segunda-feira, 29 de junho de 2020

"Safara" - Capítulo 14

 


Francisco sentia-se pesado e dorido, recuperando a pouco e pouco a sensibilidade do corpo. Ouvia sons de máquinas e algumas vozes que murmuravam ao longe, como se estivessem por detrás de paredes. Não sentia o cheiro da arena, nem dos cavalos… a última recordação que tinha era do corredor escuro, a bandarilha de Rita, Teresa salva e… abriu os olhos, sobressaltado, respirando com dificuldade, onde estaria o touro? O peito contorceu-se com uma dor aguda e o seu baixo ventre estava quente e arrepanhado, nunca se sentira tão mal. Olhou em volta, habituando a visão à pouca claridade do espaço, estava no hospital, concluiu mais calmo, não tinha morrido…Um pequeno movimento ao seu lado denunciou que não estava sozinho, tentou esticar a cabeça para ver quem ali estava. Parecia dormir, tapada com uma manta, cheirava a flores do campo… era Rita…relaxou na almofada satisfeito com a descoberta. Estaria ali há muito tempo? Não sabia que deixavam acompanhantes dormir nos quartos dos doentes… mas fosse o que fosse que tinha ali acontecido, sentia-se estupidamente feliz e aliviado por não estar sozinho. Fechou os olhos, levando a ponta dos dedos ao cabelo dela que pendia para fora da poltrona e adormeceu.

- Mas porque é que ele não acorda? – Rita conversava com alguém que também ali estava no quarto. – Isso é normal? Não é melhor fazerem novamente uma TAC? – insistia.
- Acalme-se, é um milagre ele já estar a respirar sem ajuda, agora temos de ter paciência e dar tempo ao tempo. Volto à hora de almoço para medir a pressão arterial e verificar as doses de analgésico. Já sabe, se algum destes sacos estiver para terminar é só pedir mais.
A porta fechou delicadamente e Francisco sentia Rita bem perto de si, a sua respiração, o vento que fazia ao se deslocar de um lado para o outro.
- Acalmo-me… - bufou falando sozinha – Se fosse o namorado dela não estava tão relaxada! – reclamou analisando todos os tubos e maquinarias.
- Mas o que é que se passou com esse teu tal namorado? – perguntou Francisco, mantendo-se de olhos fechados.
Rita sobressaltou-se com a voz arrastada e fraca.
- Francisco! Acordaste! – guinchou excitada, passando-lhe as mãos pela cara e cabelo, avaliando a veracidade do que dizia.
- Não me respondeste. – disse, olhando-a de esguelha – Mas afinal tens namorado? 
- Estás vivo! E totalmente recuperado… - não conseguia acreditar.
- Agora que eu ia pedir-te em casamento. – lamentou-se fazendo beicinho.
- Ooo cala-te. – fungou Rita beijando-lhe a testa.
- O que aconteceu?
- O touro ia-te matando… - recordou com dificuldade – foste operado, estiveste em coma, os médicos não sabiam se irias recuperar-te…
- A Teresa? Está bem?
- Sim, sim, já voltou para casa há alguns dias. Mas agora descansa, não te canses a falar. Queres que te traga alguma coisa? Tens sede? Fome? Comichão? – perguntou ansiosa por exercer a sua profissão de enfermeira.
- Não, Não, Não e… Comichão? – sorriu. - Também está nos teus serviços coçares os doentes?
- Bem, uma enfermeira deve minimizar o mal estar do paciente. E tu, como és famoso, tens uma enfermeira privativa 24 horas por dia. – disse-lhe sorrindo ao mesmo tempo que lhe ajeitava o ângulo da cabeça na almofada.
- Mas não tens de voltar ao teu trabalho? – esperava que não…
- Não, tenho centenas de dias de folga e férias para gozar. Já avisei toda a gente que não saio daqui enquanto não estiveres bom. – corou com o som decidido da sua voz. Não era nada a Francisco oficialmente, apenas estava apaixonada por ele e tinha andado a dar umas voltas na sua lambreta, como diria Julieta… mas sentia-se responsável por ele. Não havia mais nenhum sítio onde quisesse estar.
- Ainda bem. – confessou aliviado. – Se não ficasses começava a sentir-me ligeiramente usado. – brincou, pegando-lhe na mão. – Pensaria que só me querias pelo meu corpo e cara laroca. Mas sendo assim, posso dormir mais um bocado, estou cansado. Quando acordar acho que vou querer comer qualquer coisa, Srª Enfermeira. – disse petulantemente ao mesmo tempo que fechava os olhos.
- Talvez uma sopa? Acho que não podes comer nada sólido ainda. – esclareceu, sorrindo de orelha a orelha e sentindo-se nas nuvens. Ele também a queria ali.
- Pode ser. – sorriu e deixou-se cair no sono leve que o puxava.


- Mas tens a certeza de que já te sentes bem? – Manuel resistia à decisão de Teresa de voltar ao trabalho.
- Claro que estou. Preciso de ir trabalhar Manuel, a Rita não está no Centro de Saúde e agora é a minha vez de a substituir. É o mínimo que posso fazer por ela neste momento, por ela e pelos utentes, coitados. – Justificava-se, terminando de se arranjar.
- Eu acho que ainda estás muito pálida… - temia ficar sozinho acima de tudo, não queria voltar tão depressa ao trabalho da herdade, dar de caras com Sofia e toda a realidade sufocante da sua vida atual. 
- Podes levar-me agora e ir-me buscar logo à tarde? – Teresa sabia que ele se sentia mais perdido que ela. Já o conhecia um bocadinho, e afinal de contas ela agora nunca se sentia só. Ainda não tinha confessado o seu estado de graça, mas todos os dias acordava mais conformada e feliz. Abraçou-o carinhosamente, sentindo o seu desconforto nos músculos tensos.
- Claro, acho que a tua bicicleta vai ter de ficar estacionada durante uns tempos. – beijou-lhe o alto da cabeça, feliz por ter alguma utilidade nos próximos dias. Um objetivo concreto, nem que fosse ser motorista.
- Vou levar qualquer coisa para comer durante o almoço, devo ter toneladas de papéis para pôr em ordem. – arrastou-o para a cozinha, amuado. – Tomamos o café na esplanada? – Viu em cima da mesa o embrulho antigo que descobrira nas escadas antes do acidente e colocou-o na carteira, se tivesse tempo começaria a sua leitura histórica. Iria saber-lhe bem distrair a cabeça durante a pausa do almoço, se conseguisse organizar os processos.
Saíram de casa abraçados em direção ao café, seria um longo dia de conversas sobre a tragédia que assolara a tourada, e Teresa tinha preparado todo um discurso prático e conciso para esclarecer os curiosos, já que Manuel não dava corda às tentativas de diálogo com estranhos. Era-lhe doloroso falar sobre o assunto.
Manuel fez questão de levar Teresa até ao gabinete, parecia um pai neurótico com dificuldade na separação à porta da escola, pensava ela com compaixão. Fingiu que precisava mesmo da sua ajuda com o transporte do pequeno saco com o almoço e deixou-o resolver devagar a questão do medo de voltar à normalidade depois do trauma. Despediram-se, e Teresa sugeriu-lhe que visitasse Rita e Francisco no Hospital de Moura, a amiga já lhe mandara uma mensagem cheia de smilles a informar da melhoria do toureiro. Aqueles dois precisavam de conversar e acabar com o desentendimento antigo que, à face do que tinha acontecido, era completamente supérfluo. Manuel preferia que ela o acompanhasse mais tarde depois do trabalho, mas deixou-se convencer com os argumentos sabiamente  expostos por Teresa. Conversas de homens, aceitara por fim.


- Ora então, vamos lá endireitar a cama e tentar comer a sopa. 
Rita parecia completamente enquadrada naquele ambiente hospitalar, como se sempre ali tivesse trabalhado ou vivido. Sabia mexer em todos os aparelhos e máquinas, desde o dispensador de soro à cama articulada. Francisco admirava a sua energia e boa disposição, com um tratamento daqueles até valia a pena levar umas marradas, pensava satisfeito.
- Também tenho direito a sopinha na boca? – brincou.
- Claro, tens de fazer o mínimo de esforço possível, se não conseguirmos que comas assim vou buscar-te uma palhinha. – explicava Rita, inclinando a colher com graciosidade para evitar sujar o paciente.
- Acho que não mereço isto tudo, - disse, depois de engolir a primeira colherada que lhe sabia divinalmente – acho que vou mesmo casar contigo mulher! – sorriu-lhe, apreciando vê-la corar como um tomate.
- Agora está calado e concentra-te. – ralhou, tentando disfarçar o embaraço. – E não sei se te quero, ainda não confirmei com o médico de serviço se estás de facto todo recuperado. – provocou-o, ela também sabia brincar, pensou orgulhosa ao ver os seus olhos esbugalharem-se de espanto.
- Sua interesseira…- fingiu escândalo. Seria normal que apenas vinte e quatro horas depois de sair do coma já sentisse um formigueiro nas pernas só de lhe olhar para a blusa mal abotoada?, devia ser dos remédios, concluiu. - Mas quando terminares de me dar o almoço podes dar-me banho e logo vês, - gozou, levando um dedo ao início do decote de Rita que se encontrava demasiado perto da sua cara – e pensando melhor, talvez não seja preciso, - exclamou satisfeito – olha! – acenou-lhe na direção das pernas e Rita deu um salto elevando-se automaticamente da cama.
- Jesus! Francisco! – admoestou-o ficando escarlate – Mas tu estás doido? E se entra aqui alguém, e vê isso… assim!? - continuava com a sopa nas mãos, horrorizada com a ideia de que o vissem com aquela alteração física.
- Digo a verdade, que tu me estavas a molestar. – gozou – Vens para aqui com esses decotes, a esfregares-te toda num desgraçado de um acamado que não se pode mexer, sinceramente mulher! – continuava divertido com o ar de virgem escandalizada que Rita não conseguia disfarçar.
- E agora? Como é que isso volta ao normal? Pára de rir.- ralhou, aflita.
- Eu só conheço uma maneira… - Olhou-a de alto a baixo.
- És louco. E não tens graça nenhuma, se entra aqui alguém é uma vergonha. – disse, pousando a sopa e procurando uma manta para tentar disfarçar o relevo que se notava debaixo da colcha fina que o cobria. Investigava o armário, que continha algumas almofadas, quando ouviu a voz de Manuel no corredor. Correu em direção à cama, em pânico e conseguiu lançar uma almofada que aterrou precisamente no local necessário, voltando-se rapidamente para a porta, vermelha até às orelhas.
- Posso? – Manuel entrou sem jeito no quarto, era a primeira vez que via Francisco acordado depois de tudo o que tinham passado os dois.
- Claro, - disse-lhe o toureiro demasiado sorridente – entra, a Rita estava aqui a ajudar-me a comer a sopa.
Manuel olhou para a estranha posição da almofada que se mantinha equilibrada em cima de Francisco e sorriu. Seria aquilo o que estava a pensar?
- Sim, fiquei demasiado entusiasmado com o tratamento da Srª Enfermeira, e ainda nem sequer me deu banho… - confessou divertido.
- Eu… acho que vou até ao bar! – olhou Francisco duramente, não estava ali para ser gozada. – Pode ser que com o Manuel consigas comer tudo sem ficares incomodado. Aliás, o melhor é o Manuel me substituir a tempo inteiro. – saiu batendo a porta. 
- Acho que ela não gostou da brincadeira…- comentou Manuel pegando no prato da sopa que ainda estava cheio. – Vamos lá então ver se também és sensível na presença de machos. – quebrou a formalidade, ajudando-o a comer, e descontraindo o ambiente, dando-lhe dicas de como tornar a amansar Rita, técnicas infalíveis que tinha aprendido em Coimbra.

Teresa teve uma manhã exaustiva de tudo e mais alguma coisa, menos de atendimento clínico. Parecia que os safarenhos apenas sofriam do mal de curiosidade, para o qual era necessário um tratamento ainda mais difícil e cansativo. Olhava frequentemente o relógio de parede, já não aguentava mais ouvir-se relatar os poucos factos que podia contar. Manuel insistira que era necessário encontrar o culpado de todo o acidente e Teresa já tinha dado um depoimento exaustivo na Guarda Nacional Republicana. Não estava muito convencida de que quereria saber que havia alguém que a detestava ao ponto de a tentar matar daquela forma fria, mas duvidava que alguma vez conseguissem encontrar o culpado. Ela não vira ninguém, não havia nenhum som que pudesse identificar uma pessoa em concreto. Era um absoluto mistério.
Finalmente o último paciente da manhã saiu e Teresa deitou a cabeça nas mãos, tentando recuperar alguma serenidade no silêncio do gabinete. Fazia-lhe muita falta a presença viva e fresca de Rita, que enchia o local de sons, mas que conseguia de alguma forma regenerar o ambiente, transformando todas aquelas más energias em cenas cómicas. Pegou no seu almoço, no embrulho misterioso e saiu em direção ao pátio solarengo que havia nas traseiras do edifício. Ficaria aí escondida durante toda a hora de pausa, não conseguia manter nem mais um minuto de conversa da treta.
O sol estava forte, mas a pequena mesa de esplanada do canto ainda tinha uma sombra, e curiosamente Teresa já tinha percebido que numa terra quente todos fugiam da temperatura escaldante da hora de almoço. Ninguém aproveitava o sol por ali, era bastante fácil ter lugar para se sentar porque ninguém deixava o fresco do interior do prédio, só ela, e ingleses e alemães, se por ali vivessem, sorriu ao pensar no que não pagariam os povos do norte por aquela hora de luz e calor…
Concentrou-se no velho embrulho amarelento, rasgou o cordel que prendia todas aquelas cartas poeirentas e reconheceu a morada da sua casa e o destinatário, a sua avó, Maria Rosa. O remetente era uma tal de Maria Eugénia, de Coimbra. Estranhou aquele facto, nunca ouvira falar daquela pessoa, nem sabia que a sua avó conhecia alguém de Coimbra a ponto de receber dezenas de cartas da mesma pessoa durante meses. Escreveria ela de volta? Questionava-se, Maria tinha aprendido a ler e escrever, ao contrário de muitas raparigas pobres da época, por isso talvez conseguisse fazê-lo. Procurou pelo envelope com a data de envio dos CTT mais antigo, para começar cronologicamente a meter o nariz nos assuntos daquelas duas. 
A letra era maravilhosa, parecia uma impressão a computador, de facto o ensino atual era medíocre comparando com o nível de exigência do tempo da “outra Senhora”, pensou.


“Salvé 20 de Outubro de 1942,

Cara amiga Maria Rosa,
Espero que te encontres bem de saúde, tu e a tua mãe.
Recebi com tristeza a notícia da morte do teu querido pai, que sei que tanto amavas. 
Aguardo com expectativa a tua resposta para a minha morada, como combinado. Prometo que na próxima carta te falarei do que tenho feito, te contarei mais sobre a casa onde estou a viver.
Despeço-me por agora com saudade.
A tua eterna
Maria Eugénia”

A “tua eterna”… Maria Eugénia?! Mas que raio de despedida era aquela? Seria alguém de Safara que fora viver para Coimbra? E porque não contava ela naquela carta os tais pormenores sobre a sua chegada à cidade? Aquilo era no mínimo excêntrico. Agarrou no segundo envelope, visivelmente mais manuseado que o anterior, tinha bastante mais conteúdo também, reparou entusiasmada.

“Salvé 30 de Outubro de 1942,

Querida,
Fiquei feliz por saber que o que combinámos resultou. A distância que nos foi imposta pode ser assim mais fácil de suportar. As tuas palavras consolaram a minha alma vazia e angustiada. Espero que também possas encontrar algum alento nas minhas.
A tua doce companhia tem invadido os meus sonhos, e adormeço todos os dias a recordar a nossa despedida. Vou sentir muita falta dos nossos momentos, ainda não consegui conhecer ninguém que possa considerar um futuro amigo, é tudo muito diferente em Coimbra. É uma cidade bonita, muito maior que Moura, da minha casa à Universidade são pelo menos vinte minutos de caminho. Quando me vieres visitar vou levar-te a passear em todos os jardins que por aqui há. Também irás gostar de ver a bela Igreja de Santa Cruz, a Sé Velha, são tantas as igrejas e capelas que ainda não consegui conhecer todas.
As aulas já começaram e estou muito empenhado nos estudos, ocupam-me a mente durante o dia.
Peço-te que não ouças nada do que a minha mãe te disser sobre mim. Ela ama-me, mas irá tentar fazer com que te decepciones comigo. Garanto-te que as promessas que fiz antes de partir serão cumpridas, casaremos quando eu voltar formado, nada nem ninguém o conseguirá evitar.
Aguardo notícias tuas e dos teus, com grande saudade,
O teu eterno,
J. S.”

Teresa inspirou finalmente, não se apercebeu de que tinha deixado de respirar com a surpresa. Como ela suspeitara, quem lhe escrevia não era nenhuma Maria Eugénia, mas um namorado secreto. Sentiu algum carinho por aquela novidade, Maria Rosa era uma mulher como todas as outras e também vivera os seus momentos de romance. A relação parecia um pouco à margem da legalidade, mas a carta denunciava grande intimidade entre os dois. Quem seria o tal J.S.?, perguntava-se excitada. Uma coisa era certa, não era nenhum agricultor ou homem da mesma classe social que ela. Era um estudante universitário, nos anos 40, que tinha posses para viver em Coimbra e tirar uma formação superior. Com essa descrição não seria muito difícil para Teresa descobrir rapidamente de quem se tratava. 
Ainda tinha tempo para ler mais algumas cartas e durante o restante tempo de pausa de almoço deliciou-se com as palavras de consolo e romance que J. S. dedicava à sua avó. Para a época eram palavras ousadas, e imaginou que Maria Rosa deveria ter bastante medo que alguém interceptasse um daqueles sobrescritos, e isso provava que o tal J. deveria ser merecedor desse perigo. Pensou em Manuel, ele também a levaria a fazer algumas loucuras, e receber cartas apaixonadas de um amor proibido em 1942 andava ao nível do crime público. Nunca duvidara de que a sua avó era uma mulher corajosa e bem resolvida, mas o seu lado vulnerável e apaixonado era uma doce novidade. Guardou cuidadosamente todos os envelopes, mais tarde iria questionar Manuel sobre o tal de J.S. de Safara, ele facilmente iria adivinhar a sua identidade, concluiu. Ainda lhe sobraram algumas cartas por ler, mas o dever chamava-a na voz estridente e irritante da administrativa chefe do Centro de Saúde. 


- Acho que já não consigo engolir mais sopa…
- Já comeste metade, talvez já chegue, e também já me dói o braço… Isto de ser enfermeiro não é fácil. – Gracejou Manuel. – Como te sentes?
- Meio tonto, mas deve ser dos remédios. A Rita anda sempre aqui de volta destes aparelhómetros, não percebo nada disto. Se calhar é melhor chamá-la.
- Eu vou procura-la, se quiseres. – Manuel sentia-se embaraçado por estarem os dois sozinhos, há muitos anos que não conversavam sem ser para discutir. – No caminho para cá estive a pensar no que tinha para te dizer… e quero pedir-te desculpa por… tu sabes, bem, nunca falámos sobre o nosso problema… Eu devia ter… enfim, Obrigado por teres salvo a Teresa. Nunca vou esquecer o que fizeste.
- Por favor, não me agradeças, não fiz nada de especial. Qualquer um se mandaria para o corredor do curral e seria esmigalhado pelo touro para salvar a mulher do “inimigo” – gozou, tentando aligeirar o clima.
- Eu sei, tu sempre foste muito altruísta. – brincou – Mas mesmo assim, tenho uma dívida de gratidão para contigo.
- Cala-te pá, não penses mais nisso. O teu azar é que eu não morri, boa tentativa! – continuou Francisco bem-humorado.
- Então e agora, mudando completamente de assunto, o que é que se passa aqui contigo e com a Enfermeira Rita? – perguntou, curioso e desejoso de ultrapassar o tema tabu.
- Bem, é gira a miúda não é? Acho que está caídinha por mim. – disse orgulhoso.
- E tu? Estavas muito entusiasmado com a “miúda” quando eu cheguei… Também estás caidinho ou vais fazer-lhe o mesmo que às outras todas?
- Credo, mas eu sou algum monstro? – brincou, fingindo-se ofendido. – Ela tem sido uma boa amiga, ficou aqui para me ajudar. Talvez a recompense. – piscou o olho, sem adiantar os sentimentos que começavam a fazê-lo ficar mole.
- Vê lá o que fazes. A Teresa adora a Rita, é uma boa miúda, não a magoes. – olhou-o com censura. – Ela pode não ser a tal, mas não te largou um segundo para cuidar de ti. Se não gostas dela não te ponhas com parvoíces.
- Tu sabes perfeitamente que a tal nunca vai ser a Rita, já ouve uma e bastou. – Francisco bufou, incomodado.
- Bem, eu tenho de ir. Ainda vou passar na herdade, o meu pai anda parece um zombie, acho que o ias matando do coração. – deu-lhe uma palmada carinhosa no ombro em jeito de despedida – E pensa nisto Francisco, a Helena não está aqui a dormir ao teu lado há duas semanas. – saiu, fechando a porta, o velho amigo continuava a insistir numa ideia ilusória de uma Helena que nunca tinha existido, e se continuasse a ser parvo perderia a oportunidade de ter alguém que o conseguia aturar, e pelos vistos gostava.
Francisco praguejou, lamentando estar ali preso a uma cama a ter de ouvir tudo e todos, sem poder levantar-se e virar costas… E por muito que lhe custasse aceitar, Manuel tinha razão. A Helena que ele amara nunca tinha existido, e Rita andava a mexer-lhe demasiado com o juízo. Esse era o grande problema, levara alguns anos a ultrapassar o desgosto de ter sido renegado e tinha prometido a si mesmo que nunca mais ficaria naquele estado por mulher nenhuma. Enquanto pudesse brincar com a enfermeira estava na sua zona de conforto, se ela começava a querer mais que isso já era um problema. 
- Posso? – Rita entrou de cara fechada, ainda estava um pouco chateada com as piadolas que os dois tinham feito às suas custas. – Precisas de alguma coisa?
- Um beijinho? – gozou.
- Acredito que sim, mas não tenho grande vontade de beijar um acamado malcheiroso, com a barba por fazer e sem lavar os dentes há séculos. – respondeu numa tirada só.
- Podias fazer-me a barba, lavar-me os dentes e dar-me banho. Também me iria saber bem. – pediu, entusiasmado com a ideia de tirar de cima aquela sensação de hospital e suor.
- Mas que exigentes que nós estamos! Acho que preferia o Francisco em coma. – disse secamente – Mas vamos lá então tirar essa barba, vou buscar as coisas à casa de banho. – disse, saindo decidida do quarto e trazendo o material necessário que já tinha providenciado dias antes, segura de que ele iria querer tirar aquele excesso de pelos da cara.
- Mas já não estás zangada comigo, pois não? – perguntou, brincando. – É que não é muito boa ideia fazeres isso furiosa e com uma lâmina na mão…
- Eu não estava zangada, Francisco. – mentiu, começando o trabalho.
- Ok, então depois dás-me o beijinho? – sorriu-lhe, com cara de garoto.
- Não sei, vamos ver. – sem perceber bem porquê, o ambiente mudara desde que Manuel saiu do quarto, o toureiro parecia-lhe novamente gozão e altivo, como antes de se terem embrulhado um com o outro. Sentia o peito apertado, angustiada, mas também não iria dar parte de fraca, decidiu. “Quanto mais te baixas mais te vêm as cuecas” – diria a sua mãe. Se ele queria ser novamente o Francisco parvalhão, ela seria apenas a Rita enfermeira.

Manuel passou pela herdade, estava preocupado com António, que se tinha ido abaixo com aquele episódio dramático na tourada. Um dos seus touros quase tinha matado o seu “aprendiz”, de quem gostava como a um filho de sangue. Manuel sabia que o pai tinha transferido parte da culpa do acontecido à escolha do bicho que tinha seleccionado para a lide de Francisco. Ainda não tinha voltado a montar, e mantinha-se afastado dos currais e cavalariças, como se fizesse algum tipo de luto, num processo doloroso de introspeção, que deixava Maria dos Prazeres com os nervos em franja. 
Lanchou com os pais e Sofia, apressando a refeição, e tratou de sair o mais rápido possível de perto dela. Felizmente António da Silva parecia partilhar com ele a ideia de que Sofia era uma mulher em quem não se podia confiar, e este não o obrigava a manter temas de conversa com a ex-namorada. O facto de ela se ter instalado de mala e cunha na herdade era excêntrico o suficiente para o tradicional António não gostar dela. Manuel não sabia como resolver a situação que se tinha ali criado, mas a mãe também não permitia que a rapariga fosse embora, o que deixava os dois homens desconfortáveis, mas resignados. Elas que se entendessem as duas.


Teresa saiu do Centro de Saúde já bastante atrasada, o trabalho acumulado parecia não ter fim, e os casos mais urgentes de cuidados de enfermagem não podiam ficar em lista de espera. Rita fazia muito mais falta que uma médica, lamentava-se Teresa, que passara o dia a fazer pensos e curativos. Precisava de um bom banho, uma açordinha e cama. Saiu do prédio mais animada com a ideia da açorda, quando viu Manuel encostado na pick-up, à conversa com um homem da terra, distraído. Aquilo sim era uma visão… Que brasa, pensava, sorrindo de orelha a orelha, parecia um modelo da Guess, cheio de estilo. Qual J.S., qual carapuça, pensava, encaminhando-se para o seu adónis, aquilo sim era um homem… Abraçou-o, surpreendendo-o, não havia nada melhor que se encostar naquele peito e deixar tudo para trás das costas… Manuel ficou embaraçado e o safarenho despediu-se rapidamente, saindo de mansinho e deixando-os nas suas demonstrações públicas de afetos.
- Bem, estou a ver que tiveste saudades minhas! – brincou, abraçando-a de volta.
- Ah, estava mesmo a precisar disto, mais uma ferida com pus para desinfetar e acho que cortava os pulsos…- gozou Teresa, ainda de olhos fechados e caída nos seus braços.
- Que nojo… - lamentou-se Manuel – Andaste a mexer nessas porcarias e agora vens agarrar-te a mim? – gozou, tentando libertar-se dela.
- Não sejas cruel, eu lavei as mãos. Dá-me um beijinho… - esticou-se na sua direção sorrindo. – Juro que não trago nada que se pegue.
- Atendeste alguém com papeira? – perguntou mantendo-a afastada. – É que eu nunca tive isso! – brincou.
- Manuel da Silva, ou me dás agora um beijo ou… - Teresa começava a ameaçar, quando ele a arrebatou com paixão, levantando-a do chão uns bons palmos.
- Pronto, agora se me começar a inchar o pescoço já sabemos quem é a culpada. – resmungou, brincando.

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(imagem, internet)

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