quinta-feira, 2 de julho de 2020

"Safara" - Capítulo 17




       - Vieste fazer-me companhia ou ficar a brincar com telemóvel o tempo todo? – resmungou Francisco que detestava aparelhómetros quase tanto como as conversas da dona Miquelina.
- Hum? Desculpa, não tive nenhuma resposta da Teresa hoje, estava preocupado. Já lhe liguei, mas ela não podia falar no momento. – lamentou-se, pousando o telefone – Mas diz lá, então a dona Miquelina? Conversaram muito hoje durante o dia? – gozou.
- Bolas, o teu pai quer castigar-me, só pode. A velha é uma chata de primeira! Olha que não se calou um segundo desde que chegou. Só quando foi arrumar o quarto é que pude descansar a cabeça, mas mesmo assim vinha espreitar-me de dois em dois minutos para ver se estava tudo bem… É pior que uma lapa!
- Tem paciência. Qualquer dia já estás totalmente recuperado e depois regressas à tua vida solitária.
- Não sei como é que há homens que gostam de estar casados… que inferno! As mulheres têm demasiadas opiniões sobre tudo, estão sempre a martelar no mesmo horas a fio e pior, querem saber a nossa opinião a todo o custo. – reclamou, sorrindo automaticamente ao provar a açorda de bacalhau que a dona Miquelina lhe deixara para o jantar.
- Mas fazem uma bela açordinha! – brincou Manuel, divertido com a reação do amigo que atacava o prato. – Para além de que há outras coisas, Francisco… - continuou – para além da açorda… Não sei se já ouviste falar, mas o sexo feminino tem outras qualidades que fazem valer a pena a tagarelice. 
- Pois sim, eu se precisar disso cá me arranjo, nunca precisei de pôr aliança em nenhuma mulher para me tratar. – disse orgulhoso. – Ao menos não fico aí todo angustiado a olhar para o telefone com cara de parvo como tu, à espera que a minha mulher me telefone. No dia em que me vires a fazer essas figuras interna-me! 
- Olha que eu cumpro! – respondeu Manuel à provocação. – E a nossa festa? Já pensaste no que vais vestir para impressionar as tuas fãs?
- Não estou muito convencido com essa festa em tua casa… a tua mãe deve ter ficado piúrsa. – comentou preocupado, ao mesmo tempo que engolia sofregamente garfadas de açorda.
- Não te preocupes com a velha Maria, o meu pai sabe lidar com ela. Eu achei uma excelente ideia. Já se mandaram convites para a malta toda de Moura, Beja, vêm os toureiros e os forcados dessa zona toda. A coisa está a ganhar fama, até recebi um telefonema do jornal de Évora a perguntar se podiam vir tirar umas fotos ao pessoal da afición todo junto! – disse entusiasmado.
- Ui, vais ter de abrir os pipos todos da adega. Esses meninos gostam de encharcar bem! Só espero já não precisar de tomar nenhum destes remédios para poder beber também. Ao menos no meu dia de anos! – Francisco temia não conseguir lidar bem com a presença de Rita, se esta comparecesse, sem ser auxiliado pela bebida. – E a tua nova amiga, a Rita? Também a convidaste? – perguntou fingindo pouco interesse.
- Sim, claro. E ela também é tua amiga. – recriminou Manuel - Já é mais íntima tua que minha, não foi a mim que ela deu banhinho de esponja. – relembrou-o dos tratamentos no hospital.
- Amiga… profissional de saúde, ponto. Esteve lá o tempo todo por interesse, quando viu que eu tinha vida para além dela e dos sonhos malucos que andou a fantasiar, abandonou-me naquela espelunca. 
- Bem, não foi bem isso que aconteceu, mas de facto ela não devia ter esperanças com um gajo como tu. E a pobre também não merece. – ironizou.
- Se ela lá aparecer na festa, o que eu duvido, e espero que não aconteça, só não quero que me olhe com cara de apaixonada carente. Era só o que me faltava. 
- És impossível… - comentou Manuel divertido. Ainda não se esquecera do olhar de desapontamento do amigo naquela manhã no hospital quando constatara que Rita não iria a correr ajudá-lo a regressar a casa. – mas se queres continuar a enganar-te, tudo bem. Isso é lá contigo.
O telefone de Manuel tocou e este sobressaltou-se, levantando-se e afastando-se para ter mais privacidade, sob o olhar de censura de Francisco.
- Estou? Teresa, então, o que tens andado a fazer? – perguntou de forma um pouco rude. – Só agora é que tiveste dois minutos para ligar?
- Olá, desculpa, tenho andado a reboque da Rita nas compras… - lamentou-se exausta da tarde stressante de shopping e reencontros.
- Hum… - Manuel não lidava bem com aquela primeira experiência de não saber onde e com quem Teresa andava durante um dia inteiro, caminhando à toa no corredor da casa de Francisco. – E então? Lisboa está na mesma? A tua mãe, ficou contente com a visita?
- Sim, tudo na mesma… A minha mãe está muito feliz, sabes, ela vai voltar para Safara connosco para passar uns dias. – confessou um pouco a medo. A altura das revelações aproximava-se, dali a poucos dias as vidas de todos seriam abaladas e poderiam não voltar a ser o mesmo.
- Ai sim? – não sabia bem o que pensar, parecia-lhe que Teresa se sentia ansiosa com essa visita. – E tu estás contente? Pareces estranha.
- Claro que estou. É só que vamos ter de nos separar uns dias, ela vai ficar comigo lá em casa e talvez seja melhor não dormires lá. 
- Ok, não há problema. – engoliu em seco, algo naquela história parecia incomodá-la mais do que ela confessava. – Não vou voltar para a Herdade – disse pensando alto – talvez peça ao Francisco para ficar com ele durante esses dias.
- Nem penses! – berrou o amigo da cozinha – Já cá tenho uma penetra durante o dia, agora mais um hóspede durante a noite!? 
- O Francisco diz que não há problema! – falou em voz colocada – Os amigos são para as ocasiões e posso ficar o tempo que precisar!
- Ainda bem. Fico muito mais descansada. Estava com medo que fosses para ao pé da Sofia… - confessou – Agora tenho de ir, vou jantar com a Rita e um antigo amigo que reencontrei no shopping hoje de tarde… ele ficou muito entusiasmado com ela. Como não consegui demovê-la, tenho de ir fazer de vela, para garantir que ele não lhe rouba a virtude. – brincou, omitindo o facto do amigo ser o ex-namorado Rui.
- Ok, bom jantar. E vê lá se ela não se perde de amores aí por Lisboa, não podemos perder a única enfermeira das redondezas. – brincou.
- Hum… diz-me lá uma coisa, o Francisco falou nela? É que se ele estiver interessado posso boicotar isto tudo.
- Sim, disse que ela é uma falsa não sei das quantas, por não ter ido hoje ajudá-lo a deixar o hospital. – gracejou.
- Ok, então ele está interessado. Conheço o género desdenha quer comprar. Vou lixar as intenções ao Rui. – Teresa apercebeu-se no exato momento em que disse o nome do ex-namorado que tinha metido o pé na poça. Manuel não era compreensivo nem moderno o suficiente para aceitar que ela jantasse com ele.
- Rui, ham? Muito bem. – Manuel sentia-se a ferver mas disfarçou os seus ciúmes passionais o melhor que conseguiu. – Bem, divirtam-se, eu vou voltar para a minha açorda. Até amanhã. 
- Até amanhã. – Teresa sentia-se a desmaiar. Sabia que o tinha decepcionado e não queria perturbá-lo sem motivos. – Manuel, não te preocupes, ok? Amanhã já aí estou ao final do dia. Tenho muitas saudades.
- Ok, tchau. – desligou o telefone com medo de dizer algo de que se arrependesse. Sentia-se colérico o suficiente para pegar na pickup e ir até Lisboa partir a cara ao betinho que queria jantar com Teresa com a desculpa de estar interessado em Rita. Só esperava que Teresa não fosse ingénua e soubesse mantê-lo na linha durante o jantar.
Voltou para a cozinha bufando ódio e soltando palavrões, procurou uma garrafa de whisky e serviu-se generosamente, sob o olhar atento de Francisco.
- Sim, estou a ver que as mulheres têm muitas qualidades extra que vêm com o pacote “açorda”! – gozou o toureiro presunçosamente – Tornam-nos nuns alcoólicos em menos de um ano.
- Vai à merda. – insultou-o bebendo o copo num gole só e deixando-se cair na cadeira.


- Eu sabia que isto ia dar asneira… - lamentou-se Teresa entrando no restaurante seguida por Rita que saltitava de entusiasmo.
- Ham? – a enfermeira procurava por Rui nas mesas cheias de gente sofisticada e alegre. – Asneira porquê? Deixa de ser mal humorada e ajuda-me. Tenho de esquecer o Francisco e acho que estou a conseguir! – disse sorrindo de orelha a orelha.
- Rita! – Teresa segurou-a nos braços para lhe captar a atenção – Ouve bem, o Rui é um parvalhão ainda pior que o Francisco, com a agravante de ser um conhecido papa enfermeiras. Se querias fugir de uma relação em que te sentiste usada, este não é o melhor caminho. 
- Teresa, tem calma. Eu achei-o giro e simpático, não quero casar já com ele! Primeiro vamos jantar.  – brincou Rita descontraída. Compreendia a preocupação da amiga, mas também não se considerava assim tão ingénua ao ponto de não saber se comportar numa situação daquelas. Para além de que o médico era bastante bonito e interessante.
- Tu é que sabes. Depois não te queixes. – Teresa deitou as mãos ao ar em desistência. Tentaria descontrair e aproveitar estarem num dos seus locais preferidos de Lisboa. Adorava a comida daquele restaurante.
Rui chegou minutos depois, desfilando glamour e sofisticação, enquanto distribuía acenos aos muitos conhecidos que se encontravam no restaurante. Aquele era um dos seus locais de culto, onde se sentia bastante confortável consigo mesmo, bajulado por todos os empregados e amigos de longa data. Escolhera propositadamente o restaurante, certo de que Rita ficaria impressionada com a sua presença, e com um pouco de sorte, Teresa compreenderia que nunca o deveria ter abandonado por um consultório bafiento do Alentejo. Ainda tinha o seu orgulho ferido por sarar e a pequena enfermeira seria uma ótima forma de se vingar da ex-namorada.
- Muito boa noite meninas. – ronronou, beijando Teresa na cara e sorrindo descaradamente a Rita, que ruborizou emocionada com os modos elegantes do médico.
- Espero que me perdoem o atraso. Não conseguia estacionar o carro aqui perto. – sentou-se familiarmente perto de Rita. – Já escolheram? Rita, se não fizeste o teu pedido, deixa-me sugerir-te uns pratos maravilhosos que eles aqui fazem! – levantou o braço chamando um empregado de mesa, cheio de si.
- Eu já sei o que quero. – resmungou Teresa.
- O que me sugere Rui? – perguntou Rita enfeitiçada pelo olhar dengoso do médico.
- Por favor, trata-me por tu. – beijou-lhe a mão, olhando-a profundamente e sentindo-a tremer ligeiramente ao seu toque, o que o deixou divertido.
Teresa desviou o olhar da cena romântica, não queria que Rita se zangasse com ela e não iria interferir. A amiga era maior e vacinada e no dia seguinte iriam voltar a Safara. Rui teria o seu momento de glória durante o jantar, depois as duas voltariam para o Alentejo e o médico passaria à história. Pediu uma extravagância do menu, aproveitaria a generosidade de Rui ao máximo, afinal não fazia tenções de pagar nada naquela noite e ele não se ficaria a rir quando chegasse a conta.
Rita e o médico conversaram a dois todo o jantar, enquanto Teresa explorava as redes sociais aproveitando a rede wifi grátis do restaurante, tentando passar o tempo. Quando lhe pareceu ser tempo suficiente depois da sobremesa e do café, Teresa sugeriu que regressassem a casa, queria ainda encontrar a mãe acordada para lhe fazer companhia no chá noturno antes de dormir. O casal improvável resignou-se à teimosia da médica e despediram-se, trocando telefones. A noite do frete estava terminada e Teresa teria o resto da noite para destruir a imagem positiva que Rui transmitira a Rita. A enfermeira caíra na teia de elogios e charme do médico, tal como ela previra. 


- Mas afinal, o que foi que a Teresa fez de tão grave para ficares de trombas? – Francisco insistia para que Manuel lhe contasse pormenores do que estava a acontecer em Lisboa com as duas amigas.
- Nada! – resmungou Manuel. – Foi jantar com o ex-namorado, um tal de Rui, que também é médico. Achas pouco? – bufou furioso com a persistência de Francisco naquele assunto.
- Ui… isso parece mau. – confessou preocupado – Mas que lata, e disse-te assim, sem problemas?
- Sim, quer dizer, só disse o nome do gajo, eu é que sei quem ele é, o Rui, já tínhamos conversado sobre ele. É um idiota chapado com a mania que é engatatão. Um lisboeta mete nojo. 
- E tu deixas? – Francisco estendeu um cigarro a Manuel, sabia que o amigo não tinha aquele vício, mas o momento era grave. Seria necessário usar de todos os calmantes naturais possíveis.
- Como assim, deixo? Ela não é minha filha! – bufou – Para além de que ela foi servir de vela para a Rita, que está toda entusiasmada com o nojento. Pelo menos foi a explicação para o encontro. Só que eu sei que o gajo deve ter outras intenções.
- Hum… bem, essa enfermeira está-me a sair melhor que a encomenda… - Francisco sentiu um nó no estômago e uma pontada de ciúmes com aquela revelação. – As que se fazem de santinhas e pouco experientes são as piores… comigo não podia avançar, com o senhor doutor de Lisboa já está toda maluca! – sentia a raiva a crescer no peito. – Quando chegar já traz a escola toda!
- Espero que ele não lhes toque, não me está a apetecer nada passar os próximos 25 anos na cadeia! – apagou o cigarro no prato, levantando-se para ocupar a cabeça com a arrumação da cozinha.
Francisco lamentou ainda precisar dos analgésicos para dormir, a conversa provocara-lhe uma dor de cabeça e mau estar que só uns whiskys poderiam curar. Qual mulher qual quê… dizia a si mesmo, ele queria era estar recuperado e voltar a montar, tinha de regressar rapidamente ao trabalho e ocupar a mente, senão dava em doido.


Ainda Fernanda não se tinha levantado e Rita já perdera o sono, andando de um lado para o outro da casa, nervosa, sem saber o que dizer a Teresa. Rui tinha prolongado a conversa entre dois pela noite dentro, através de sms, e dera-lhe a volta com facilidade, fazendo-a aceitar um convite para irem à praia bem cedo. Com receio de que a amiga ficasse chateada, Rita decidiu jogar pelo seguro, e à hora marcada deixou um bilhete e saiu sorrateiramente sem fazer barulho, escapando-se como uma adolescente da casa dos pais. Rui já se encontrava à sua espera no carro, sorridente e satisfeito, o perfeito cavalheiro, saindo cerimoniosamente e abrindo-lhe a porta do automóvel, gesto que a enfermeira só tinha visto nos filmes. Tudo nele parecia diferente e sofisticado, a roupa, o penteado, os modos elegantes e educados… Rita não compreendia porque Teresa o tinha deixado para ir às cegas para o Alentejo profundo.
A praia ainda estava deserta, mas o calor já começava a apertar, com um sol forte num céu perfeito e límpido. Rui desafiou-a para um mergulho matinal e Rita seguiu-a obediente. O médico tinha uma espécie de feitiço, concluía, era impossível resistir aos seus olhos meigos e verdes.
- Nunca pensei que o mar aqui fosse tão quentinho! – disse Rita tentando ocultar a sensação de desconforto que sentira desde que entrara na água. O médico mostrava-se cada vez mais misterioso e calado, cercando-a como uma cobra de água.
- Sim, aqui é a minha zona preferida. Mas a companhia também ajuda. – respondeu com malícia. – És a primeira rapariga que aqui trago, sabias? – perguntou-lhe, tocando-lhe no braço sugestivamente.
- Ai sim?! – Rita sentia-se cada vez mais incomodada com os olhares profundos de um homem que mal conhecia, numa praia deserta. A ideia de se encontrar ali sozinha com ele começava a causar-lhe arrepios na espinha, para onde quer que olhasse não via uma alma a quem pudesse pedir socorro, se ele tivesse más intenções. – Estou a ficar com frio, é melhor sair… - disse em desespero de causa, tentando livrar-se daquela aproximação forçada.
- Não me digas que estás com medo de mim?... – gozou, apertando-a contra si.
- Medo?... Não, que disparate. – a sensação de ser agarrada era muito diferente do que tinha sentido com Francisco, as mãos do médico eram cada vez mais bruscas e desconfortáveis.
Rui beijou-a, prolongando o momento até ao limite do que ela conseguiu aguentar. A sensação não era nada do que tinha experimentado com Francisco. Aquele era um beijo duro, mecânico e desconfortável. Repeliu-o bruscamente, dando-lhe um encontrão que o fez desequilibrar e cair para trás e saiu apressadamente da água, correndo até à toalha com a intenção de agarrar nas suas coisas e fugir.
- Desculpa, Rita, não te queria ofender. – disse-lhe fingindo-se arrependido.
- Não tinhas o direito de fazer aquilo! – berrou-lhe a enfermeira de lágrimas nos olhos. Teresa tinha razão, ele era pior que o toureiro, muito pior, principalmente porque ela não estava apaixonada por ele.
- Por favor, não te zangues comigo, eu prometo que não torno a fazê-lo. – segurou-lhe com gentileza nas mãos, procurando-lhe o olhar, na tentativa de a acalmar.
- Desculpa, deves pensar que sou uma parva… não estava a contar… não estou habituada a que as coisas sejam assim tão rápidas. – explicou, sentindo-se envergonhada, tanto com o beijo forçado, como com a constatação de que só com Francisco é que sentia coisas quando era agarrada.
- Perdoa-me, vamos esquecer isto tudo. Ok? Fazemos as pazes? – utilizou o seu melhor sorriso, fazendo-lhe uma festa na cara.
- Ok… Podemos ir embora? – Não queria estar nem mais um minuto naquele deserto com ele, precisava de se enfiar no chuveiro e chorar. Francisco entranhara-se-lhe na pele e sentia-se condenada a nunca mais conseguir beijar outro homem, mesmo que esse fosse lindo, bem vestido, romântico, educado, a cheirar a perfumes caros… Mesmo isso tudo, não se comparava ao cheiro a cavalos e bestas que a deixara louca quando o toureiro a agarrara. 
- Já? – sentia-se confuso – mas ainda agora chegámos! Vamos pelo menos aproveitar um pouco do sol. Ficamos um bocado, damos mais um mergulho e depois eu levo-te, ok? Também tenho turno depois de almoço, não posso ficar até tarde.
- Tudo bem, - disse resignada – ficamos um pouco para me secar. – Estendeu a toalha, deitou-se e virou a cara para o lado contrário para ocultar as lágrimas que saíam sem querer. Precisava de se recompor antes de voltar para casa de Teresa, não queria ter de lhe dar razão e explicar tudo o que acontecera.


Manuel mal dormiu incomodado com sonhos estranhos. Adormecera tarde, com a cabeça zonza dos whiskys e cigarros a que não estava habituado e aproveitou as insónias para arrumar a mala com as suas roupas, deprimido por se sentir a dizer adeus à sua vida em conjunto com Teresa. Aquela pequena casa já tinha o seu cheiro e havia tralhas suas espalhadas por todos os cantos, um livro, sapatos, chinelos, champô, todos aqueles objetos que o identificavam como morador habitual. Estava a sair de casa, da sua casa, onde se sentia completo e confortável. Dizia constantemente a si mesmo que aquela saída seria temporária, mas deu por si invariavelmente a lamentar o acontecimento, agarrando ocasionalmente uma peça ou outra de Teresa, olhando-as demoradamente, como se se despedisse de cada uma delas. Obrigou-se a parar com aquela tortura, saindo cedo de casa e decidiu ir até à Herdade desanuviar a cabeça e montar antes do sol nascer, como nos velhos tempos de adolescência. 
No monte apenas os animais davam sinais de vida, os funcionários gozavam da sua folga de domingo e António, Maria e Sofia ainda dormiam. Manuel aparelhou o seu cavalo preferido e saiu sem destino, cavalgando como um louco. Não conseguia perceber porque se sentia quase desesperado, Francisco tinha alguma razão quando dizia que as mulheres desgraçavam a vida dos homens. Desde que conhecera Teresa que não conseguia pensar nele próprio sozinho, nem imaginar-se sem ela. Uma dependência que nunca imaginara sentir, que o completava, mas que por outro lado o angustiava ao ponto de temer a vida e o futuro diferentes do que vivera naquele curto espaço de tempo. E se nunca mais voltasse a arrumar as suas roupas na cómoda de Teresa? O cavalo deu um pinote inesperado, sacudindo-o com força e trazendo-o de novo para a realidade, como se soubesse que ele entrara numa neurose de preocupações e angústias das quais deveria libertar-se. Aquele era um momento para viver intensamente, concentrado, acelerou o ritmo e deixou-se ir embalado pelo animal possante. Precisava de libertar a tensão do corpo e da mente, aquele era o seu segundo método favorito. O primeiro trazia-o de volta à espiral de loucura e a Teresa, por isso ficava posto de parte, pelo menos até ao final do dia.

- O teu filho não anda bem. – sentenciou António, com um tom que pareceu de censura a Maria.
- Não anda ele nem ninguém ultimamente! Estou cheia de preocupações e problemas e tu queres dar festas à grande e à francesa! – ralhou Maria, numa última tentativa de discutir a celebração dupla de aniversários de Manuel e Francisco.
- Caramba mulher! – berrou António batendo com o punho na mesa do pequeno-almoço – Mas será que vais continuar a insistir nessa tecla? Estou a dizer-te que o Teu Filho Manuel não está bem, há qualquer coisa de estranho a acontecer com o rapaz, veio cavalgar de madrugada, saiu com o cavalo e ainda não voltou, e tu embirras com a maldita festa? – gritou já desvairado.
- E que mal tem o rapaz vir montar de manhã? E se achas que anda com problemas, que direi eu!, que tenho aqui em casa uma mulher que ele engravidou e que apenas desejava ser aceite e fazer o que está certo. Uma mulher que tem um neto teu na barriga e que ama o teu filho. Mas não!!... – Maria gesticulava pela cozinha, desabafando pela primeira vez de forma sonora as suas preocupações – O menino só faz o que lhe apetece! Enquanto esteve em Coimbra anos a fio, não havia dia nenhum em que não me azucrinasses a cabeça a reclamar com a estroinice dele, agora temos uma mãe solteira cá em casa à espera do casamento e tu apoia-lo a fugir à sua obrigação moral! Ele percebeu que tu não gostas da moça e faz birra e sai de casa para viver com outra. – berrou em falsete.
- Fala baixo Maria, a Sofia não tem de ouvir as nossas discussões. – de facto António detestava a intrusão familiar daquela hóspede. – E o teu filho não está a fazer birra. Ele não gosta dela, e eu compreendo-o, também não me agrada a mulher, e nem sequer temos a certeza de que o filho é dele! – argumentou friamente.
- É mesmo típico dos homens! – bufou Maria chocada – Agora não sabe se o filho é dele… É ele que não sabe, ou tu é que achas que as mulheres são todas umas mentirosas? És um machista António. Pior que o teu pai, que toda a vida tratou mal a tua mãe, mas ao menos esse fazia-o porque casou forçado. Qual é a tua desculpa? - Maria trazia antigos fantasmas para a conversa, e deixou a pergunta no ar, sem certeza de que queria ouvir a resposta, e bastante incomodada por ter levantado assuntos que também a assombravam.
- Precisamente! – respondeu calmamente António que fulminou a mulher com o olhar magoado. – Ele casou forçado. Tu queres fazer o mesmo ao teu filho, eu não o vou transformar num Joaquim número dois, nunca o vou permitir. – Levantou-se da mesa meio cambaleante das emoções da discussão, com a adrenalina a correr no corpo. Machista? Perguntava ela… Ele só não queria que o filho sofresse aquilo que ele vira o pai sofrer.
Sofia ouviu com interesse toda a discussão. Maria tinha absorvido corretamente os argumentos que ela lhe andava a impingir subtilmente há alguns dias. Afinal a mulher também sabia ouvir, era tão fácil manipular pessoas humildes… Riu-se para dentro e decidiu ir investigar o que andava Manuel a fazer e o motivo da preocupação de António. Talvez o jogo começasse finalmente a virar para o seu lado! Dirigiu-se à pickup e vasculhou a carrinha como um inspetor forense, todos os pormenores poderiam ser a resposta para aquele comportamento estranho do ex-namorado, quando encontrou a mala de viagem atafulhada de roupas e artigos pessoais. Sofia rejubilou de satisfação, Manuel saíra de casa da tipa, esse era um facto, restava saber se tinham terminado tudo, como e porquê! Arrumou tudo novamente, certificando-se de que nada parecesse mexido e regressou sorrateiramente a casa. De repente apetecia-lhe meia dúzia de fatias de Pão de Ló e café fresquinho. A vitória abria-lhe sempre o apetite!

(direitos reservados, AFSR)
(imagem, internet)

Sem comentários:

Enviar um comentário