terça-feira, 23 de junho de 2020

"Safara" - Capítulo 11

 




- Hoje é um dia de festa cá na terra, sabia Sofia? É dia de S. Sebastião. Ontem tivemos a largada de touros, que acho horrível, - comentou fazendo uma careta - não saio de casa nesse dia. Parecem parvos aqueles homens, já tinham idade para ter juízo, todos a correr a fugir à frente dos bichos… Valha-me Deus, é um perigo! Nunca percebi porque continuam com essa tradição. – olhou em volta, receando ser ouvida por António – O meu marido que não me ouça, afinal ele vende alguns bichos para a festa, mas sinceramente, a tourada ainda vá que não vá, com a música, os forcados, os toureiros, enfim, é uma festa, mete muita gente que trabalha o ano todo, alguns deles, desde pequenos que treinam para poderem tourear… Mas andar pela rua a fugir dos touros? Sujeito a cair e ser esmagado? – benzeu-se rapidamente, expulsando aqueles pensamentos agoirentos. - Enfim, só se lá mete quem quer, não é assim? – sentenciou, colocando o café na mesa. – Vamos tomar o pequeno-almoço que ainda tenho de me arranjar para ir à Missa. Se quiser vir, tenho todo o gosto. Neste dia almoçamos sempre na aldeia, em casa de uma prima minha, e de tarde vamos todos à tourada. Pelo menos não fica aqui sozinha a aborrecer-se o dia todo.
Sofia preferia ficar à beira da piscina, bebendo limonada fresca e comendo pão-de-ló a ter de aturar Maria dos Prazeres a tagarelar todo o dia, mas algo lhe dizia que seria bem proveitoso conhecer a “família” e talvez com um pouco de sorte ainda teria o “prazer” de ver Manuel e a sua Teresa.
- Claro que vou, hoje já me sinto muito melhor e aproveito e agradeço pessoalmente a Deus esta bênção. – disse com um olhar meigo, levando a mão à sua barriga que ronronava de fome.
- É isso mesmo, minha querida. Os filhos são uma bênção. – fungou Maria emocionada com os sentimentos cristãos da futura nora e mãe do seu primeiro neto. – Vamos comer e depois seguimos para a aldeia. Vou chamar o António, senão ainda chegamos tarde e perdemos os lugares dianteiros na igreja. Não gosto nada de ficar no fundo, nem me sabe ao mesmo. – saiu animada, gritando o nome do marido que fazia ronha na cama sempre que era inevitável ir à Missa.
Sofia sorriu-lhe contrariada, estava morta de fome e o estupor do homem nunca mais aparecia para se sentar à mesa, mas teria de se esmerar na educação, esperaria por todos como a mãe lhe tinha ensinado, dizia a si mesma, enquanto tamborilava languidamente os dedos na mesa.


Rita acordou uma vez mais sem despertador, duas horas antes do necessário, ansiosa com o dia que se adivinhava. Tinha tido sonhos perturbadores durante toda a noite, levantando-se um par de vezes para beber água. Se continuasse assim teria de tomar alguma medicação para se acalmar, lamentava-se observando as suas olheiras ao espelho. Quanto mais cansada estava, mais difícil lhe era adormecer. E tudo aquilo era resultado da sua mente inquieta e sonhadora, sempre que tinha algum problema a moê-la, o cérebro ficava em alerta total e recusava-se a descansar. Meteu-se na banheira e como toda a casa ainda dormia, resolveu pecar e tomar um banho de imersão, afinal os recursos naturais eram sagrados lá por casa e se sonhassem que ela relaxava em trezentos litros de água quente ouviria sermões durante meses. Que bom seria ser rica e não ter de desligar a água quente enquanto se ensaboava…Talvez um dia Rita… profetizava para si mesma, fechando os olhos e permitindo o corpo relaxar. Tinha tempo para dormitar, se quisesse, já tinha escolhido a roupa que iria levar, o penteado, só faltava arranjar coragem para a parte da tarde, mas talvez na Missa as suas preces fossem ouvidas e S. Sebastião lhe concedesse o Milagre. 


A Igreja começava a encher à medida que a hora se aproximava, todas as mulheres da terra tinham lugares preferidos e nenhuma queria ouvir uma Missa de um ângulo estranho. Ouvia-se o eco suave do Terço, que as mais velhas faziam questão de rezar enquanto esperavam o Sr Padre, e só os homens se mantinham teimosamente no adro, adiando a entrada no edifício fresco, e comentando animadamente as aventuras do dia anterior pelas ruas da terra, ostentando com orgulho as nódoas negras e ferimentos provocados pela fuga aos touros. Rita conhecia cada um daqueles safarenhos, muitos até de formas que dispensaria, mas afinal a sua profissão impunha-lhe essas indiscrições. Sorria para todos, cumprimentando-os, enquanto atravessava a pequena multidão masculina que se formava sempre naquelas ocasiões, quando sentiu uma mão forte a agarrar-lhe o braço, estacando-lhe o passo.
- Bom dia, Srª Enfermeira! Guarde um lugar para mim, pode ser? Estou só a terminar o cigarro. – disse Francisco com um desafio no olhar.
- Quê?! – esganiçou com demasiada força. – Largue-me o braço, faz favor. – nem nos seus piores pesadelos poderia prever aquilo. Apressou-se a furar o muro de homens à sua frente e procurou o local mais apertado para se sentar, um dos bancos mais escondidos ainda tinha uma nesga livre na ponta e correu a ocupá-la, evitando assim qualquer possibilidade de Francisco se esborrachar contra ela naqueles lugares apinhados de fiéis. Como poderia ficar atenta ao sermão se aquele homem se sentasse ao seu lado… - perguntava-se benzendo-se em direção do Santíssimo. Os primeiros acordes do órgão ouviam-se e todos se acomodavam para dar início à celebração, quando Francisco tocou no ombro do pequeno adolescente que se encontrava ao lado de Rita, ordenando-lhe que lhe cedesse o lugar.
- Não te atrevas a sair daí! - rosnou Rita ao rapaz, que os olhava corado, receando o olhar furioso do toureiro.
- Desculpe menina Rita, mas ele depois vinga-se de mim nos treinos… - sussurrou o aprendiz de toureiro enquanto se levantava apressado.
- Isto está cheio hoje! – disse Francisco ao ouvido de Rita, instalando-se à força num lugar pequeno demais para o seu tamanho e colocando um braço esticado por cima do banco apoiado nas costas da enfermeira. – Não se importa, pois não? Não tenho espaço suficiente. – gozou, sentindo-a fugir ao toque.
- Se calhar é melhor eu procurar outro sítio. – disse Rita, tentando levantar-se, mas sendo bruscamente puxada para baixo pela mão de Francisco.
- Deixe-se estar sossegada. Já não há mais bancos livres. – ralhou o toureiro que se divertia cada vez mais com a timidez de Rita. Aquilo dava-lhe um gozo tremendo, senti-la toda nervosa, tão pequena e indefesa, espremida contra si.
Rita procurou uma posição que lhe permitisse fugir do contacto com o braço demasiado quente que sentia nas suas costas. Chegou-se ao máximo para a frente, ficando apoiada apenas na ponta do banco, desesperada com o facto de ter de aguentar uma hora inteira naquele ângulo desconfortável. Ficaria com o coxis destruído, pensou lamentando-se, e ainda lhe dava alguma cãibra num músculo das pernas, tal era a força que fazia para se manter assim.
Francisco aproveitou o espaço para descer o braço e enlaçou-a com ele, abraçando-lhe a anca, sem pudores, sentindo-a estremecer, mas indefesa, sem poder reagir, já que estavam em público e num espaço sagrado onde o silêncio era agora obrigatório. Aquele contacto forçado era delicioso, pensava, talvez a enfermeira não fosse assim tão má escolha para se divertir durante uns tempos.
Rita corava como um tomate, sentindo-se escarlate e a entrar em hiperventilação, com aquela mão atrevida que a agarrava sem lhe dar hipótese de fuga, e se alguém notasse aqueles movimentos de Francisco, perguntava-se nervosa, olhando discretamente em redor. Sentiu os dedos longos à procura da sua pele, por debaixo do casaco e olhou-o escandalizada, seria possível que aquele verme a fosse violar num local daqueles? Francisco mantinha-se aparentemente concentrado na Missa, sem a olhar, fingindo que nada se passava, como um bom parvalhão, dizia ela a si própria, a sentir-se desmaiar de tão nervosa. Encostou-se com força ao banco, tentando marcar uma posição e parar o braço que a envolvia cada vez mais como uma cobra peçonhenta. Francisco tossiu, disfarçando uma gargalhada e aproveitou para a puxar mais contra si, conseguindo ainda mais margem de manobra nas suas investidas indiscretas. Encontrou o fundo da camisola e subiu a mão pelo torso sedoso de Rita, apreciando com surpresa o toque delicioso da sua pele, sentindo-se cada vez mais entusiasmado e decidido. Rita gemeu, levando uma mão à boca, para evitar um grito histérico no meio da multidão silenciosa e cravou a outra na perna do toureiro, tentando magoá-lo. Ele encostou a boca à sua orelha, sussurrando um som de quem apreciava o gesto e continuou uma carícia lenta e sensual no ventre de Rita que tentava não espernear e manter-se imóvel com aquela abordagem insana, enquanto se persignava com a mão esquerda, completamente  alheia ao ritual sagrado que todos acompanhavam concentrados. Agarrava com toda a força o braço invasor, enquanto este a envolvia cada vez mais, sentindo o seu tronco cair em direção ao toureiro, como se o seu corpo tivesse vontade própria e não lhe obedecesse. A mão forte e quente abria caminho pelo seu soutien pouco eficiente, que se abria lentamente às ordens do carrasco, e Rita já não conseguia disfarçar o quanto aquilo lhe apetecia também. O bom senso e o decoro olhavam para o lado, fingindo que nada se passava, e os Santos fechavam os olhos, como se temessem cegar perante tamanho escândalo. Quando a mão de Francisco lhe apalpou devagar o seio, Rita já não via nada, fechou os olhos e encostou a cabeça no ombro forte do toureiro, resignada. Só esperava que ninguém estivesse a perceber, o resto que se danasse, pensava em êxtase. Francisco pousou o casaco por cima do seu colo, evitando assim que se notasse o seu entusiasmo masculino, e puxou a mão de Rita em direção à sua coxa, mantendo a sua por cima, para não lhe dar hipótese de fuga. Queria escandaliza-la de forma traumatizante, mas também a desejava cada vez mais, e não conseguia parar. Rita percebeu a intenção de Francisco e decidiu não fingir mais, subindo a mão por debaixo do casaco em direção ao local proibido que nunca tinha visitado. Sentiu-o remexer-se no banco, incomodado e o facto de que também ela o conseguia afetar deu-lhe a coragem suficiente para explorar a excitação dele, afinal tinha de se vingar, pensou para si mesma. Não contava com aquele prazer tão lascivo, ao tocar nele, nem queria acreditar que estava a fazer aquilo, pela primeira vez, e logo numa igreja. Nunca conseguiria confessar tamanho pecado e a partir daquele dia nunca mais poderia comungar. Simplesmente estava condenada ao fogo do inferno. Francisco desceu a mão e desabotoou as calças de Rita, invadindo-a sem pudor, completamente enfeitiçado pela destreza da pequena enfermeira, sentindo-a estremecer violentamente e caindo de joelhos na tábua do banco da frente. Rita bateu com a testa na madeira, gritando o seu primeiro orgasmo e deixando-se ficar naquela posição em penitência sem ouvir nem sentir nada. Todos voltaram as cabeças na direção dos dois, surpreendidos com o grito, e Francisco acalmou a multidão pegando-lhe ao colo e atribuindo o som à cabeçada provocada por um desmaio súbito. Devia ser do calor, dizia, encarregando-se de a levar para um local mais arejado e fresco. Todos voltaram as atenções para o culto, satisfeitos e o casal encaminhou-se para fora da igreja, sem levantar suspeitas do que se tinha ali passado.
Rita escondia a cara no peito do toureiro, envergonhada consigo mesma, enquanto este a levava para um banco à sombra, rindo satisfeito. De tudo o que tinha imaginado fazer com aquela minorca, nada o tinha preparado para aquele desfecho tão inusitado.
- Bem, isso é que foi rapidez! – gozou ele, enquanto a ajudava a sentar-se, ainda trémula.
- Tu… Tu viste bem o que fizeste, seu merdoso?! – gritou ela, dando-lhe um soco no peito e arrependendo-se logo de seguida, com a mão a doer.
- Eu? Desculpa lá, mas tu és a culpada de tudo, - ripostou divertido – ninguém te mandou seres tão apetitosa, para além de que também foste um pouco atrevida demais para quem estava dentro de uma igreja! – zombou, recostando-se satisfeito com as mãos por detrás da cabeça e esticando as pernas descontraído.
- Seu cabrão, - insultou-o enquanto apertava o botão das calças que ainda se mantinha aberto – nunca mais te aproximes de mim! – ameaçou Rita, levantando-se nervosa.
- Isso agora é mais difícil, primeiro gostei bastante do que seu passou lá dentro, e tu também. Acho que devíamos fazê-lo mais vezes. – disse Francisco, puxando-a para o seu colo. – Para além de que há uma coisa que ainda não fiz e quero muito. – Olhou-a e abraçou-a trancando-lhe os braços que se debatiam para se soltar. Rita fechou os olhos e Francisco beijou-a suavemente, como tinha imaginado, surpreendendo-se com o sabor inebriante dela. Abraçaram-se, envolvidos no beijo apaixonado, sem notar que a população começava lentamente a sair da igreja, olhando-os escandalizada. Alguns homens assobiavam, levantando os bonés em sinal de aprovação, divertidos, enquanto as mulheres se benziam horrorizadas.
Rita foi violentamente abanada por uma mão e acordou para a realidade, quando viu a mãe furiosa a encará-la com ódio no olhar.
- Sim senhora, lindo espetáculo!! – berrou Julieta, puxando a enfermeira de cima do colo do toureiro, que ficara branco com o susto.
- Até logo! – disse Francisco sorrindo a Rita, enquanto esta era arrastada pela mãe pelo meio da multidão curiosa.
Rita acenou-lhe, sorrindo envergonhada e acelerando o passo para acompanhar o ritmo da mãe que a beliscava de nervos magoando-lhe o braço.
- Au! Também é preciso tanta violência? – suplicou Rita, tentando libertar-se da mãe. – Desculpe, não sei o que me deu… - lamentou-se, sem saber o que dizer.
- E ainda sorris? Como se isto tivesse motivos para rir!! Francamente, nunca pensei que fosses capaz de tamanha ordinarice, e no meio da rua!! – berrou desesperada. – Logo à tarde nem tenho coragem de ir à tourada, só de pensar no que aquelas víboras vão dizer nas minhas costas!!
- Desculpe mãezinha, olhe, diga-lhes que ele é que me agarrou.
- Enquanto foste garota nunca me deste trabalho, agora que tinhas idade para ter juízo é que te dá para estas coisas? – ralhou, caminhando enfurecida em direção a casa.


Teresa e Manuel acordaram tarde, depois de uma noite sem interrupções exteriores, satisfeitos por estarem novamente sozinhos, sem outros compromissos ou deveres. Os últimos tempos tinham sido abalados com surpresas e revelações catastróficas para um recente casal apaixonado, mas ali naquela pequena casa, os dois tinham reencontrado a paz e o sossego uma vez mais. Manuel sentia-se leve pela primeira vez desde que Sofia aparecera na herdade com exigências de compromisso forçado, e estava decidido a manter-se assim. Não permitiria que a ex-namorada e futura mãe do seu filho inesperado estragassem aquela relação com Teresa.
- Meu Deus, já é tão tarde… - bocegou Teresa, enroscando-se em Manuel, sentindo-se feliz como nunca por tê-lo ali só para si.
- Apetece-te almoçar fora? – perguntou animado com a ideia de namorar ao ar livre, passear com ela pela terra, para confirmar a todos que eram um casal. – À tarde podíamos ir à tourada, é sempre muito animado e o meu pai deve precisar de alguma ajuda antes da festa começar, temos lá a maioria dos bichos, são uns exemplares magníficos.
- Tourada?... Bem, nunca vi nenhuma ao vivo, - confessou pouco animada – e depois da minha quase pega de caras de ontem aqui em casa, não sei se vou gostar muito.
- Pega de caras? – perguntou preocupado.
- Ah, ainda não te contei, ontem abri a porta de casa no momento em que passava a largada de touros, um deles estava a marrar contra a porta, não fazia ideia do que era e… - confessava envergonhada.
- Abriste a porta? – gritou Manuel enlouquecido com a imagem dela a ser abalroada por um touro. – Mas tu és louca?
- Calma, não se passou nada, depois alguém enxotou o bicho e ele continuou a corrida pela rua abaixo. – concluiu, omitindo o desmaio e a intervenção de Francisco Carriço.
- Teresa, tu és um perigo para ti mesma, - disse, abraçando-a – quando não são touros a tentar entrar-te pela casa a dentro, quase furas os pés de um lado ao outro a tentar matar uma sardanisca…- ralhou paternalmente. – Mas logo eu posso ficar de olho em ti, por isso não tenhas medo. Vais ver que a tourada tem a sua beleza. – beijou-lhe a cabeça e puxou-a para fora da cama, encaminhando-a para o banho. – Agora vamos levantar se queremos mesa no café para almoçar. Aquilo deve estar concorrido hoje.
- Desde que não sejam bifanas rançosas sem mostarda… - brincou Teresa, relembrando a sua primeira refeição em Safara.
- Não, em dias de festa costuma haver petiscos ainda melhores que os da minha mãe. – prometeu Manuel. – É verdade, que embrulho é aquele que estava na mesa da cozinha? Parecem cartas antigas, são tuas?
- Não, encontrei ontem aquilo escondido num degrau das escadas, quando estava a varrer os vidros. Ainda não tive tempo de as ler, mas só podem ser coisas dos meus familiares, pelo aspeto da letra. Só aqui viveu uma família depois deles e não foi assim há tantos anos. Logo podemos ler os dois, se quiseres, estou com esperança de que sejam cartas de amor… - sorriu, abraçando-o.
- Ou talvez sejam tricas familiares ou segredos obscenos, era bem mais divertido se descobríssemos alguma coisa escandalosa! – brincou, fugindo com a anca de um beliscão de vingança pela provocação.
Manuel usou de toda a sua influência para se sentarem na mesa que se encontrava mais à fresca na esplanada cheia de gente animada. A conhecida convalescença de Teresa foi o suficiente para o dono do café conseguir reorganizar os lugares e depressa se instalaram num canto sossegado, sendo prontamente atendidos com toda a simpatia alentejana. Deliciavam-se com petiscos caseiros e pão feito no forno de manhã cedo, quando Francisco saiu de dentro do café, estranhamente sorridente e acenou ao casal, que ficou surpreendido com aquela simpatia pouco habitual do toureiro.
- Boa tarde! Bom almoço! – saudou-os Francisco, ignorando que Manuel o olhava de esguelha.
- Boa tarde! – Respondeu Teresa, receando que este mencionasse o episódio dos pés magoados.
Manuel mantinha-se calado, sem baixar a guarda, aquilo só podia ser a gozar, pensava, avaliando o comportamento inusitado do ex-amigo.
- Então até daqui a um bocado! Tenho de ir andando, preciso de me ir arranjar para a tourada. Até! – acenou a Teresa, sorrindo-lhe, e caminhando calmamente em direção à arena onde já havia bastante trabalho a acontecer.
- O tipo deve ter fumado alguma coisa, - rosnou Manuel, concentrando-se novamente no almoço – só pode!
- Coitado, não sejas tão desconfiado. Eu acho que ele até nem é assim tão má pessoa. – confessou Teresa, arrependendo-se logo de seguida, quando Manuel a olhou desconfiado, de sobrolho carregado.
- Ele ri-se todo para ti, todo simpático, tu achas que ele até é boa pessoa… parece-me que não te posso deixar vê-lo em ação logo, as moças cá da terra babam-se todas quando ele está a tourear montado no cavalo. – gozou – isto está claro, porque eu não toureio em público, porque se o fizesse, querida, estavas em maus lençóis, eram às centenas a pedirem-me namoro.
- Não estou nada preocupada, também tenho a minha cota de admiradores, basta tornar a vestir saia enquanto pedalo pela aldeia e vais vê-los aqui na esplanada todos à espera de me ver passar. – provocou-o, piscando o olho.
- Tu sabias que os homens aqui do café fazem isso mesmo quando sabem que tu vais e vens do trabalho? Estão todos à espera que tornes a vestir aquela saia do primeiro dia. – brincou, sorrindo orgulhoso porque podia ver aquelas pernas quando quisesse.
- Vocês acham sempre que as mulheres são parvinhas… É claro que sei, por isso nunca mais a vesti. E como dizia a minha avó, “Uma Senhora não tem ouvidos!”, logo, a gente finge que não percebe e segue em frente.
- Acho muito bem que não uses mais essas roupas esvoaçantes. Gostei muito da primeira vez que te vi as cuecas, mas agora chega de exibicionismo. – disse mantendo-se sério o suficiente  até Teresa o ameaçar de que trocaria de roupa naquele momento e assistiria à tourada semi-nua se ele continuasse com machismos. Manuel desistiu e resignou-se à sua condição de namorado obediente.


Sofia manteve-se estrategicamente submissa durante todo o almoço com a sua nova “família”, falando apenas o essencial, fingindo-se tímida e recatada. Sabia bem que a sua condição não deveria ser esclarecida na primeira pessoa e deixou que Maria dos Prazeres se encarregasse de espalhar o segredo de que trazia no ventre um legítimo descendente de Manuel da Silva. No final da refeição todas as mulheres a olhavam com estima e compaixão, dando-lhe palmadinhas no ombro e olhares carinhosos. Nada como uma boa donzela desvirtuada e abandonada, para quebrar os corações mais céticos.
António não disfarçava o seu embaraço com a situação, insistindo em ignorá-la, enquanto olhava duramente a mulher, criticando em silêncio aquela apresentação informal de Sofia ao clã familiar. Não seria fácil fazê-lo descer do pedestal, concluía, evitando o contacto visual com o velho alentejano teimoso. Mas em compensação já tinha meia dúzia de convites para o lanche na próxima semana, a curiosidade feminina ganhava aos pontos numa situação daquelas, e todas as mulheres queriam pormenores do namoro clandestino de Coimbra. Saiu de braço dado com a futura sogra, sentindo-se triunfante e cada vez mais certa de que acabando com a ameaça principal, uma tal de Teresa, que descobriu ser a nova médica da terra, nada mais evitaria o seu casamento com Manuel. Tinha um verdadeiro exército da moral e bons costumes pronto a ajudá-la, velhas alentejanas ciosas do bom nome da família.


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(imagem, internet)

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