terça-feira, 30 de junho de 2020

"Safara" - Capítulo 15



Francisco ainda dormia, a noite tinha sido agitada, com algumas dores que teimavam em resistir aos analgésicos. Os médicos tentavam reduzir de dia para dia a quantidade de “drogas” inicial pós-operatório, mas Francisco lamentava-se muito, estando com um mau humor constante, principalmente depois de Rita se ter escusado a continuar com as brincadeiras do primeiro dia. Não a conseguira convencer a dar-lhe o beijo, mesmo depois da sessão de higiene a que ela o submetera. A rapariga parecia embufada com qualquer coisa, e mantinha-se profissional, fazendo tudo ao seu alcance para o ajudar, mas sem entrar em intimidades.
Rita admirava-o a dormir, sentindo-se bastante em baixo. Gostava cada vez mais daquele parvo, e pusera-se a jeito para se magoar, permitindo-lhe avanços que nunca permitira a ninguém, sem ter a certeza dos sentimentos dele. Pela fama do toureiro, assim que se conseguisse por de pé novamente, Rita passaria à história. Estava num impasse, queria continuar ali a cuidar dele, mas cada dia que passava ficava mais dependente da sua presença. Convencera-se de que mais ninguém sabia a temperatura da sopa que ele gostava, só ela o conseguia acalmar quando o seu génio vinha ao de cima exasperado por não se conseguir mexer, parecia-lhe demasiado cruel alguém estar naquele estado sozinho dias seguidos, sem companhia ou assistência. Por isso tinha-se deixado ficar, mas cada hora que passava, arrependia-se um pouco mais. 
- Bom dia. – grunhiu Francisco, ainda magoado no seu orgulho por sentir que Rita se sentava em vigília cada vez mais distante da sua cama.
- Olá, bom dia. Como te sentes? – disse a Enfermeira dentro de si.
- Melhor, acho.
- Tens fome? Vou buscar-te o pequeno-almoço. – saiu com um sorriso largo que não lhe chegava aos olhos.
- Não precisas de…- começou Francisco a dizer, mas Rita já tinha saído disparada. Aquilo estava a tornar-se muito desconfortável, lamentou-se. Fechou os olhos, suspirando, quando ouviu a porta abrir e uma voz familiar soou a medo.
- Posso?
Francisco arregalou os olhos, ficando petrificado com a surpresa.
- Helena? – não queria acreditar que ela ali estava. – Entra.
- Desculpa só vir agora, soube do que te aconteceu, assim que consegui organizar-me lá no trabalho em Beja vim logo. Também estive a ganhar coragem para te ver novamente… – confessou e sentou-se calmamente ao fundo da cama, sorrindo.
- Não precisavas de vir para aqui, o hospital é um sítio deprimente. – gozou, incomodado com aquela aproximação depois de tantos anos. Parecia tão estranho vê-la agora, estava diferente, mais adulta, pensou.
- Como estás? A operação correu bem, já soube, mas como te sentes? – disse preocupada, pousando uma mão em cima da sua, num gesto carinhoso.
- Estou bem, o touro tentou, mas não conseguiu acabar comigo. Agora é esperar para cicatrizar tudo e voltar à luta. – aquela mão incomodava-o. Pesava-lhe como se tivesse 100 kgs, mas por educação não a retirou.- Helena, porque vieste aqui? Não compreendo, passa-se mais alguma coisa?
- Fiquei tão assustada quando me disseram que tinhas quase morrido… - lamentou-se com os olhos brilhantes de emoção. – Eu sempre vos disse que essa profissão era um perigo. – suspirou, chegando-se mais perto e pegando-lhe na mão que poisou no seu colo. – Tenho pensado muito naqueles anos que passámos juntos em Safara, Francisco. Fomos felizes, não fomos? – perguntou-lhe, sorrindo.
- Sim, acho que sim… – estava cada vez mais incomodado, e a ideia de que Rita poderia entrar a qualquer momento no quarto deixava-o inquieto e desconfortável.
- Tenho tido dúvidas e vim aqui hoje para resolver isto, de uma vez por todas. – chegou-se mais perto de Francisco, olhando-o fixamente.
- Mas… que raio de dúvidas? Tu estás bem? – Francisco olhava alternadamente para a porta e para os olhos verdes de Helena, que lhe pediam que a beijasse. Seria possível que logo agora é que ela vinha com aqueles desejos?
Helena beijou-o, e Francisco deixou-se beijar, num gesto que desejara durante anos, com o qual tinha sonhado noites a fio…
- Andei kms para arranjar café fresco… - Rita entrava de costas, empunhando o tabuleiro do pequeno-almoço, quando se deparou com o final de um beijo escaldante entre Francisco e Helena. – Desculpem… não sabia que estavas aqui Helena…- saiu novamente, atabalhoadamente do quarto, levando o tabuleiro consigo.
Francisco retesou-se, incomodado, olhando a porta com mágoa, esquecendo automaticamente a sensação de ter beijado Helena, o amor da sua vida.
- Desculpa, acho que fui inconveniente. – lamentou Helena, que percebeu o embaraço de Francisco. – Não sabia que tinhas companhia… - disse envergonhada com a sua ousadia - Acho que já fiz asneiras de mais por hoje. Espero que melhores depressa, e boa sorte. – acenou para a porta, indicando a presença de Rita no corredor e saiu apressada, evitando o olhar da enfermeira.
Rita sentia-se a querer desmaiar, respirou fundo e ganhou coragem para entrar no quarto. Sentia as lágrimas a querer romper, mas não lhe daria esse gosto, prometeu a si mesma. Se era a Helena quem ele queria, ela não podia fazer nada, nem mudar os seus sentimentos, mas podia ganhar vergonha na cara e pôr-se a andar dali para fora o mais rápido possível.
- Desculpa, devia ter batido. – disse num tom impessoal, pousando o tabuleiro junto dele. – Queres ajuda para comer?
- Rita…eu.. – Francisco nunca tinha estado numa posição daquelas. Estava aliviado por não ter sentido nada ao beijar Helena, mas o comportamento de Rita dos últimos dias tinham-no deixado confuso.
- Por favor, come. Tens de te alimentar. - ordenou secamente - Demorei-me mais um pouco porque me telefonaram do Centro de Saúde. Pelos vistos não posso tirar tantos dias de férias seguidos. Há muito serviço pendente. Vou ter de voltar amanhã. – mentiu, sentindo-se a morrer por dentro. Sabia que assim que saísse por aquela porta, não permitiria que o toureiro tornasse a entrar na sua vida. Gostava demasiado dele para se permitir continuar naquela tortura, muito menos conseguiria suportar aquelas visões de antigas paixonetas aos linguados com o seu Francisco.
- Tudo bem, já fizeste mais que a tua obrigação. – resmungou Francisco, que percebeu que Helena tinha lixado tudo. Era melhor mesmo que ela se fosse embora, ainda se desgraçava com a presença dela por ali. Parecia não ter defeitos, o raio da mulher. Não iria depender de fêmea nenhuma para ser feliz.
- Agora come, que tenho de voltar à copa e deixar as instruções de como tu gostas da sopa e do leite com café. – engoliu um soluço de choro, enquanto se dirigia à casa de banho, fingindo estar atarefada a arrumar coisas. Olhou-se no espelho e fez o ar mais rígido que conseguia, voltando a entrar no quarto para arrumar as suas tralhas que por ali tinha acumulado durante duas semanas.
- Mas vais hoje? – Francisco ficou subitamente ansioso. Estava bastante habituado à sua presença constante, aquilo estava a ser rápido demais.
- Sim, vou agora. Tenho de apanhar a camioneta para Safara e preparar as coisas para iniciar o trabalho amanhã. Mas não te preocupes, eu vou ensinar a enfermeira chefe de como tu gostas de ser tratado. – sorriu-lhe, pegando no saco e na carteira, e num impulso, chegou-se a ele e beijou-o na face. – Vê se ficas bom depressa e não chateias muito o pessoal.
Francisco ficou mudo, sem reação, mas que raio se tinha ali passado em menos de meia hora…Que raio iria fazer agora ao tempo interminável de recuperação que ainda tinha pela frente… Mas que cheiro era aquele que estava a inundar o quarto? Cheiro a hospital…? Rita fora-se embora e levara o cheiro a flores do campo, lamentou-se, praguejando contra ela. Maldita anã… empurrou o tabuleiro para longe, furioso. 


- Manuel, aquela não é a Rita? – Teresa fez-lhe sinal para parar a pick-up, ao avistar a amiga que saía da camioneta, lavada em lágrimas. – Pára, ela não está bem. – saiu apressada, correndo na direção de Rita. Algo de grave parecia ter acontecido, nunca a vira naquele estado. – Rita! – chamou-a, aflita.
- Teresa? – tentou recompor-se, limpando a cara com o lenço ranhoso que trazia nas mãos.
- O que se passa? Aconteceu alguma coisa ao Francisco? – perguntou Teresa ansiosa, mas arrependendo-se logo de seguida ao ver o olhar mortífero que o nome do toureiro tinha provocado. – Pronto, ok, já percebi. Talvez tivesse sido melhor que lhe tivesse rebentado alguma hemorragia interna, estou a ver… - sorriu-lhe, abraçando-a. - Não queres falar sobre isso? – Rita mantinha-se em silêncio, amparando as lágrimas que caíam desgovernadas. – Anda, vamos até minha casa, eu faço-te um chá… Já almoçaste?, Íamos agora comer um resto de lasanha que sobrou de ontem do jantar. Vais adorar, o Manuel tem cá uma mão para a cozinha, é incrível! E tenho umas novidades para te contar, - engoliu em seco – depois de me ouvires vais desejar não ter vindo embora de Moura! – brincou, abrindo-lhe a porta da pick-up e direcionando-a, pois parecia não reagir, como autómata.
Manuel ficou em pânico ao ver o estado lastimável em que Rita se encontrava… uma mulher a chorar era simplesmente angustiante, ficavam naquele transe, sem reagir, chorando, chorando. Até podia imaginar o que teria provocado aquele histerismo… camelo, tinha-o avisado.
Entraram em casa de Teresa e Rita sentou-se num banco da cozinha, sem falar, parecia um fantasma, observava Manuel, que a espreitava desconfortável.
- Mas afinal, o que foi que aconteceu? – Teresa ajoelhou-se de frente para Rita, procurando o seu olhar.
- A Helena apareceu lá hoje… - engoliu um soluço – e quando eu ia a entrar no quarto com o café,… eles… eles estavam a dar um beijo. – não conseguia dizer mais nada. Manuel estava por ali perto, não queria desabar em lamentos histéricos e audíveis com uma testemunha masculina.
- Parvalhão… parvalhona da tipa, ó Manuel, mas quem é essa Helena? É a tal que provocou a chatice toda entre vocês? – Teresa sentia-se revoltada. Porque apareceria agora aquela figura, depois de anos, para assombrar as vidas deles?
- Sei lá, - agora sentia as armas a virarem-se devagar de Francisco para um novo alvo… ele – como queres que eu saiba? – o melhor seria ir almoçar ao café e deixar as amigas conversarem a sós. – Vou vos deixar em privacidade. Daqui a nada passo aqui para te levar de volta ao Centro de Saúde. – beijou-a e saiu o mais rápido possível. Aquele Francisco continuava o mesmo atrasado de sempre… lamentou-se, enquanto caminhava distraído em direção ao café.


Francisco recusou-se a comer a sopa, que estava fria e sem sal, falando torto a todas as enfermeiras e auxiliares que iam tentando manter alguma conversa com o toureiro bem-parecido. Já não tinha paciência para mulheres, estava saturado, doía-lhe tudo, os pontos picavam-lhe na barriga, queria levantar-se e respirar ar puro, aquele cheiro de hospital punha-o agoniado. Amaldiçoava aquela antiga paixão que lhe tinha afugentado a enfermeira privativa, Rita era tão animada e parecia saber perfeitamente como cuidar de um doente, ao contrário daquelas pamonhas todas que por ali andavam a rondá-lo. Bufou contrariado, tentando dormitar, talvez assim o tempo passasse mais depressa. Adormeceu agitado, depois dos analgésicos do almoço começarem a fazer efeito e sonhou com flores do campo, igrejas,  bandarilhas e touros.

- Então, agora que estamos sozinhas, conta-me o que aconteceu entre ti e o Francisco. – disse Teresa, enquanto colocava a mesa para o almoço.
- Ai, Teresa, eu desgracei-me… - lamentou-se Rita, dramaticamente. – Sinto-me tão envergonhada…No dia da tourada deixei que ele me beijasse e… - corou automaticamente.
- Ok, eu percebi nesse dia que algo estava a acontecer entre vocês os dois. Mas desgraçaste-te… como assim? – temia que Rita tivesse ido além do que estava habituada, sabia que a amiga era virgem e não tinha tido grandes namoros.
- Deixei-o apalpar-me toda… - tapou a cara com as mãos – e gostei, foi tão bom. Nunca tinha tido ninguém assim, nem vontade de o fazer. Depois aconteceu aquilo tudo, e eu, parva, pensei que houvesse algum compromisso entre nós. – engoliu em seco, ganhando coragem para admitir o que sentia no fundo da sua alma – Gosto demasiado dele, permiti que ele entrasse no meu coração…
- Bem, mas o que aconteceu quando ele acordou? Ele tratou-te com desprezo?
- Não, ao início não. Mas acho que só estava aliviado por não estar sozinho num quarto de hospital. Deu-lhe jeito ter ali uma empregada à disposição. – fungou, limpando algumas lágrimas que teimavam em cair. – Depois hoje apareceu aquela Helena, e ele mostrou-me ao vivo e em direto aquilo que sente. Tinha de fugir dali…Quando o vi caído no chão, no dia do acidente, todo ensanguentado, parecia morto, foi um dos piores dias da minha vida. Senti-me a morrer com ele… Hoje ainda foi pior… Não consigo lidar com isto. – recomeçou a chorar – Tenho de o esquecer, acabou. Fui-me apaixonar pelo maior nojento das redondezas e tenho de o esquecer.
- Querida, não te culpes, tu só foste honesta e… bem, foste humana e mulher. Um homem lindo estava interessado em ti, sentiste-te atraída por ele, e depois quando aquilo tudo aconteceu, foste amiga dele, não o abandonaste. Se ele é parvalhão o suficiente para preferir os beijos daquela traidora e destruidora de amizades, o problema é dele! – Teresa bateu com o pirex aquecido, enfurecida com o descaramento e falta de sensibilidade de Francisco.
- Sou é uma parva sonhadora, que se pôs a construir castelinhos românticos no ar, a imaginar que um tipo daqueles poderia apaixonar-se por mim…sou mesmo estúpida… - fungou, lamentando a sua natureza fraca e dependente.
- Não senhora! Não te inferiorizes, era só o que faltava. Porque não haveria o Francisco de se apaixonar por ti? – Teresa sentia-se revoltada. Porque seria que as mulheres tendiam sempre a achar-se menos merecedoras de amor que os homens? 
- Não sei, ele nunca tinha olhado para mim em 26 anos, e moramos numa aldeia, Teresa. De repente persegue-me e tenta “quase tudo” comigo… Só podia dar asneira.
- Esquece-o por agora. Aquilo que tenho para te contar vai distrair-te os pensamentos, acredita. – disse Teresa, mudando o tom de voz, que ficou subitamente misterioso e dramático. Sentou-se, respirando fundo. Ia verbalizar o que apenas ela sabia. A partir dali, seria não apenas uma ideia sua, mas a realidade.
- Ai credo, mulher. Diz logo de uma vez, já estou com taquicardia…
- Rita, quando fiquei internada no hospital descobriram que estou grávida. – pronto, pensou Teresa, agora era oficial.
- Grávida? – Rita esbugalhou os olhos, sentindo-se desfalecer.
Teresa tinha lágrimas a ameaçar cair, engoliu um pouco de lasanha, para se controlar.
- Sim, vê lá tu… - uma lágrima caiu no prato – mas ninguém sabe, nem o Manuel. Não tive coragem de lhe contar…
- Mas que… - Rita não sabia se havia de rir, ou de chorar. – E o que sentes? Estás feliz, triste…
- Bem, quando descobri, lá no hospital, pensei que era o fim da minha vida. Mas agora… cada dia que passa… sinto-me cada vez melhor com a ideia. – sorriu, emocionada.
Rita levantou-se, para abraçar a amiga, sem saber o que pensar. Teresa levantou-se também, com as lágrimas da emoção a escorrer pela cara e abraçou a amiga. Soluçaram as duas, libertando a tensão que acumulavam há dias.
- Manuel da Silva, o maior garanhão do Alentejo! – gozou Teresa, levando Rita a um riso histérico, que se misturava com soluços audíveis.
Manuel entrou em casa passados alguns momentos, ficando paralisado à porta, horrorizado com a imagem das duas aos berros a chorar abraçadas. Seria seguro ficar? 


“- Não te atrevas a morrer hoje…Prometeste que me ias pedir em namoro à minha mãe… e ainda temos de terminar aquela nossa conversa… por isso, não me deixes, por favor… - o cheiro a bestas e sangue invadia-lhe as narinas, sufocava-o, sentia-se a morrer sem oxigénio, uma dor quente escorria-lhe na barriga, seria assim a dor de morrer? – Vamos ter dois filhos, talvez gémeos seja o melhor, que é mais prático, e assim brincam os dois e deixam-nos em paz! – a voz dela recomeçava a aparecer, era bonita – e podemos caiar a tua casa, porque sinceramente, está um bocado acabada – riu-se, sabia bem ouvir o riso dela – vou semear lá atrás uns canteiros de ervas, hortelã, coentros, salsa, poejo, erva príncipe, morangos, talvez umas flores, para animar, deves ter aquilo tudo cheio de ervas daninhas e mato, vais ter de limpar tudo para eu poder trabalhar. – conseguia vê-la de cócoras no jardim a enxotar o gato que se metia com ela enquanto apanhava morangos para o lanche. Ria-se com a ousadia do animal, ele também gostava daquele cheiro, o cheiro a flores do campo… era tão intenso… duas crianças corriam, mas não lhes conseguia ver a cara, chamou-as, eram rapazes, tão pequeninos…vinham a lutar um com o outro, a brincar, descalços, olharam-no felizes e correram na sua direção. As suas caras risonhas ganhavam contornos… pareciam… eram eles, Francisco e Manuel, que corriam a rir...”
Francisco acordou sobressaltado, com suor por todo o corpo, a respiração forçada, sufocado e uma dor forte na cabeça. Uma enfermeira entrou rapidamente no quarto, um alarme tinha disparado, colocou uma mão na sua testa e retirou o termómetro para medir a febre. Estava com 39º, disse-lhe mantendo-o calmo e administrando o antipirético no cateter.
- Pronto, agora vai se sentir melhor, tenha calma. É normal ter uns picos de febre, volto daqui a nada para o ver. – saiu apressada, sem lhe dar mais nenhum consolo, havia centenas de pessoas para atender.
Olhou a janela à sua esquerda, o ângulo em que a sua cama se encontrava era péssimo, quase não se via nada da rua, apenas uma cruz de alguma igreja aparecia a espreitar…- Irónico… - pensou fechando os olhos.



- Obrigada, se surgir mais alguma novidade dá-me uma ligadela? – Rita conversava com uma das enfermeiras do Hospital de Moura, com quem tinha mantido o contacto. Desligou o telefonema angustiada, Francisco passara as últimas noites com febre, inquieto, o que não era nada bom para a recuperação interna. Por mais que quisesse, não conseguia ficar sem notícias dele, lamentava-se, sentindo-se em baixo. O que mais queria era estar lá a refresca-lo quando a febre subisse, a controlar todos os graus, de hora em hora, vigiando-lhe o sono… Limpou uma pequena lágrima que surgiu de repente, depois de dias de calmaria emocional. Tinha voltado ao trabalho, poupando os dias de férias que ainda lhe restavam para gozar, mantendo a cabeça ocupada nas horas de expediente. Em casa tinham a decência de não lhe fazer perguntas sobre o toureiro e não fosse a sua curiosidade mórbida que a levava a telefonar todos os dias para o hospital, Francisco parecia nunca ter existido na sua vida. Pelo menos até a noite chegar e as insónias virem perturbá-la com recordações.
Suspirou e sorriu a Teresa, que a esperava ansiosa à porta do consultório para a pausa de almoço na pequena mesa de esplanada do pátio interior. Eram os melhores momentos do dia para a Rita, quando podia relaxar e desanuviar a cabeça com conversas inúteis, mas curativas.
- Com estes acontecimentos todos dos últimos dias, nem tive oportunidade de te mostrar as cartas antigas que descobri lá em casa! – exclamou Teresa, que parecia ter-se recordado de algo muito importante. Procurou na carteira o embrulho e estendeu-o à amiga. – Lê, não vais acreditar, a minha avó tinha um amante secreto aqui em Safara!! Um tal de J.S.. As cartas vêm de um remetente fictício, para não serem intercetadas. – explicou entusiasmada. – E o tal amante estava a estudar em Coimbra. Sabes quem pode ser? – perguntou ansiosa.
- Um J.S. daqui, que estudou em Coimbra, em 1942?... – Rita não teve de pensar muito. Só havia ali uma família que tinha dinheiro para isso… - Bem, acho que só podia ser o Joaquim Silva. – disse, olhando a amiga de forma conclusiva.
- Joaquim Silva? – perguntou Teresa curiosa – Mas de onde? Onde morava? Quem era a família? – estava curiosa.
- Teresa, Joaquim Silva, o avô do Manuel, Manuel da Silva. Não há cá mais Silvas… - explicou facilmente.
- Quê?! – guinchou Teresa, que sentiu a bola de fogo a subir-lhe a garganta. – Maldita azia, - lamentou-se – o avô do Manuel era amante da minha avó? – aquilo não lhe parecia nada bem, bebeu um gole de água, tentando pensar claramente. Antigas recordações de quando chegou a Safara invadiam-lhe a mente, António e Maria da Piedade desconfortáveis com a informação de que a avó dela era a Maria Rosa…
- Não fiques cismada mulher. Pelos vistos apenas tens os mesmos gostos de homens que a tua avó! – gracejou Rita, rindo-se com a sua teoria.
Teresa sorriu sem vontade, milhares de informações familiares faziam questão de surgir cruzando-se entre si, freneticamente. Maria da Rosa namorara Joaquim, a família dele não gostava da ideia, ele foi estudar, prometera casar-se, mantinham uma relação física antes da partida para Coimbra, a avó trabalhava na herdade, ele não voltou antes de ela fugir para Lisboa, ele casou com a mãe de António da Silva, Maria Rosa teve uma filha sozinha em Lisboa, Fernanda, Teresa não conhecia o seu avô, era tema tabu. Pegou no telemóvel, sem dar qualquer explicação, e ligou para a mãe. Começava a imaginar uma história familiar pior que a do livro “Os Maias”, e não gostava nada da sensação de ser uma Maria Eduarda…
- Sim, olá mãe. Como estás? – Teresa falava rápido, demonstrando o seu nervosismo. – Não, está tudo bem. E por aí?... Estou a almoçar.- explicou – Este fim de semana vou aí a Lisboa, tenho saudades tuas, e… uma novidade para te dar, não pode ser por telefone. – sorriu a Rita, que ficara cismada com a mudança de disposição de Teresa – Também quero tirar umas coisas a limpo, sim…, não, é sobre a avó e aqui a vida dela antes de ir para Lisboa. – disse, tentando não revelar muito das suas suspeitas – Mas amanhã falamos melhor. Sim…- olhou Rita e perguntou-lhe se queria ir também, ela acenou afirmativamente, já não ia a Lisboa desde que visitara o Jardim Zoológico – Olha, vou levar uma amiga minha comigo…Ok, beijinhos, quando chegar à estação do Oriente ligo-te. Até amanhã.
- Mas que raio de viagem relâmpago foi esta? – Rita estava entusiasmada com a ideia de sair de Safara por dois dias e ver coisas novas.
- Rita, reza para que aquilo que eu estou a pensar não seja verdade, - engoliu em seco – porque se for… eu e o Manuel… somos primos. – disse, colocando a cabeça nas mãos, e sentindo-se desfalecer. 
- Primos? – berrou, engasgando-se com a maça – Teresa, não penses numa coisa dessas, isso é altamente improvável. Como podes pensar nisso? – A enfermeira começou a receber informação clínica sobre a hipótese de primos direitos terem filhos, e percebeu a angústia da amiga. 
- Mas será que nesta terra maldita não há um momento de sossego? – gemeu Teresa, que mantinha a cabeça caída nas mãos. – Agora também sou prima do homem com quem ando a dormir e que vai ser pai do meu filho?
- Calma, por favor. Não entres em paranóia, nada disso é verdade. Apenas estás a imaginar uma situação, ainda não tens provas nenhumas.
- Amanhã a minha mãe tem de me explicar muito bem explicadinha toda essa história da fuga da minha avó para Lisboa. Ó Deus do Céu, mas será que agora eu é que tenho de pagar pelas quecas da Maria Rosa? – lamentou-se Teresa.
- Bem, quanto mais prima, mais se lhe arrima! – brincou Rita, tentado desanuviar o ambiente. – Já dizia a minha tia Miquelina, sabes, aquela sem dentes.
- Rita! – ralhou Teresa, que esboçou um sorriso pouco convencido.

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(imagem, internet)

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