir, de ouvir aquele mantra que só ela sabia, pensou, carregando no número dela, tinha de a gravar a cantar aquilo, acalmava-o. - Estou, Isabel? - João?, o que aconteceu? O que se passa? João?... - Desculpa. - João?... 



De todos os meninos, aquele era o mais bonito e mais bem comportado. Diziam que parecia um anjo, de cabelo claro, olhos azuis, bochechas vermelhas… Mas um dia, veio uma fada e quis fazer-lhe uma marca, para o nomear anjo de Deus. O menino gritou, esperneou, tinha medo de ficar feio e que já não gostassem dele! Os pais, tristes com aquela reação, deixaram de lhe fazer as vontades, e o menino deixou de acreditar de que era o preferido. O seu cabelo escureceu, os dentes pequeninos e imaculados começaram a cair, aparecendo outros no seu lugar, maiores e estranhos, borbulhas vermelhas encheram as suas bochechas, e o menino começou a perder a alegria da primeira infância. O seu irmão mais novo, transformou-se num menino ainda mais bonito do que ele fora um dia, e ao contrário de si, ficou muito feliz quando a fada lhe fez a mesma proposta. Deixou que ela lhe fizesse a marca dos anjos, mas como pagamento, teria de voltar com ela para o céu. Os pais e o primeiro menino choraram muito, suplicando para que ela lhe retirasse a marca e o devolvesse à terra, mas ela não quis saber. Aquele menino queria ser anjo, e os anjos só podiam viver perto de Deus.


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… quem está livre és mesmo tu! O menino ria, deitando a cabeça para trás, em provocação, mas adorava-o, não conseguia sentir raiva dele. Tão bonito quanto atrevido, sempre a sorrir a cada partida, sem nunca perder a energia infantil, como um pião giratório, que enlouquecia tudo e todos. Anda cá! Gritou, correndo no seu encalço, excitado com a fuga. Queria ver-lhe o rosto, perceber porque se sentia tão feliz perto dele. Sabia que o conhecia, só queria apanhá-lo a tempo de o olhar, pois sentia-se a acordar, estava quase lá, a pequena mão escapava-se-lhe como se estivesse besuntada de manteiga, mas nesse momento percebeu que não, era geleia, de marmelo, que a avó fizera de manhã e lhes dera dentro de um pão, que cheirava a amor e felicidade, o cheiro dos lanches da avó Lena…


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Com mais força! – gritava-lhe o irmão mais novo, a pedir que João lhe empurrasse o baloiço. – Daqui a nada sais a voar! – respondeu, dando um impulso ainda maior e rindo com o espírito corajoso de Filipe. – Meninos! Venham jantar! – chamou a mãe naquele tom melodioso característico das horas de comer. Correram os dois para ver quem chegava primeiro. Filipe detinha o recorde, orgulhoso e fazia sempre uma festa quando atingia a porta mais depressa que o irmão mais velho. A casa cheirava a assado, o prato preferido dos dois. Continuaram a corrida para ver quem lavava as mãos mais depressa, mas o pequeno Filipe sorria-lhe esticando-se a pedir ajuda para chegar ao sabonete. – Dá cá esses dedinhos marotos!


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- Vens comigo, mano? - perguntou-lhe uma voz mimada, puxando-lhe pela mão. Queria acabar de ler aquele capítulo, pensou aborrecido. Mas só ele é que tinha a obrigação de aturar o miúdo?, resmungou frustrado, levantando-se. - Depois vamos pedir à mãe os chocolates? Sabias que ela trouxe duas tabletes escondidas? Eu vi-as! - riu-se, com os olhos a brilhar de contentamento. - És um safado... se ela descobre que andaste a mexer na mala vais ficar de castigo! E depois os chocolates são todos para mim! - provocou-o, aproveitando-se da ingenuidade dele para o chatear. - Não!, são meus! - gritou, tentando dar-lhe uma canelada furioso. - Se tornas a fazer isso mando-te para a água e deixo-te lá ficar, e sabes porque é que a cor da água é tão verde? São as algas... que te vão agarrar num pé e puxar, e nunca mais sais! - Mãaaaae.... - fugiu a choramingar, procurando o consolo da mãe e fazendo-lhe queixas. - Sim, sim, já vou... - bufou, sabendo que já ia ouvir um ralhete. Aquele chato conseguia tudo o que queria, não o deixava ler em paz deitado na toalha, e agora ainda ia pô-lo de castigo... nunca mais chegava o dia em que ia estudar longe de casa... suspirou, imaginando-se um engenheiro agrónomo, como o avô, todo o dia a passear pela produção, de chapéu estiloso e botas de borracha. - Sim, mãe...

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Quem está livre és mesmo... tu! - o menino desatou a rir provocadoramente, fez-lhe uma careta e figiu – Não m'apanhas! - João aceitou o desafio e seguiu-o, sem conseguir alcançar a passada do menino, que ria e olhava para trás divertido. Olhou para a direita e viu a água cristalina a brilhar - Vamos ao banho?Por favor... eu quero ir ao banho... mano, anda... vem comigo... - suplicava o menino, puxando-lhe por um braço, sem desistir – Tu prometeste... - fez beicinho, largando-o e correndo na direção da água. Um medo apodereou-se do seu corpo, queria dizer-lhe que era perigoso, mas a voz não lhe saía, tentou correr, mas os pés enterravam-se na areia rija, sugando-o lentamente, enquanto o menino desaparecia na água, dizendo-lhe adeus.


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- Não… não pode ser… não… - dizia com a cabeça nas mãos, sentado no chão e balouçando-se ritmadamente. Sentia-se a enlouquecer, não queria aceitar aquilo, porque se o fizesse cairia no desespero, e não sabia se conseguiria voltar de lá inteiro. – Desculpa filho… - disse o pai que parecia um fantasma. – Agora somos só nós os dois. – concluiu sem emoção, como se falasse de algo trivial. João levantou-se e repeliu-o, aquela figura patética e inútil que a tinha deixado sucumbir à doença, porque não fora ele em vez da mãe? Gritava interiormente revoltado. Naquele dia jurou não permitir que outras pessoas se matassem de tristeza, iria ser Psiquiatra, curá-la-ias daquela doença e conseguiria fazê-las ver o lado bom da vida. João não carregaria para sempre a culpa de ter deixado Filipe afogar-se, e com ele, ter morrido uma parte da sua mãe.”



- Senhor!!!!, o funcionário do hotel gritou, descalçando-se rapidamente e lançando-se à água completamente vestido. Mergulhou para o alcançar, mas o corpo parecia fazer força na direção do fundo da piscina, obrigando-o a vir à tona ganhar ar para outra tentativa. 


Sempre que a via sentia-se assim, parvinho de todo, sem saber como lhe dizer todas aquelas coisas inteligentes que pensara no dia anterior. Era impossível ser natural e descontraído quando ela estava por perto, lamentava-se. Naquele dia combinaram ir beber um café ao Samambaia, sentaram-se um em frente ao outro, pediram café, depois água, um bolo, uma torrada, dois finos, tremoços, e acabaram a tarde a serem repreendidos pelo empregado de mesa para pararem com os beijos, havia clientes incomodados. Invejosos, dissera ela divertida. 


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Agora que já somos namorados oficialmente, temos de pensar num assunto de extrema importância, João! – disse muito séria, deixando-o alarmado. Sentou-se para a olhar melhor, ali deitada na relva de braços atrás da cabeça parecia-lhe a coisa mais bonita que já vira.

- Diz lá, então. – sorriu-lhe acendendo um cigarro.

- De que cor é que compro a minha mala? – continuou séria, a esforçar-se para não se rir – É que vamos andar sempre juntos, e preciso de saber qual a cor que vai ficar melhor com as tuas roupas!

- Estás a brincar, ou a falar a sério? – perguntou meio aparvalhado.

- Palerma! – disse-lhe rindo agarrada à barriga – Achas mesmo que ia querer combinar a carteira contigo? Adoro esta, só me separo dela quando uma de nós morrer! – profetizou, continuando a rir do ar apalermado com que João tinha ficado.


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- Não sejas teimosa, isso não combina, fica horrível! – exclamava já enervado com a insistência de Isabel em querer ir ao jantar de Natal da Clínica com o vestido de gala e aquela mala desgastada e berrante. – Não te sabia tão conhecedor de moda… - ironizava, sabendo que o iria irritar ainda mais. – Se levas isso ao ombro, então não vamos! – berrava já a perder as estribeiras com aquele comportamento da mulher. – Eu não vou, pronto, se te incomodo assim tanto. – bateu a porta do quarto e trancou-se novamente. – Isabel, por favor, deixa-te de palermices. 


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   A casa estava escura e silenciosa, João tinha bebido um pouco demais por se sentir chateado com a mulher, e tentava encontrar o caminho até ao quarto sem fazer barulho. Percebeu com alívio que ela destrancara a porta, entrou e sentou-se na beira da cama a olhá-la. Continuava bonita, como sempre, mas algo tinha mudado entre os dois. Não sabia bem quando acontecera, mas a dada altura dera por si a deixar-se levar pela conversa dengosa da sua secretária, que o assediava sem culpas desde o primeiro dia. Quando a olhava assim tinha remorsos, muitos remorsos, pois apenas a contemplava, como se ela ainda fosse a antiga Isabel, doce, alegre e divertida. Depois ela acordava e todos os fantasmas se erguiam com ela, os filhos que ele ainda não tinha vontade de ter, por sentir que a iriam roubar dele, a mágoa que ela trazia desde então… Não tinham ainda bebés, e eles já lhes tinham destruído o casamento, pensava rancoroso. Detestava-os, os seus filhos por nascer. E isso não o deixava em paz. Filipe era um dos motivos, mas não lho podia dizer, jurara nunca falar sobre isso. Aquele irmão pequeno, sorridente, o primeiro “filho” que a vida lhe tinha trazido, e que ele tinha deixado afogar-se… 


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- A Eduarda vai ser mãe. – comentou Isabel, animada com a notícia de que a melhor amiga conseguira finalmente realizar o seu sonho de engravidar, depois de alguns anos de dificuldade e sofrimento. – Ai sim?, que bom. – disse sem sequer a olhar. Aquele tema surgia de tempos a tempos como uma sombra a pairar sobre os dois, dissipando-se depois com as distrações do dia-a-dia das suas carreiras absorventes. – João, podíamos pensar nisso também. Não para já, que estás a iniciar o trabalho na Clínica e precisas de te dedicar a isso, mas daqui a um, dois anos. – sugeriu Isabel a medo. Sabia que o marido fugia do assunto, mostrando-se muito pouco interessado em ser pai, mas ela adorava um dia engravidar, ser mãe, cuidar de um bebé, e se para isso, tivesse que deixar a carreira, não pensaria duas vezes. – Isabel, ainda é cedo, e não tenho a certeza de que isso seja uma boa ideia. - tentou desculpar-se, sem conseguir ser honesto com a mulher, que o olhara magoada. Depois da morte de Filipe, o seu primeiro “filho”, não teria capacidade emocional para passar por tudo de novo. A cara do irmão a desaparecer na água do rio ainda o assombrava em algumas noites. Não, ser pai nunca.


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- Podíamos ir dar uma volta, estamos aqui sempre enfiados… - perguntou aborrecido por ultimamente passarem os fim-de-semana encafuados em casa. – Não tenho vontade, vai tu. – respondeu Isabel voltando para a sua leitura, sem sequer o olhar. – Dar um passeio de bicicleta? Ir à Figueira comer um gelado? Qualquer coisa? Podes largar a porra do livro e olhar para mim quando falo? – perguntou quase aos gritos, irritado com o desprezo dela. – Tens de ser malcriado? Deixa-me em paz! – gritou de volta, levantando-se e deixando-o sozinho na sala, furioso. João apertou a cana do nariz com os dedos e desistiu, saindo porta fora. Pegou no telefone e ligou-lhe, ao menos aquela tinha sempre uma palavra simpática.

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-Odeio-te, deixa-me em paz! – gritou Isabel, fechando a porta do quarto na cara de João. – Deixa-te de histerismos! – berrou-lhe de volta, dando uma palmada na porta. Aquele casamento estava a ir por água abaixo, pensou, farto de tudo aquilo. – Eu só queria um filho, egoísta de merda! – exclamou descontrolada de dentro do quarto. João sabia que um dia ela lhe iria atirar aquilo à cara. Agora era tarde demais, Isabel não poderia engravidar nos próximos anos, teria de tratar o cancro primeiro. Era óbvio que ela temia morrer, sabia-o, e ele não lhe tinha concretizado o sonho antes disso. Engoliu em seco, pegou nas chaves e saiu. Se ela morresse não teria hipótese de se redimir. Mais uma culpa para juntar ao rol.”



......


Filipe olhou-o amuado, a fazer aquele beicinho adorável, pensou, divertido. Sempre que não lhe faziam as vontades ficava impossível, até conseguir o que pretendia. Não percebia bem o que mais queria o irmão, já tinha cedido e entrado na água com ele, mesmo com frio e pouca vontade de brincar. Mandou-lhe água para a cara em provocação, rindo descontraído, e Filipe desatou a chorar ruidosamente. Tentou alcançá-lo, não gostava de o ver magoado, mas tinha sido só uma brincadeira. O menino agarrou-se com força num abraço, como se nunca mais o quisesse largar. João comoveu-se e deixou-se ficar a sentir a pele quente e fofa de Filipe, dando-lhe colo. “Desculpa mano...”, disse o menino, dando-lhe um beijinho no ombro, mas sem o olhar, envergonhado. “A mãe disse-me que tinha de te vir pedir desculpa... Ela está muito zangada, só me dá mais chocolates se eu te abraçar com muita força!”, explicou, apertando-o ainda mais, o que surpreendeu João. Como podia o irmão ter tanta força... “Agora já passou, e eu quero voltar para o colo da mãe, ela tem chocolates, ok?”, disse, olhando-o e segurando a cabeça de João com as mãos. “Tudo bem, mas tu não sabes nadar...”, respondeu preocupado, olhando em volta e vendo a distância a que ainda estavam da terra. “Não é preciso, ela leva-me, mas tens de me largar.”, explicou, apontando para cima. João olhou e viu a tona da água, como se estivessem os dois submersos de repente. Algas altas e largas ladeavam-nos escurecendo a água, e João agarrou Filipe com força, batendo os pés furiosamente, na tentativa de os salvar aos dois do afogamento eminente. “João!, não ouviste?, a Mãe tem chocolates, deixa-me ir!”, pediu Filipe obrigando-o a olhar nos seus olhos. “Vem para a toalha, já acabou, está frio. Eu quero que vás secar-te, ainda não podes vir connosco, e não há chocolates suficientes para os dois.” João parou bruscamente, e sentiu o irmão soltar-se devagar e subir sem esforço, a rir na sua direção, dizendo-lhe adeus. A sua mão gordinha girava e desapareceu sem que isso o angustiasse. Uma sensação de paz invadiu-o, fazendo-o boiar calmamente até à tona da água, estava livre, pensou, e tossiu violentamente, cuspindo a água que lhe bloqueava a respiração e deixando o oxigénio entrar.


- Senhor!!! Está a ouvir-me? - disse aliviado ao vê-lo tossir a água que engolira e respirar de novo. - Que susto... se não chegasse neste momento tinha morrido... - arfou do esforço de o içar da água. 

- Obrigado... - João sorriu agradecido ao rapaz da receção, que o tinha salvo do afogamento, percebeu, olhando em volta, ainda em choque. Levantou o tronco e tentou compreender como tinha caído na piscina, não se recordava de cair ou tropeçar, apenas se recordava de estar a falar ao telefone com a Isabel. - O meu telemóvel?

- Acho que ficou na água... - respondeu, olhando o fundo da piscina e vendo o aparelho preto.

- Ajuda-me a levantar? Tenho de voltar para Coimbra, depressa. Tenho de ir ter com ela, é urgente. - A ideia de que Tiago a pudesse ter atacado enquanto ele estivera ausente no internamento e a sofrer de amnésia invadia-lhe a mente. - Não vou voltar ao quarto, e preciso que empate a mulher que veio comigo. - explicou, enquanto tentava organizar os pensamentos. Teria de trocar de roupa, e tinha todos os seus pertences no quarto onde estava a Nélia. Odiava-a de uma forma que não conseguia controlar, e temia fazer um disparate. Como tinha sido ela capaz daquela loucura toda... de o enganar...

- Tenha calma, acabou de passar por uma experiência traumática!, Pode precisar de ser visto por um médico... - tentou racionalizar o rapaz, confuso com aquele discurso.

- Ouça, não posso explicar, mas preciso mesmo de sair daqui hoje, vá ao meu quarto e arranque a mulher de lá, não sei como..., diga-lhe que há uma simulação de incêndio... sei lá!, tenho de ir buscar as minhas coisas sem que ela me veja. - agarrou na lapela encharcada do casaco do rapaz, olhando-o desesperado.

- Calma, eu vou lá. Mas primeiro deixe-me trocar de roupa... - olhou-se nervoso.

- Claro, claro, tem razão... 

- Fazemos assim, vem comigo até ao balneário dos funcionários, eu visto-me e vou lá ao quarto chamá-la... e depois pode ir ao quarto buscar as suas coisas... - o desespero nos olhos do homem convenceram-no de que tinha de o ajudar, mesmo achando tudo aquilo de loucos. 

- Obrigado..., como se chama mesmo? - perguntou João agradecido pela ajuda.

- Filipe.

João sorriu e abraçou-o, num ímpeto. Sim, aquele podia ser o seu irmão mais novo, se fosse vivo. Um Filipe corajoso que salvaria um desconhecido.

- Obrigado, Filipe.




- César, estou-lhe a dizer... ele telefonou-me e chamou-me pelo meu nome verdadeiro... depois pediu-me desculpa e calou-se! Ficou tudo em silêncio! Aconteceu alguma coisa, eu sei! - bradou Isabel desesperada ao telefone, já a imaginar o pior. - Já liguei centenas de vezes e vai sempre para a caixa de correio. Ele está no Gerês, enviou-me hoje cedo uma foto do hotel onde tínhamos estado os três no verão... - gemeu, deitando uma lágrima que desencadeou um choro compulsivo que tentava segurar há muito tempo. 

- Isabel, tem calma. Não podemos pensar em desgraças. Pode haver uma explicação lógica para isto tudo. Como se chamava o hotel onde estiveram?, recordas-te? Telefonamos para lá e tiramos a limpo se aconteceu alguma coisa. - disse o psiquiatra pragmaticamente.

- Sim, tem razão... - soluçou com força, tentando estacar o choro, e procurando na memória o nome do hotel - ...era qualquer coisa “amigo dos patudinhos”... não sei bem mais o quê...

- Vou desligar e tentar descobrir onde é esse hotel. Calma... tenta beber um chá e acalmar-te. Já torno a ligar para te dar mais informação. - suspirou alto, largando parte da preocupação que o começava a invadir. Lisa olhava-o de lágrimas nos olhos, visivelmente emocionada com a teoria que todos pensavam mas não verbalizavam. João poderia ter cometido o suicídio, e isso era impossível de aceitar. Pegou no pc e começou à procura no google de hotéis no Gerês onde houvesse alguma indicação de aceitarem animais de companhia ou alguma descrição parecida com o que Isabel tinha dito. Era preciso manter a sanidade mental antes de qualquer atitude drástica ou desespero, disse a si mesmo em auto-controle. A mulher mantinha-se nas suas costas, agarrada a si, em tensão, dando-lhe inconscientemente algum apoio físico. Colocou a mão por cima da dela e Lisa gelava. Pegou nela e deu-lhe um beijo, agradecendo-lhe. Rapidamente encontrou meia dúzia de números de possíveis hotéis que cabiam na descrição e ligaram para todos, acabando por acertar no último, tinha lá estado de facto um cliente chamado João Marques, mas saíra há pouco mais de meia hora. O rapaz que atendeu César parecia desconfiado com as perguntas, e não deu muita informação adicional, mas algo se tinha passado. O importante era que ele estava vivo, e de volta. Recompuseram-se do susto e telefonaram a Isabel, descansando-a. Nada de grave acontecera, teriam de aguardar até que João contactasse um deles, pois o telemóvel não funcionava por algum motivo.


Isabel chorou de alívio até o cansaço a derrotar. Coisas horríveis tinham-lhe passado pela cabeça, cenários de tragédias às quais não saberia sobreviver. Um breve momento de terror, que felizmente não tinha passado de imaginação, disse a si mesma, lavando a cara com água fria. Sentia-se miserável, cansada e com sono. De manhã cedo teria de ir dar aulas e já devia algumas horas à cama, precisava de descansar. Deitou-se por cima das cobertas, tapando-se com uma manta, sem forças para desfazer a cama. Parecia-lhe que um trator a tinha atropelado, tudo lhe doía, da cabeça aos pés. Filipe Jr enroscou-se timidamente nela, ainda amedrontado com a cena dramática, cheio de sono e frio, obrigando-a a levantar um dos braços para ele se colocar por baixo à procura do calor. Finalmente a respiração de Isabel permitia ao pequeno cão acalmar-se e render-se ao cansaço, adormecendo quase em simultâneo, cão e dona, como se um feitiço os tivesse tocado. Nenhum dos dois acordou, quando a meio da noite João entrou em casa usando a chave guardada no vaso e se deitou junto deles, adormecendo também instantaneamente, sem pensar.


Ouviu o despertador ao longe, com grande dificuldade, e durante alguns minutos não conseguiu levantar-se e desligar o aparelho. Sentia-se ainda derrotada e com sono, precisava de mais umas horas de descanso, pensou, abrindo os olhos pesados e procurando com a mão pelo cachorro, que estranhamente não se encontrava na cama. Levantou-se, vestiu o robe, foi à casa de banho e ficou horrorizada com o seu aspecto. Olheiras fundas e negras faziam um contraste ainda maior aos olhos inchados. Como poderia encarar a aula de yoga e as suas alunas com aquele aspecto?, perguntou-se desanimada. Teria de colocar maquilhagem, o que detestava, para parecer humana. Saiu do quarto, dirigiu-se à cozinha para fazer café, procurando com o olhar pelo cão, que parecia ter desaparecido. Encheu a cafeteira com água e procurou pelo pacote do café no armário, quando um vulto a fez virar-se repentinamente. A cafeteira caiu ao chão com estrondo, quando as mãos ficaram amolecidas com a visão de João com Filipe ao colo, que se debatia a tentar lambê-lo, histérico.

- Não te quis acordar antes, cheguei durante a noite.

- Como assim, chegaste durante a noite? - conseguiu dizer, com a garganta seca.

- Ontem lembrei-me de tudo, Isabel. - largou o cão e tentou puxá-la para si, mas Isabel cruzou os braços, fugindo-lhe. Em vez disso apanhou a cafeteira do chão e deu-lhe algum espaço. Já tinha imaginado que ela fosse reagir mal e não queria magoá-la mais.

- O que aconteceu ontem? Tentei ligar-te centenas de vezes... não imaginas as coisas que me passaram pela cabeça... - o choro rebentou-lhe atrapalhando-lhe as palavras - ... pensei que tinhas morrido... Disseste o meu nome. - João tentou abraçá-la novamente, mas ainda era cedo, não queria que ele lhe tocasse.

- Desculpa Isabel, é uma longa história, - não queria perturbá-la com o afogamento evitado pelo Filipe, o rapaz da receção - O telemóvel caiu e estragou-se e não tinha forma de te ligar de volta. Por isso vim embora.

- E a Nélia? Veio também? Levaste-a a casa, antes de aqui vires arrombar a minha porta? - bradou a sentir-se colérica, continuando a chorar sem parar. Agarrou num maço de guardanapos e limpou-se furiosamente, evitando novamente as mãos dele.

- Não... ela ficou lá. Deixei-a lá... mas não quero falar sobre essa tipa. Isabel, por favor, eu quero saber de ti. O que aconteceu contigo depois da morte do Filipe? - perguntou emocionado ao relembrar momentaneamente o dia em que encontrou o cão pendurado na sala de yoga, como um animal de abate, e que o levou a um esgotamento. - O Tiago? Ele atacou-te? O que aconteceu depois?

- Eu matei-o. - disse friamente, enquanto algumas lágrimas lhe desciam pela cara e pescoço. - Não é preciso ficares preocupado. Está tudo resolvido.

- Mataste-o? - bradou, agarrando-a à força. Sabia que ela nunca iria correr-lhe para os braços, estava demasiado magoada com ele. - Desculpa, eu devia ter feito isso, devia ter sido eu a acabar com ele... 

- Fiquei louca quando acordaste na clínica e não me conheceste... - gemeu, agarrando-se finalmente a João, que a apertou com força contra si - , atraí-o para aqui e espetei-lhe uma faca da cozinha no peito...- concluiu, chorando o que restava para chorar.

- Isabel... vamos sair da cozinha... - conseguiu dizer, depois de alguns minutos de silêncio e lágrimas - Aqui há muitas facas... - sorriu-se com a piada que lhe surgia inesperadamente.

- Parvo... - Isabel soltou uma gargalhada, sem conseguir largar o abraço apertado. Limpou a cara à t-shirt dele, escondendo-se no seu peito, sentia-se com pouca coragem para o olhar. Estava feia, inchada e ranhosa.

- Anda, vamos sentar-nos aqui na poltrona. - arrastou-a suavemente para o cadeirão fofo e sentou-a ao seu colo. Amava-a tanto que só lhe apetecia gritar de euforia. Finalmente sentia a sua respiração acalmar, mesmo sem a olhar nos olhos sabia que sorria. Beijou-lhe o alto da cabeça, repetidamente, e esperou que Isabel o quisesse enfrentar. Ela foi gradualmente inclinando a cabeça até os olhos dos dois se encontrarem. João beijou-a e todo o seu mundo voltou a girar na rotação certa. Queria amá-la ali mesmo, mas Isabel separou-se do beijo olhando-o duramente por uns segundos.

- Quando foi a última vez que estiveste com ela? - perguntou-lhe secamente. - Não mintas.

- Isabel... o que interessa isso? - aquilo não ia dar bom resultado, pensou, engolindo em seco.

- Responde. 

- Ontem. - disse envergonhado.

- Vou fazer o café, queres torradas? - perguntou sem denunciar qualquer tipo de emoção negativa, o que o confundiu.

- Sim..., pode ser... mas, não estás zangada? - perguntou a medo a sentir-se desorientado.

- Não posso estar zangada, não eras tu. Mas vais ficar de quarentena. 

- Como? - sorriu-lhe, divertido com a piada.

- É isso mesmo... ainda ontem aquela... pessoa esteve contigo. Não esperas que me vá deitar hoje contigo, pois não? 

- Isabel... Isabel... - olhou-a divertido. - Não me provoques que eu vingo-me.


(direitos reservados, AFSR)

(imagem, internet)

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