quarta-feira, 2 de setembro de 2020

"A Mala Vermelha" - Capítulo 22




 - Vamos sair hoje à noite? - perguntou João a tentar desanuviar o clima tenso e pesado que se sentia naquela casa depois dos dois terem feito amor. Nem a conseguia encarar, como iriam ali ficar os dois sozinhos a jantar e a ver as horas passar até um deles ter sono?

- Pode ser. - finalmente uma boa ideia, pensou aliviada. - Também podíamos jantar fora... não há aqui nada para comer. - explicou, olhando com desprezo o interior do frigorífico.

- Excelente! Vou-me arranjar, estou habituado a jantar cedo, por causa dos horários da clínica. - fugiu do campo de visão dela e encaminhou-se ao quarto, fechando a porta. Passou as mãos pelo cabelo e sentiu a pequena cicatriz da orelha a raspar na sua mão, o que o fez sorrir ao recordar o acidente com a tesoura e a enfermeira. Apanhou o livro do "Sexo Tântrico" do chão, de onde caiu um pequeno pedaço de papel que voou para debaixo da cama, obrigando-o a colocar-se de gatas para o apanhar. Pegou nele curioso e sentou-se na cama, "Marta... professora de Yoga...e um número de telefone fixo...". Marta, disse a si mesmo, matutando, novamente aquele nome, sexo tântrico, ganesha, yoga...aquilo não podia ser coincidência, concluiu excitado. Pegou no telemóvel para marcar o número do cartão de visita mistério e reparou com desconfiança que tinha feito uma chamada para o contacto "ganesha", durante alguns minutos. Talvez o tenha feito sem querer, pensou a sentir-se culpado e confuso. Só esperava que não tivesse sido na hora do sexo desconfortável... Só lhe faltava mais essa. Pôs esse pensamento de lado e marcou o número fixo, ficando ligeiramente nervoso com aquele compasso de espera a ouvir os toques do outro lado da linha.

- Estou?... Estou sim?.... Quem fala?

João ficou mudo, sem reação, conhecia aquela voz, sem sombra de dúvidas. Desligou automaticamente o telefonema e deixou-se ficar estático sem saber bem o que fazer a seguir. Que raio de confusão era aquela... perguntava-se ansioso. A voz que ouvira era a da enfermeira de castelo branco, que se chamava Marta e lhe dissera a dada altura na conversa que também era professora de yoga. Mas porque fingira que não o conhecia? Se tinha um livro dela em casa e um cartão pessoal deveria ter tido contacto com ela anteriormente... matutava. Precisava descobrir a morada associada àquele número fixo, talvez fosse a casa dela. Iria lá e tiraria tudo em pratos limpos, decidiu, guardando o livro e o cartão na gaveta da mesa de cabeceira. Agora era hora de ir sair com a sua namorada... disse a si mesmo, mais para se encorajar que outra coisa qualquer. Precisava urgentemente de recuperar a intimidade com ela, aquela convivência não estava a ser nada fácil. Pareciam não ter tema de conversa, e para além dos seus atributos físicos, não vira nada nela que o pudesse cativar. Seria ele um homem fútil antes do acidente?


Elisabete poisou as compras no tapete de entrada para procurar a chave de casa e estacou surpreendida ao ouvir vozes masculinas do outro lado da porta. Não estavam à espera de visitas, só lhe faltava mais essa, o dia já estava a correr mal desde que chegara à aula de yoga e Isabel não aparecera. Não lhe atendera o telefone, e estava genuinamente preocupada com aquele desaparecimento súbito da professora. Sabia que a vida de Isabel não tinha sido fácil nos últimos tempos, mas não gostara nada da sensação de ignorância e espanto que teve de comungar com as outras colegas. Algo de grave teria de ter acontecido, Elisabete só queria era já ter conhecimento prévio, para não ser apanhada de surpresa. Para não interromper o marido continuou à procura da chave, mas teve de desistir, a neura atrapalhava-a e pressionou a campainha com força, já a descarregar a fúria no botão, sem dó nem piedade. A menopausa devia estar eminente, pensou derrotada, encostando-se à parede, cansada e afogueada. A porta abriu passado uns momentos e Elisabete estava prestes a soltar em cima de César o desagrado pelo enorme tempo de espera, doíam-lhe as mãos do peso dos sacos e estava atrasada para começar a fazer o jantar. Deu-lhe o beijo da praxe e espreitou por cima do ombro do marido, para ver quem estava sentado na sala. O segurança enorme levantou-se e sorriu-lhe amigavelmente, desarmando-a automaticamente, o que deixou César divertido. Adorava ver a líbido da mulher a dominá-la e as suas lutas internas por reprimir os seus pensamentos mais atrevidos. Ela pensava que conseguia disfarçar, mas era tão genuíno que não podia ficar ciumento sequer. Apenas achava graça, e não raras as vezes Elisabete usava-o para se redimir dos seus ímpetos mais animalescos, o que no final era positivo para os dois. Sabia que já não era o homem de antigamente, e a mulher mantinha-se em forma, saudável, e se a queria acompanhar fisicamente sem ginástica ou outra atividade, tinha de dar a mão à palmatória. Estava gordo e barrigudo, flácido e velho, mas amava-a e ela a ele. Disso não havia dúvidas. Fechou a porta a sorrir e imaginou como seria a sua noite, doce e sensual, quando ela lhe pedisse aquela massagem nos pés... 

- Boa noite. Peço desculpa vir incomodar a esta hora... - explicou-se Janota meio envergonhado com aquela invasão. 

- Não incomoda nada. - cumprimentou-o com dois beijos – Passou-se alguma coisa com a Isabel? Ela hoje não apareceu na aula...

- Bem, foi precisamente por causa dela que aqui vim falar com o Dr César. - confessou gravemente – Ela ficou muito abalada com uma situação hoje de tarde... bem... eu já contei ao Dr o que foi... - sentia-se ligeiramente encavacado com o tema ao falar dele com uma senhora tão distinta. Não tinha coragem de dizer tudo aquilo novamente em frente a Elisabete.

- Sim, querida, senta-te. O Janota veio conversar comigo porque está muito preocupado com a Isabel... E com razão. Esta situação está a descontrolar-se, já está a ganhar contornos sádicos e a miúda não merecia nada disto. - enumerou, tirando três copos de whisky do armário e enchendo-os ligeiramente.

- Mau, podem explicar-me o que aconteceu? - disse frustrada com aquele secretismo todo.

- Resumidamente, o João estabeleceu contacto com a Isabel através de sms, pelos vistos deram-lhe o telemóvel lá na clínica e ele deve ter conseguido maneira de o carregar. Certamente deveria estar a tentar perceber quem era a pessoa que mantinha contacto com ele pelo telemóvel, antes do internamento. Isto sou eu a imaginar, claro... - explicava César, pensativo.

- E...? - resmungou Elisabete impaciente.

- E... parece que a coisa estava encaminhada, segundo a Isabel, mas depois, aparentemente ele telefonou-lhe e quando ela atendeu percebeu que não havia ninguém do outro lado da linha a falar, apenas ouviu durante uns segundos o que lhe pareceu ser sexo. - concluiu, dando um gole na bebida.

- Que vaca... - sussurrou – Desculpem, mas isto está na cara que é coisa da tal Nélia. - Elisabete detestava cada vez mais aquela vizinha nova. - Não percebo o que leva aquela rapariga, tão nova, bonita, a prestar-se a um papel destes... Mas ela não vê que a qualquer momento o João recupera e vai ser uma bronca de todo o tamanho?

- Eu estou-me a borrifar para os problemas dessa tipa, - interveio Janota – só não quero a Isabel exposta a estas cenas. Já chega. Se vissem como ela estava, qualquer dia faz as malas e pira-se para Castelo Branco. 

- Bem, e o que acha que podemos fazer para a ajudar? - Elisabete sabia que Janota tinha medo que a Isabel largasse tudo e fugisse para a sua terra natal, ele amava-a, estava na cara, e era mais um problema para adicionar aos outros tantos da sua professora de yoga e amiga. - Ó César, não achas que devias sentar-te com o João e acabar com esta palhaçada toda? - ralhou com o marido, que no fundo tinha o seu quê de culpa naquela situação.

- Bem... não sei se isso será o melhor..., não é Dr? - gemeu Janota preocupado.

Elisabete olhou-o duramente, calando-o automaticamente, e dirigiu o seu olhar recriminador para o marido, exigindo-lhe uma resposta. - Vocês os homens... Acham certo eles andarem a sofrer quando podíamos acabar com esta confusão toda conversando com os dois? César, eu sei que a tua preocupação é a questão clínica do passado do João, ele pode parecer restabelecido, mas ainda precisa de tempo para enfrentar problemas, blá blá blá... - escarneceu – Mas isto está a ficar descontrolado. Daqui a nada ele engravida esta gaja e acabou-se! Achas certo? Achas que ele te vai perdoar? - virou-se para o segurança – E tu Janota, já percebemos que gostas da Isabel, e muito, mas tens de ter cuidado para não deixares esses sentimentos toldarem-te o bom senso. - levantou-se, pegou nos sacos das compras e dirigiu-se à cozinha deixando-os no sofá. – Agora pensem bem no que querem fazer e depois digam-me, que eu vou fazer sopa. 

César teve vontade de beber os outros copos de whisky ainda intactos, a mulher tinha razão, como sempre. Tinha de preparar um discurso e uma explicação.


Raios partissem naquilo tudo, pensou João furioso ao perceber que a tal Ganesha devia estar chateada... Não queria ser injusto com a namorada, mas tinha quase a certeza de que ela tinha percebido os seus contactos secretos com outra mulher e tinha feito de propósito ao telefonar no exato momento em que estavam na cama. Não se sentia com autoridade para lhe pedir satisfações, afinal ele tinha culpa também, mas parecia-lhe extremamente ordinária aquela abordagem. Já tinha tentado mandar sms, telefonado, e nada. A sua deusa hindú não lhe respondia nem dava cavaco. Terminava ali o seu breve affair com alguém que lhe parecera mais interessante que a loira sentada ao seu lado no carro. A parva mantinha-se com um sorriso vitorioso e cínico, rosnou para si mesmo em pensamento. Como é que algum dia podia ter convidado uma tipa daquelas a viver consigo...? lamentava-se, procurando estacionamento perto do bar onde ela sugerira ir depois de jantar.

- Vais ver que vais gostar! - disse-lhe animada com o ar frustrado dele.

- Não posso beber nada. - respondeu sem vontade nenhuma de ali estar com ela.

- Pois, eu bebo por ti. - gracejou, rindo-se mais do ar de chateado dele que de outra coisa.

Saíram do carro mantendo sempre distância física, e encaminharam-se para a entrada do bar, onde estava Janota à porta, com cara de poucos amigos ao perceber quem eles eram. 

- Boa noite. Tudo bem? - perguntou João estendendo a mão ao segurança. Sabia que eram amigos, fora uma das visitas que recebera no hospital, e estranhou o desprezo dele sem explicação. Talvez fosse uma exigência profissional, pensou, deixando de lado essa preocupação. Entrou depois de Isabel e procurou com o olhar o outro amigo, Salvador, que lhe sorriu de forma bemmais entusiasmada e franca. Várias pessoas o cumprimentaram, certamente velhos conhecidos, e João cumprimentou-os de volta, sem reconhecer ninguém.

- Olá João! Seja bem-vindo ao mundo dos vivos! - gracejou Salvador genuinamente feliz com aquela visita.

- Olá Salvador. Obrigado. - apertou-lhe a mão com vigor – Deixa-me apresentar-te a minha namorada, a Isabel. - disse, depois de uma leve cotovelada da companhia feminina. - Gosto deste espaço, está bem decorado.

- Sim, por acaso quando comprei isto tu ajudaste-me a arranjar o bar. Estás a ver aquele canto ali? - apontou para uma zona de estar mais íntima, com cadeirões, pufs e mesas baixas – Foste tu que deste a ideia! Querias um espaço mais sossegado para as tuas amigas! - piscou-lhe o olho, divertido, como que insinuando que João era mulherengo. - Mas isso foi antes de assentares, claro. - corrigiu.

- Ah.. pois. - conseguia imaginar-se ali com a Ganesha, a ter uma conversa de pé de orelha que o pusesse louco. Era mais o seu estilo, concluiu. Isabel pegou num vodka laranja e foi dançar, deixando-os sozinhos e João sentou-se ao balcão e pediu um sumo. Aquilo ia ser a maior seca de sempre, mas pelo menos a namorada não parecia precisar dele para se divertir.

-É muito enérgica ela, não? - perguntou Salvador, a perceber claramente que João não tinha nada a ver com aquela companhia.

- É... parece que gosta de dançar... - respondeu, dando um gole no sumo que lhe soube a fel.

Salvador olhou repentinamente para o telemóvel e pareceu bem preocupado com algo que lia, olhando para a porta ansioso.

- Bem João, isto hoje parece que vai animar! - soltou, afastando-se e dirigindo-se a outros clientes sem explicar o que queria dizer com aquilo.

Isabel fazia caras e gestos ao som da música, centralizando todas as atenções masculinas sobre si. Não era uma mulher discreta e sabia utilizar bem os seus atributos físicos para captar atenções. Não, não era o seu género de mulher. Para si a beleza tinha de estar presente, claro, mas aquele tipo de beleza que não precisa de se expôr, que não invade o espaço de ninguém, que simplesmente é. Talvez Isabel lhe fosse tão desagradável aos olhos porque no fundo não tinha substrato, pensava. Era fútil e não tinham quase nada em comum que o interessasse. Olhava em volta, a tentar identificar alguém com as características que gostava na mulher, quando uma silhueta se destacou à entrada do bar. Janota colocou-se no seu campo de visão, tapando a mulher e João voltou-se de novo para Salvador, resignado. Pediu outro sumo e tornou a olhar a pista, sorrindo a contragosto a Isabel, que lhe acenava e lançava beijos animada. Um breve instante de luzes mais psicadélicas cegou-o momentaneamente, e quando conseguiu voltar a observar a pista viu Janota a beijar possessivamente a tal mulher bem feita. Ficou a olhá-los, tão apaixonados, e sentiu uma leve inveja daqueles sentimentos fortes que arrebatam as pessoas. O casal voltou-se na sua dança erótica e João viu-a, ali, a balouçar no ombro da mulher, a mala vermelha de Isabel. A boca secou-lhe, poisou o copo com a mão frouxa, e apoiou-se no balcão, sentindo uma dormência na cara que o deixou ligeiramente aflito. Isabel... mas qual Isabel? Perguntava-se desesperado, a namorada? Não... não era dela que se tinha lembrado... O casal soltou-se e João cruzou o olhar lunático com a namorada do segurança. Era a enfermeira, disse a si mesmo quase sem conseguir respirar. Abriu o colarinho do pólo e tentou disfarçar o seu espanto, sorrindo-lhe envergonhado. Janota e a enfermeira aproximaram-se dele, com o segurança mais determinado que a companhia feminina, que parecia contrariada. A mala balouçava batendo-lhe na anca suavemente, João percorreu-a com o olhar, desceu para as suas pernas, maravilhosas, constatou, as da foto da mensagem. Sim, era ela, a Ganesha, tinha a certeza. Mas onde é que entrava a mala de Isabel naquilo tudo?

- Olá João, tudo bem? - perguntou a enfermeira estendendo-lhe a mão.

  - Olá, como vai? - decidiu naquele instante deixá-la perceber apenas que reconhecia a enfermeira. - Também por aqui?

- Já se conheciam? - perguntou Janota dissimulado. - Não sabia que conhecias o Dr João, querida!

- Sim.... do hospital. - explicou a corar ligeiramente.

João percebeu que ela também não ficava indiferente à sua presença ali, e gostou da sensação de a ter incomodado. Aquele segurança não fazia nada o género dela, tão delicada e com um ar tão fresco. Até o cheiro a sabonete que vinha do cabelo dela o começava a deliciar. Sim, aquela era uma mulher que poderia facilmente ser o seu tipo, concluiu. - Sente-se aqui um pouco, para falarmos, o seu namorado deve ter que voltar para o seu trabalho. - sorriu vitorioso ao segurança que ficou furioso com as manobras educadas com que ele lhe tinha "roubado" a namorada. A enfermeira obedeceu e sentou-se ao seu lado, desconfortável com a altura do banco e a saia tão curta. - Podemos ir para ali, - apontou para o canto dos engates – vamos, se temos de esperar, que seja bem sentados. - conduziu-a até à mesa mais discreta e piscou o olho a Salvador, que sorria bem disposto. Sim, ele sabia que aquilo não estava certo, mas dentro de si estava corretíssimo. Tinha de conseguir perceber que tipo de relações cruzadas ali existiam entre eles todos. - Quer beber alguma coisa? - perguntou-lhe.

- Sim, um chá, por favor. - respondeu quase em surdina.

Deixou-a e apressou-se a fazer o pedido a Salvador. - Faz-me um grande favor, ok? Vai dando vodkas laranja à Isabel, e não lhe digas onde estou.

Voltou rapidamente para o canto discreto e colocou-se de forma a que a namorada não o conseguisse ver. - Marta, não é? - começou, enfrentando-a sem a deixar falar. - Primeiro, desculpa a cena do telemóvel, por favor, não fui eu que telefonei. - confessou corando. - Eu nem sei o que pensar... não entendo nada do que se está a passar aqui. Podes por favor explicar-me quem és, ou melhor, o que é que nós somos um ao outro?

- Desculpa João, devo ter-te dado a impressão errada. Nós não temos nada de íntimo um com o outro, o meu namorado é o Janota, como pudeste ver. - explicou, sorrindo-lhe só com a boca. - Foste meu aluno de yoga, sim, por isso te dei o Ganesha, a estátua do elefante, mas não temos nada um com o outro. - mentiu, colocando açúcar no chá mecanicamente.

- Bem... desculpa, não queria insinuar nada... só me pareceu que... - gaguejou constrangido.

- Não há nada a desculpar. - mentiu novamente – É compreensível que andes baralhado, claro. E a orelha? Ficou boa? - desconversou.

- Sim. - mexeu-lhe instintivamente, sentindo a pequena cicatriz – Desculpa, mas porque é que no hospital não me disseste que eras minha professora de yoga? - voltou à carga – E estas fotos? Que conversas são estas que mantivémos pouco tempo antes de ficar internado? - pegou no telemóvel e percorreu os sms, mostrando-os rapidamente - E o que é que me aconteceu, caramba? Quem é aquela mulher ali? - apontou para a pista – Porque é que estás a chorar? - pegou-lhe nas mãos, nervoso. Nada daquilo fazia sentido. - Por favor, explica-me o que somos um do outro. Se não quiseres mais nada comigo, eu compreendo, mas diz-me o que já tivemos,... quem sou eu? - suplicou-lhe, apertando-lhe mais as mãos.

- João.... - gemeu, tentando soltar-se das suas mãos. O seu orgulho não a deixava escancarar toda a verdade como queria. Aquela mulher ali por perto, com a chave de casa dele na carteira e ar arrogante tirava-lhe a coragem. - Desculpa, mas estás a confundir tudo. Eu tenho de ir, o Janota está à minha espera, pode não gostar de me ver aqui sozinha contigo. - tentou levantar-se, sempre de mãos dadas, quase a ceder à força que João fazia no sentido contrário.

- Diz-me porque é que me mandaste as fotos das tuas pernas? Achas que eu sou parvo? Eu sei que tínhamos um caso. Porque é que eu traía a minha namorada contigo?

- Achas-me com cara de amante de alguém? - respondeu-lhe enraivecida com aquelas insinuações despropositadas. - Larga-me já as mãos. - ordenou. - Não temos nada um com o outro. Mandei-te as fotos por engano, pensava que estava a mandá-las para o Janota. Pronto, está explicado. - mentiu, quase a explodir de raiva e tristeza.

- Não foi isso que eu quis dizer! Ninguém me diz nada! - gritou de volta, enfurecido consigo mesmo ao perceber a tristeza dela. 

- É preciso ter muita lata! - berrou Isabel de pé, olhando-os furiosa, e interrompendo o momento dos dois.

- Ainda bem que chegou, o seu namorado precisa de respostas! - enfrentou-a levantando-se e colocando-se bem perto de Nélia. - Talvez esteja na hora de se sentarem e conversarem sobre quem são, como se conheceram, etc. - escarneceu – Boa noite. Pegou na carteira e saiu disparada. Péssima ideia, péssima ideia, recriminou-se, nunca aqui devia ter vindo. E aquele Janota, atrevido, a beijar-me assim em público sem me ter pedido autorização... Parvalhão... Passou pela porta sem sequer abrandar o passo. - Parvalhão! - berrou-lhe, sem lhe dar hipótese de conversa e dirigindo-se ao carro.


- Isabel, já te pedi desculpa, estávamos só a conversar. - disse pela centésima vez.

- A partir de agora se queres conversar, conversas comigo! - gritou descontrolada batendo a porta com demasiada força e fazendo João encolher-se com medo de que ela lhe espatifasse o motor do vidro do carro.

- Devagar! - ralhou chateado. - E não é preciso a vizinhança toda ouvir a nossa conversa.

- Ai não gostas de escândalos, é? - ironizou, olhando-o provocadora. - Pois talvez comece a fazer umas peixeiradas para a vizinhança saber quem tu és!

João deu meia volta e entrou novamente no carro. Mais um bocado e dava-lhe uma galheta. Estava a perder a paciência e não queria ser preso por violência doméstica. Acelerou no carro e deixou-a a esbracejar no meio da rua, colocando o som do rádio bem alto e avançando em direção à liberdade e paz de espírito. Conduziu sem destino, andando sem nexo pela cidade quase vazia, acalmando-se à medida que diminuía a velocidade e aumentava a distância de casa. Parou num semáforo e distraiu-se a explorar o GPS do monitor, ainda não tinha tido tempo para tentar perceber como funcionava aquilo. Procurou o Menu e encontrou Últimos Destinos, carregando curioso. A última morada aparecia-lhe tão clara que não teve qualquer dúvida. Era a morada dela. Carregou em Ir e deixou-se guiar pelas informações do GPS, com as mãos a suar de excitação. Iria só espreitar o local, decidiu, tinha imensa curiosidade por satisfazer. Avançou por ruas que não se recordava de conhecer, uma zona da cidade já afastada, e que parecia demasiado inóspita. Para sua surpresa estava recentemente acaltroada, o que o descansou, aquele carro era pouco prático para caminhos menos recentes. A excitação que crescia dentro de si deixava-o como um miúdo, e não conseguia acreditar na explicação dela de que tinha enviado as fotos por engano. Sentia-se sempre demasiado entusiasmado quando o assunto era Ganesha, ou melhor, Marta. Parou o carro no portão e ficou sem saber o que fazer. Já não eram horas para visitar ninguém, e certamente que ela já estaria a dormir. Uma luz acendeu na casa e João aproveitou a deixa e saiu do carro, trancando-o. Abriu o portão, certificando-se de que não ouvia cão nenhum e encaminhou-se devagar até à porta, respirando cada vez mais dificilmente. Já ali tinha estado, sabia-o, e mesmo sem recordações, sabia que gostava daquele local. Bateu à porta e ficou à espera, respirando profundamente, enquanto aguardava nervoso. Uma fresta abriu e Marta surgiu do outro lado, tão bela e infantil, com um robe e chinelos abonecados e fofos, olhando-o nervosa.

- João?... O que é que fazes aqui? - perguntou nervosa.

- Posso entrar? - perguntou, já entrando, sem lhe dar hipótese de responder negativamente.

- Mas.. eu já estava deitada. - gaguejou, a sentir-se amolecer com a energia vinda dele.

- Não me convenceste, eu sei que gostamos um do outro. - agarrou-a, apertando-a, como no poliban, era ela, aquele corpo tão natural, Marta agarrou-lhe nos cabelos possessivamente e beijou-o, cegando-o. Um chiar estridente fê-los soltarem-se abruptamente, e João viu um pequeno cachorro debaixo dos pés deles, aflito. Sorriu-lhe e pegou-lhe, abrançando-a com o braço livre. Continuaram o beijo, mais calmo e Marta tirou-lhe o cachorro da mão, poisando-o na cozinha por trás de uma grade que lhe restringia os movimentos e o condicionava ao espaço. Abriu o robe e deixou-o abraçá-la por dentro do tecido, mais junto ao seu corpo, sentindo-o melhor e mais profundamente. Tinha sonhado tanto com aquele momento... João tirou os sapatos, o casaco e retomou o abraço, beijando-a com mais paixão ainda. Sim, aquele era o seu sítio. Porque aquilo fazia todo o sentido, era o seu sítio, a mulher que desejava nos seus sonhos noturnos e diurnos. Pegou-lhe em peso e libertou-se, amando-a toda naquele beijo, como se precisasse dela para respirar. Marta amolecia vencida nos seus braços, como se também ela esperasse há muito por aquele momento. Só podiam ser amantes, pensou, ligeiramente incomodado. Olhou-a curioso, seria sempre assim tão forte entre os dois? - Porque é que não somos namorados? - perguntou-lhe, abraçando-a com força. Marta não respondeu, ficando em silêncio, pensativa. Algo mudou na energia que os unia e João ficou confuso, olhando-a à espera de uma explicação. - Diz-me, sempre fomos amantes?

Ela libertou-se, fechou o robe e deixou-o sem resposta, o que lhe provocou uma fúria crescente, não entendia porque é que ela se mantinha tão secretista. - Não entendes que estou confuso? Podes explicar-me por favor o que se passa aqui? Quem és tu afinal? - o telemóvel começou a tocar dentro do bolso das suas calças, e João verificou com ansiedade que era Isabel a ligar-lhe. Desligou a chamada e concentrou-se novamente na mulher amargurada e triste que o olhava em silêncio. O telemóvel retomou o som de chamada e João atendeu, nervoso. - Sim? - lançou bruscamente, sempre sem tirar os olhos dela, tão bela e desiludida. Uma dor quente invadiu-lhe o peito, - Já vou. Não se passa nada. - respondeu ao questionário da namorada – Vim dar uma volta, a ver se te acalmavas. - Marta olhava-o sem reagir, virou-lhe as costas e abriu-lhe a porta de casa, convidando-o em silêncio a sair. - Isabel, agora não posso falar. Já conversamos. Até já. - desligou o telefonema e dirigiu-se à porta, fechando-a com estrondo. - Não vou sair assim.

Marta apanhou os seus sapatos e o casaco do chão e devolveu-lhos, abrindo novamente a porta, sempre em silêncio. João fechou-a novamente, sentia-se a perder o norte, desorientado com o que sentia por ela. Como podia gostar tanto de uma pessoa que nem conhecia, ou se recordava...

- Sai. E não voltes. Por favor. - abriu-lhe a porta – Esquece-me. 

O telemóvel tornou a tocar no seu bolso, e João saiu, de sapatos na mão, ficando do lado de fora da porta, a olhar para o escuro da noite, a sentir-se miserável e humilhado. Calçou-se quase em andamento, mantendo-se firme na ordem que recebera. Vestiu o casaco, acelerou o passo e pontapeou uma pedra que se lhe atravessou no caminho. Abriu o portão e deu de caras com Janota, dentro do carro estacionado, ao escuro, como se estivesse à espera que ele saísse da casa para entrar. Quis ir partir-lhe a cara, precisava de andar à porrada, pensou, enquanto decidia se entrava no seu próprio carro ou enfrentava o segurança. Ficou uns momentos a medir o homem que saía do carro nas calmas e caminhava na sua direção em desafio. Seria uma luta desigual, lamentou-se, ao comparar os físicos dos dois, mas o que lhe faltava em músculo sobrava-lhe em fúria e ódio. Odiava aquele Janota e o facto de ele ter aquela mulher, que devia ser dele. O segurança parou bem perto de si, e ficaram a olhar-se uns segundos, só a mostrar o quanto se detestavam mututamente. Janota sorriu provocadoramente, entrou no portão, fechou-o e disse: - Então adeusinho!

João cerrou os punhos com toda a força que tinha, sem se virar para trás, apanhando coragem para desistir e dar-se por vencido. Entrou no carro e acelerou derrapando com o carro ao estilo dos policiais americanos. 


- É isto que agora vais ser? Amante deste tipo? - perguntou Janota possuído pelo ciúme de os imaginar intimamente momentos antes de ele chegar.

- Não é da tua conta! - respondeu-lhe furiosa com aquela abordagem.

- Isabel, pensa bem, ele tem uma namorada que vive com ele. Se lhe começas a abrir a porta de casa, antes de esclareceres tudo primeiro, vais ser a "outra"! - argumentou, preocupado com o avanço que João fazia na vida de Isabel.

- Eu sei isso tudo, mas desculpa, são assuntos meus. - apressou-se a explicar. Começava a ficar aborrecida com aquelas opiniões do amigo. Sentia-o demasiado possessivo relativamente a ela e um fantasma de Tiago ameaçava a espreitar, regelando-a.

- Eu sou apenas teu amigo, estou preocupado. Encontrei-o à saída, o que foi que se passou? Ele já aqui estava há muito tempo?

- Janota, eu também tenho uma pergunta para ti. Ou melhor, duas! Porque é que me beijaste no bar? E porque é que estás aqui na minha quinta a espiar quem entra ou sai, às 2h00 da manhã?

- Não estava a espiar. - respondeu ofendido. - E beijei-te para mostrar ao João que não precisas dele.

- Ele nem sabe quem eu sou! - berrou-lhe – Sente-se atraído por mim, pensa que sou a enfermeira que o visitou, nunca o esclareci de nada sobre nós! E quem és tu para achar que te deves meter e mostrar seja o que for ao João? Estou farta! Farta disto tudo, farta de Coimbra, farta desta montanha-russa de emoções e de escândalos! Não gosto de me sentir vigiada, - apontou-lhe o dedo – fugi de Castelo Branco para ser livre! Sabes o que é que eu passei antes de me vir esconder aqui? Deixei de obedecer a um pai, que nunca me bateu, para receber ordens de um namorado e ser espancada por um marido. Consegui libertar-me disso tudo e encontrar-me novamente nesta casa, neste local, mas agora nem aqui me deixam em paz! Eu amo-o, percebes? Ele é o meu homem, disso não tenho dúvidas, e não vou querer mais ninguém! Mete isso na tua cabeça. E desculpa se tinhas esperanças relativamente a nós dois, mas isso nunca vai acontecer. Adoro-te, és um bom amigo, o melhor que já tive, mas estás a piorar tudo. - gemeu, já a sentir-se quase prestes a rebentar em choro. - Estou farta... não quero mais isto. Sai por favor, preciso de descansar. - pediu-lhe, derrotada e exausta com todas aquelas emoções.

- Isabel, por favor, desculpa-me. - tentou abraçá-la, ouvindo um pequeno rosnar vindo da cozinha, a avisá-lo de que não deveria forçá-la a esse gesto. Janota olhou o cão com raiva, voltando-se novamente para ela.

- Sai. Está tarde. Por favor.

Janota saiu e Isabel trancou a porta, aliviada. Pegou no pequeno cão e beijou-lhe a cabeça.

- Obrigada por me defenderes. - sorriu-lhe e levou-o para o quarto. - Amanhã vamos embora daqui, isto está a ficar perigoso e ainda és muito pequeno para andar à luta com um homem tão grande. A mamã adora-te, sabias? - deitou-se e deixou Filipe enfiar-se também dentro dos lençóis junto a ela. - Só hoje, porque mereces. 


(direitos reservados, AFSR)

(imagem, internet)

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