quinta-feira, 25 de junho de 2020

"Safara" - Capítulo 12




- Não posso acreditar… - Manuel olhava furioso para a silhueta da mãe de braço dado com Sofia, enquanto as duas se dirigiam aos lugares da tribuna coberta que estava reservada às figuras eminentes da terra, onde fazia sombra e se tinha o melhor ângulo da festa. Maria dos Prazeres só podia estar a perder o tino, pensou enraivecido. – Querida, senta-te aqui que tenho de ir procurar o meu pai, volto já. – deixou Teresa acomodada longe da vista de Sofia e saiu disparado levando tudo e todos à sua frente, bufando como um toiro espicaçado.
António suava no interior abafado dos corredores da arena, dando ordens e supervisionando os animais que trouxera para a festa. Toiros, cavalos de lide e vacas bravas, a maioria pertencia à sua famosa casa, que detinha o prestígio secular que tanto o orgulhava. Embora aquela tourada não fosse o evento mais importante do ano para os seus animais, o facto de ser na sua terra impunha-lhe uma responsabilidade moral de que tudo corresse sem falhas. Francisco montava um dos seus melhores garanhões, filho de excelentes gerações de Puros Lusitanos que eram o orgulho da Herdade de Safara, e para António era uma emoção vê-los aos dois na arena, cavaleiro e cavalo, que se tornavam num só. Vira aquele rapaz crescer, junto com o seu filho, e dera as primeiras aulas de equitação aos dois, entusiasmado com a destreza que mostravam com os bichos. Sonhara durante anos fazer deles cavaleiros famosos, mas os dois amigos eram demasiado parecidos, e quando a idade dos rabos de saias surgiu, tinham engraçado com a mesma mulher. Os cavalos ainda os mantiveram unidos durante um tempo, mas o fogo da juventude incendiava os ânimos, destruindo a pouco e pouco o elo entre os dois. Manuel desistira dos cavalos e decidira ir estudar para Coimbra, largando de um dia para o outro a arte, e deixando Francisco a reinar sozinho no meio tauromáquico. António nunca fora tão feliz como nos primeiros anos em que os dois amigos toureavam nas mesmas corridas, aparecendo como as novas promessas da Tourada à Portuguesa, ganhando fama e admiradores por todo o País. O futuro da herdade era risonho nessa época, quando António, Manuel e Francisco trabalhavam lado a lado. Mestre e discípulos.
Perdia-se nas suas recordações felizes enquanto ajudava Francisco a aparelhar o cavalo, sentindo-se cada vez mais velho e nostálgico. Precisava de descansar daquelas lides, o corpo já não tinha o mesmo vigor e contava que o filho o substituísse, mas o destino parecia pouco inclinado a ajudá-lo, dificultando todo o processo. Se ao menos Francisco fosse seu filho…, podia tê-lo adotado quando o miúdo ficou órfão de mãe. recordou-se com mágoa. Tinha pai incógnito, fora criado por uma tia velha mal encarada que nem se tinha importado, mas Maria dos Prazeres fora intransigente e opusera-se teimosamente à ideia de António. Manuel tinha implorado em lágrimas, agarrado à saia da mãe, adorava o amigo como a um irmão, mas a mulher parecia feita de pedra, sem coração quando o assunto era Francisco. Passado alguns anos os miúdos cresceram e já não fazia sentido, António adorava os dois, quase sem diferença, como se fossem iguais e sentia-se amado da mesma forma.
- Mestre António! – chamou Francisco, pela terceira vez. – Estava-lhe a perguntar se me apertou bem a sela. Veja lá se me deita ao chão quando estiver a fazer as curvas. – brincou, provocando o orgulhoso professor. – Olhe que hoje tenho de dar o maior espetáculo de sempre, é uma questão de vida ou morte! – acrescentou misterioso, sorrindo.
- Está tudo mais que apertado. Queres vir agora tu ensinar a missa ao Padre? – protestou António, fingindo-se ofendido. – E vê lá se te deixas de avarias rapaz. As mulheres são importantes, mas olha que quem manda aqui na arena ainda é o touro! – Disse, piscando-lhe o olho.
- Mas como é que este homem adivinha tudo? É incrível! – disse Francisco divertido.
- Pai, o que é que a Sofia aqui está a fazer na tourada e ainda por cima de braço dado com a mãe? – bufou Manuel, que surgia intempestivo, ignorando tudo e todos.
- Olha ó Manuel, eu já deixei de entender a tua mãe há muitos anos, - lamentou-se António – mas conta-me lá, como está  a Drª, já melhorou? – Puxou-lhe por um braço, afastando-o do resto dos homens.
- Sim, ela veio comigo assistir à corrida, deixei-a sentada aqui perto da entrada à minha espera, não a posso levar para a tribuna, está lá a outra. – rosnou, sentindo-se a ferver com a ousadia das duas mulheres.
- Não te chateies filho, a tua mãe está enfeitiçada com a ideia do neto, mas isto passa-lhe. – deu-lhe uma palmada no ombro e mandou-o embora, a festa ia começar e ainda tinha alguns preparativos a fazer antes de ocupar o seu lugar.
Manuel sentiu um nó no estômago ao deixar o interior da arena, a emoção que se vivia lá dentro era ainda um bichinho dentro de si, uma saudade que o moía, e envergonhava. Olhou uma vez mais os cavalos que estavam já arreados e enfeitados, carregados de adrenalina, prontos para o duelo, quando viu Francisco e António darem as mãos, naquele ritual de que um dia também fizera parte, rezando a pedir proteção. Naqueles momentos arrependia-se de não ter ficado, mas gostava demais do “irmão” para o ver sofrer por Helena, sabendo-se o culpado dessa dor. Talvez um dia, pensou, se Teresa o deixasse tourear… As mulheres é que mandavam nessa profissão, assim que o toureiro se apaixonava tinha de ter a permissão total da mulher, senão era um azar perpétuo. Superstições que não tinha muita vontade de comprovar, mas que já vira demasiado perto e a funcionar.
A banda tocava as primeiras músicas, indicando o início da festa, e Manuel voltou para ao pé de Teresa, trazendo-lhe um chapéu “emprestado” que tirou arrogantemente da cabeça de um dos rapazes aprendizes que por ali andavam nos corredores. Afinal, a hierarquia tauromáquica ainda funcionava com ele e Teresa não podia adoecer novamente. Sentia-se excitado e em alerta total, como se fosse entrar na arena, curioso por rever Francisco Carriço a dar espetáculo.
- Estás confortável? – Beijou a mão de Teresa irrequieto, com um sorriso infantil nos olhos que ela achou amoroso, mas não mencionou.
- Sim, e obrigada pelo chapéu, foi uma parvoíce não pensar nisso antes de sair de casa. O sol aqui é mortífero. – Beijou-lhe a face, olhando-o fascinada. Já valia a pena ter ido ver a tourada, Manuel ficava radiante no meio daquela confusão, pó e animais. Os rapazes e os seus jogos perigosos, pensava divertida.
- Pronto, agora vão começar as cortesias, - explicou Manuel – que é quando os toureiros e os forcados vêm cumprimentar o público e a direção da tourada. – A banda tocou a marcha conhecida e todos os intervenientes passearam orgulhosamente pela arena, sendo recebidos com aplausos efusivos, rosas e assobios de apreciação.
Francisco esperara impacientemente por aquele momento desde cedo. Rita tinha conseguido captar-lhe a atenção de uma forma que pensara nunca mais sentir. E aquele beijo em frente à Igreja era mais do que razão para querer repetir tudo. Esperava que ela tivesse ido vê-lo, e procurava discretamente por ela na multidão, sentindo-se ansioso. Terminava a sua caminhada da glória quando a viu, tão pequena, no meio de familiares. Quase parecia uma criança, e aparentava estar aborrecida, com a mãe ao lado, com cara de poucos amigos. Os seus olhares cruzaram-se e viu-a corar automaticamente, encolhendo-se mais no lugar. Levantou-lhe o chapéu e sorriu-lhe, mostrando publicamente que iria tourear por ela. Aquele gesto nunca falhava, pensava satisfeito. Mais tarde poderia colher os louros, e que divertido seria.
Rita não podia crer que aquele patife continuava a insistir naquilo… não podia negar que tinha adorado os apalpões dentro da igreja, embora sentisse um nó no estômago quando racionalizava os acontecimentos e pensava no quão errado tudo aquilo tido sido. Na Igreja, Deus do Céu… o seu primeiro orgasmo… na Igreja…e só com um toque. Que palerma que ele a deveria achar, por isso se ria todo vaidoso, sabia que apenas com um dedo a tinha dominado. Não havia nada de mais humilhante no mundo, ser assim tão fácil e deixar-se tocar por alguém que nem sequer era seu namorado nem nada. Todos aqueles anos a guardar religiosamente a sua virtude, na esperança de encontrar um bom homem e tinha deixado que Francisco Carriço, o solteiro mais rodado da região, lhe enfiasse a mão nas cuecas. Colocou a cabeça nas mãos, estava demasiado calor e aquelas lembranças começavam a toldar-lhe o juízo. Tinha de se recompor rapidamente, bebeu um pouco de água e respirou fundo. Não podia andar agora a pensar no toureiro dia e noite, no seu beijo experiente… e que boca Senhor… tinha de se precaver, se ele conseguisse tornar a beijá-la daquela forma lá se ia a virtude e tudo o resto, oferecido de bandeja. Era essencial evitar o contacto físico, disse a si mesma.
- Ou tu te comportas ou vamos já para casa! – Julieta olhava a filha furiosa, tinha visto o toureiro a rir-se todo para Rita e ela estava caidinha por aquele palerma. Conheci-a bem demais, nem conseguia disfarçar, o raio da garota. – Andas mortinha por “andar de lambreta”!! Mas acalma lá o rabinho porque aquele ali não vale nada. Tu não te atrevas a ser tão estúpida. – sentenciou Julieta, apontando-lhe o dedo indicador acusatório.
- Ó mãe… por favor, fale baixo. – não havia nada de mais constrangedor que ouvir a mãe verbalizar os seus pensamentos.

O primeiro cavaleiro galopou para o interior da arena, cheio de entusiasmo. Era um jovem iniciante, ávido por mostrar o seu talento, que nunca tinha sido vencido naquela luta e que por isso não temia nada nem ninguém. Manuel recordava-se bem da sua primeira lide, e revia-se no garoto, pedindo aos céus que lhe enviassem um bicho pouco manhoso, mas desejoso de que o rapaz aprendesse depressa a respeitar a arena. Era demasiado convencido, ainda mais que Francisco, concluía. O touro entrou possante na arena, libertando os primeiros picos de energia em sprints furiosos em direção ao cavalo, forçando o toureiro a trabalhar e a deixar-se de manias, o que alegrou Manuel ao ponto de o fazer levantar-se do banco e aplaudir o animal da sua herdade.
- É assim mesmo toiro! Dá cabo dele e tira-lhe o sorriso estúpido da cara! – berrou, sendo assobiado pelos parentes e amigos do cavaleiro novato. 
Francisco que se encontrava bem perto a assistir, enquanto aguardava o seu momento de entrar, aplaudiu Manuel, dando uma gargalhada, num impulso raro em que se esqueceu de que não eram mais amigos. Disfarçou o melhor que pôde a sua reação entusiástica, olhando nervoso à sua volta.
Manuel fingiu não ver o aplauso do ex-amigo, para não o embaraçar, voltando a sentar-se com uma emoção estranha no peito. Desde que tinha saído de Safara não voltara às touradas, e ali tudo parecia retroceder aos tempos fáceis da sua juventude, quando Francisco era ainda seu "irmão”.
- Agora é que vamos ver o que vale o palerma! – disse sorrindo a Teresa, que estava bem menos emocionada, e rodava nervosamente os dedos uns nos outros, evitando olhar o touro. – Tem calma querida, o bicho não sai dali e o cavaleiro tem muita gente pronta a saltar lá para dentro e ajudá-lo, se for preciso. – deu-lhe a mão, acalmando-lhe o tique nervoso.
- Quantos cavaleiros vão entrar? – perguntou angustiada. Aquilo era demasiado real e violento visto ao vivo. O cheiro a bichos variados, o pó, o sol, os gritos, a música, e os momentos em que touro e cavalo se aproximavam eram de tal forma perturbadores que se sentia a perder a consciência sempre que o cavaleiro se desviava no último segundo possível antes de ser abalroado pelo animal. Olhou em volta, era extraordinário como aquela população não morria de ataques cardíacos naquelas festas. Nem os homens em idade propensa a problemas de coração pareciam ficar afetados com aqueles duelos mortais.
- Não são muitos hoje, há poucos cá na terra, e a maioria dos que são convidados a vir até Safara desistem quando sabem que o Francisco está no cartaz. É difícil tourear com aquele filho da mãe a observar, acredita. – comentou, sorrindo.
- Hum, mas ele é assim tão má pessoa? – perguntou curiosa.
- Não é nada disso, o gajo é o melhor e se um cavaleiro vem tourear junto com ele fica sempre mal visto, o termo de comparação é lixado. – explicou orgulhoso, esquecendo-se do rancor que sentia por Francisco.
- Pensava que o detestavas. – comentou, aqueles elogios eram de facto muito curiosos.
- E detesto, mas ele foi ensinado pelo meu pai, e o meu pai é o melhor! O Francisco só podia sê-lo também, pelo menos depois de eu ter desistido. – acrescentou, calando-se logo em seguida.
- Como assim?! – Teresa sentiu um arrepio frio na coluna – Tu também fazes isto?
- Fazia, antes de ter ido para Coimbra. Eu e o Francisco éramos os melhores e andávamos a lutar pelo lugar no pódio. Eu saí e ele agora está sozinho com a glória, não aparecem muitos “Manueis da Silva” por aí! – disse, abrindo um sorriso vaidoso.
- Ai por favor, só me faltava mais essa agora… - lamentou-se, cada vez mais nervosa. – Não me digas que estás a pensar em voltar a fazer isto… - sussurrou quase sem voz.
- Só posso voltar se tu quiseres. Mas depois eu explico-te. Agora vem aí outro, vamos ver se consegue fazer melhor figura que o anterior. – beijou-lhe o nó dos dedos, desejoso por ver Francisco a lidar. Seria o último, antes dos forcados, e teria certamente um bicho à sua altura.
Sofia já tinha conseguido detetar Manuel e Teresa na multidão, ele era demasiado vistoso para ficar incógnito, mesmo no meio de tanta gente. O seu comportamento era atípico, estando constantemente a beijar as mãos da tipa, e a sorrir-lhe com segredinhos ao ouvido, em gestos de carinho que nunca tinha gasto com ela. O seu orgulho feminino estava a ser esfaqueado, não conhecia aquele homem atencioso e apaixonado, nem sabia que Manuel poderia ser assim. Não poderia aceitar que durante os anos que viveram juntos aquele homem estivera adormecido e ela não fora capaz de o acordar. Uma sede de vingança crescia dentro de si. Aquela médica não era melhor que ela, nem mais bonita, nem mais inteligente, porque tinha ela conseguido fazê-lo apaixonar-se? Seria bem mais difícil do que previra afastá-los, com aquele imprevisto não calculado, amarem-se. Se queria tirá-la do caminho teria de tomar medidas mais drásticas. E já sabia como tentar a sua sorte, aquele era o cenário perfeito para o que lhe surgia na mente.

Francisco já estava montado no seu cavalo, pronto a entrar na arena. Sentia-se excitado e de certa forma feliz, nada como a pressão de alguém importante no público para o fazer brilhar ainda mais. E naquele dia havia duas pessoas a quem queria impressionar, Manuel estaria atento a todos os seus movimentos e não lhe pouparia críticas válidas, e Rita precisava de saber que estava apaixonada por ele. Já tinha imaginado toda uma coreografia sexy que a iria esclarecer facilmente. Benzeu-se, deu um carinho ao seu cavalo, transmitindo-lhe segurança e entrou na arena. Aquele era sempre um momento emocionante, conseguia sentir o entusiasmo de quase todos os safarenhos, o orgulho que sentiam por ele ser o melhor e um filho da terra. Tinha tido uma infância pouco calorosa, mas António mostrara-lhe o amor de pai e ensinara-lhe que havia outro tipo de sentimentos que o consolavam ao ponto quase nunca sentir falta de uma mãe, uma família normal para onde voltar ao final do dia. Podia não ter nada disso, mas quando toureava era Rei. Hoje seria ainda melhor. 
Deu uma volta à arena num galope elegante, elevando o chapéu em direção ao público, fez um vénia à tribuna e de frente para Rita colocou o cavalo em compasso, olhando-a durante uns segundos em desafio. Todas as cabeças se voltavam na direção dela, curiosas e a primeira parte do seu plano estava concluída. Saiu a galope e concentrou-se no que ali tinha de fazer. O touro do final da corrida era sempre um exemplar de respeito e António não lhe facilitava a vida, sabia que ele aguentaria qualquer tipo de bicho, até um de sete cabeças. Não o deixaria ficar mal visto.

- Tu viste isto? – perguntou Teresa a Manuel, animada com aqueles movimentos de engate entre o macho e a fêmea.
- Ham? Vi o quê? – sentia-se perdido com a pergunta.
- O Francisco a fazer-se à Rita! – guinchou batendo as palmas como uma garota. Daquela tourada já gostava mais. Então era aquele “Tiago” de quem ela falara, a sonsa… pensava divertida.
- Não vi nada disso… ele hoje está cá com um estilo… - comentava, quase falando para si próprio, enfeitiçado com o magnetismo que vibrava de cavaleiro e cavalo.
- Ah sim, é magnífico, a Rita está feita… - acrescentou, sentindo-se também a cair no feitiço de Francisco, que hipnotizava o público com a beleza com que montava.
Manuel olhou-a e tapou-lhe os olhos, divertido.
- Acho que já chega de tourada para ti! – mantinha-lhe a mão a pressionar a cara, bloqueando-lhe a visão. – Não quero ter de matar este tipo, ele pode ser um sacana, mas é um excelente toureiro, seria uma lástima para a arte.
- Manuel, está quieto! – Teresa lutava tentando tirar a mão grande da frente da sua cara. – Parvalhão, olha que as pessoas estão a olhar!! – suplicou, sentindo-se escarlate. Mas que parvoíces aquele homem fazia…
- Ok, mas olhas para mim! Aqui! – virava-lhe a cara na sua direção, fingindo-se sério.
- Tudo bem! – disse sorrindo, entrando na brincadeira, adorava sentir que Manuel tinha ciúmes seus. Nunca pensara sentir-se tão bem com um namorado possessivo. – Relaxa, és mais bonito que ele. – disse mentindo, eram os dois estranhamente belos e parecidos. Já tinha perdido algum tempo a pensar nessa semelhança… seria só física? Se tivesse de apostar, diria que eram parentes bem próximos. Até o sorriso vaidoso era idêntico, era perturbador.
- Muito bem, chega! Estás novamente a olhá-lo de boca aberta, assim não dá! – Manuel resmungava, mas seria possível que até Teresa sucumbia à arte de engatar de Francisco?
- Ups, desculpa, estava só a ver o traje dele, é lindíssimo, todo bordado. – riu-se, voltando novamente a cara na direção de Manuel e beijando-lhe a face, carinhosa.
- Pronto, pronto, não exageres… - sussurrou desconfortável. Estar ali no meio dos toureiros a levar beijinhos na cara da namorada era um pouco demais…
- Ah, o menino não quer que eu lhe dê beijinhos?? – gozou, agarrando-lhe a cabeça que enchia de beijos sonoros, deixando-o cada vez mais envergonhado.
- Teresa comporta-te! Estou a tentar concentrar-me na tourada. – pediu fingindo-se indiferente ao embaraço.
- Mas tu és tão bonito, muito mais sexy que aquele convencido. – continuou ela a apreciar cada vez mais a sua vingança feminina.
- Ou páras ou tenho de recuperar a minha honra perdida com as tuas cenas amaricadas! – ameaçou, olhando-a com um brilho de desafio no olhar. Agora era ele que queria envergonhá-la.
- Ohhh, és tão fofinho, com essas conversas de rapazes sobre honra perdida… - gozou Teresa, continuando a abraçá-lo carinhosamente, como se ele fosse uma criança a ser consolada.
- Eu avisei-te! – agarrou-a e sentou-a ao colo, beijando-a com agressividade,  com uma urgência dramática, à boa maneira machista, a única forma de calar os gozões e repor alguma dignidade à sua causa. Teresa facilitou-lhe a tarefa, sentindo-a amolecer nos seus braços, rendida à surpresa de um beijo violento. – Pronto, agora deixa-me ver o resto da tourada! – ralhou, sentando-a trémula no seu lugar, ainda abananada.
Sofia olhava-os raivosa, só podiam estar a fazer de propósito! Odiava aquela mulher cada vez mais. Sentia-se humilhada com o comportamento romântico e apaixonado dos dois ali em público. As pessoas que sabiam da sua condição de prenha abandonada olhavam-na com pena, fazendo-a tremer de fúria.

Rita estremecia no lugar, normalmente vibrava com a tourada, mas parecia que via um cavaleiro a enfrentar um touro pela primeira vez. Francisco era um profissional, e dançava em volta do touro, destemido, com uma beleza que a fazia gritar de excitação quando ele colocava mais uma bandarilha, provando a sua superioridade naquele duelo. Quando entregaram a última e mais pequena bandarilha ao toureiro, este mostrou-a ao público, e beijou-a em direção a Rita, que ficou com as pernas bambas, limitando-se a sorrir, enfeitiçada, levando uma cotovelada enérgica da mãe, que ficara todo o espetáculo a olhá-la como um falcão. 
Chegara o momento final para Francisco, faltava apenas mais uma, a bandarilha dedicada a Rita, a mais pequena e difícil de todas, sorria na direção do touro, enquanto pensava na coincidência. A banda tocava ao ritmo do seu coração que batia com força, e Francisco colocou o cavalo a trote, acompanhando a música, enquanto os dois olhavam fixamente o objetivo, que os ignorava estrategicamente. O cavalo encaminhava-se lentamente para o touro, Francisco crescia em cima do animal, e os dois sabiam o que era preciso fazer para conseguir colocar aquela bandarilha minúscula no cachaço ferido do adversário. O cavalo esperava a ordem e no momento em que o touro os olhou, Francisco manteve o animal hipnotizado, gritando a palavra que soltou o galope agressivo do Puro Lusitano, atacando pela esquerda, enquanto o toiro correspondia, iniciando a investida contra os dois, até que Francisco, no último segundo, torceu as rédeas para a direita e deitou o tronco sobre o touro enganado, que não tinha espaço suficiente para corrigir o seu caminho. Espetou a bandarilha com sucesso, mantendo a mão em cima do animal vencido, dando-lhe uma palmada de apreço, tinha sido um adversário à altura, e não havia toureiro sem touro.
O público explodiu em êxtase, assistir à lide de Francisco era sempre um momento apoteótico. Ele juntava à beleza da arte, a sua própria beleza física em cima do cavalo, conseguindo sempre vencer com uma técnica nunca vista.
Rita saltou do lugar, gritando com o resto do público, soltando-se da mãe que a tinha castrado durante toda a tourada, sem lhe permitir festejar as vitórias dos cavaleiros. Continuava chateada com a filha, mas a destreza de Francisco também a distraíra ao ponto de se esquecer do incidente daquela manhã com o beijo indecente dos dois em frente à Igreja, no meio da rua.
Francisco galopou evitando o touro cansado, agradecendo os aplausos, e fez sinal a Rita, chamando-a discretamente.
- Vou à casa de banho mãe! – informou, escapando-se o mais rapidamente possível deixando Julieta entalada no meio da multidão, esbracejando, impotente. Correu pelo corredor, sentindo-se cada vez mais palerma, à medida que chegava ao interior da arena. Não poderia correr em direção dos braços do convencido, tinha de demonstrar alguma dignidade pelo Amor de Deus... dizia a si própria, tentando acalmar-se. Primeiro iria mesmo à casa de banho molhar a cara para recuperar parte do juízo, depois então veria o que Francisco queria. O pior é que já sabia o que era, e também concordava com isso…

- Agora não podes dizer que não viste! – disse Teresa ainda a recuperar da emoção do confronto de Francisco com aquele touro gigante.
- Vi, foi espetacular!! O gajo é fenomenal! – respondeu, recostado no lugar, extenuado com toda a adrenalina que o tinha percorrido nos últimos minutos.
- A Rita foi a correr ter com ele! – gritou, dando-lhe um encontrão.
- E o touro… o meu pai acertou, mais uma vez. Um animal magnífico, deu cá uma luta! – continuava no seu delírio pós tourada.
- Ó Senhor… Manuel, vou à casa de banho, já não aguento mais. – disse-lhe, deixando-o ainda em transe sem reagir. Estava aflita e a pega de caras não a entusiasmava por aí além. Faria xixi pelas pernas abaixo se visse o forcado a ser lançado ao ar sem rede. Com um pouco de sorte conseguiria encontrar a sua amiga Rita e perguntar-lhe o que significava aquela cena romântica do cavaleiro a lançar-lhe beijos e olhares de luxúria. 
Seguiu as indicações gastas e pouco visíveis que diziam o caminho até aos lavabos femininos, e enquanto não saísse daqueles corredores escuros e a cheirar a bestas não descansava. Suores frios desciam-lhe pelos braços até à ponta dos dedos, deixando-a ligeiramente tonta. Quando viu a luz da rua suspirou de alívio, entrando na casa de banho pouco salubre, benzendo-se para não apanhar nenhuma infeção urinária só com aqueles vapores a urina aquecida pelo sol alentejano. Um vómito subiu-lhe pela garganta, quase sem anunciar e Teresa agarrou-se às paredes do wc sem conseguir conter a sua indisposição, deixando que o maravilhoso almoço fosse totalmente desperdiçado em direção à sanita. 

- Aqui estás tu! – disse Francisco, agarrando Rita por um braço, quando esta voltava da casa de banho feminina que havia no interior da arena.
- Fui à casa de banho… - justificou-se envergonhada. Não queria que ele pensasse que tinha ido a correr assim que ele lhe dera um sinal, o que era verdade, mas escusado de se saber.
- Não foste nada, vieste dar-me o meu prémio pela magnífica prestação de há pouco!- gozou Francisco, encostando-a à parede e prendendo-a com o seu peso.
- Deixa-me sair, por favor, já me envergonhaste o bastante por hoje. – suplicou Rita. Gostava muito de ser esmagada por ele numa parede, mas ali estava completamente exposta, poderia passar alguém a qualquer momento.
- Estás a falar a sério? Queres que te deixe ir? – Francisco sentia-se confuso. O olhar de Rita era de súplica, ela não queria aquilo e ele sentia-se ligeiramente incomodado com isso.
- Não… Sim… quer dizer, não quero ser agarrada por ti neste sítio, aqui não. – disse ficando corada.
Francisco suspirou de alívio, afinal ela também gostava dele. Só tinha vergonha por estarem em público.
- Não seja por isso. A menina manda. – agarrou-lhe na mão e depois de espreitar pelo corredor principal e não ver ninguém que pudesse testemunhar, entrou com ela para um dos vestiários vazios trancando a porta. Ainda tinha tempo antes de ter de aparecer no desfile final, a pega demorava.
Rita sentia-se a desmaiar quando ele rodou a chave e os trancou por dentro naquele cubículo bafiento e escurecido, sem janelas. Estava de costas, com as mãos dadas, os dedos em pressão uns nos outros, quase a partir as articulações de tanto medo que sentia. 
Francisco abraçou-a por trás, gentilmente, retirando-lhe o cabelo para lhe beijar o pescoço, e puxando-a contra si. Cheirava a flores do campo, pensou, enquanto a percorria com as mãos, sentindo-a toda tensa e nervosa. Aquela mulher nunca tinha sido tocada, pensou entusiasmado. Seria uma novidade, mas também um travão para o que tinha imaginado. Voltou-a para si e levantou-lhe o queixo, beijando-a suavemente. Para seu espanto, Rita lançou-lhe os braços em volta do pescoço e beijou-o com paixão, gemendo de uma forma que o fez deixar de racionalizar. Só pararia se ela lhe mandasse, e mesmo assim, não tinha grande certeza de conseguir. Aquela minorca deixava-o pior que um touro.

Teresa limpou as lágrimas que lhe caíam pela cara , efeito do esforço de vomitar. Nunca tinha sido assim tão sensível aos odores, pensava, mas também talvez nunca tivesse entrado numa casa de banho tão suja…Não conseguiria concluir o que a tinha levado até ali, talvez Manuel conhecesse outros wc ali perto. Caminhou novamente para dentro da arena, os cheiros a bestas voltavam, mais fortes que nunca e já não tinha bem a certeza se tinha de virar à esquerda ou à direita. Sentia-se bastante mal, nauseada e com calor. Um breve pânico instalou-se na sua garganta ao imaginar que poderia estar a entrar nalgum corredor que a levasse até aos touros. Recriminou-se  por se deixar enervar tão facilmente, era lógico que os bichos teriam de estar longe do acesso fácil dos espetadores. Respirou fundo e espreitou por um corredor mais estreito, esse sim com aspeto de ter sido percorrido por bestas cornudas, com as paredes desfeitas das pancadas fortes dos animais. Voltava-se para fugir dali o mais depressa possível, quando uma pancada forte a apanhou na nuca.
- Pronto, agora fica aí quietinha que os teus amiguinhos já te tratam da saúde. – gracejou, puxando a porta de correr de metal e trancando-a por fora. Dali já não sairia viva.

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(imagem, internet)

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