quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

"A Mala Vermelha" - Cap 24 (3ª parte)




- Estou? João?, posso saber onde andas?!
- Olá Isabel, boa tarde, tudo bem? - ironizou, detestava aquela falta de educação da namorada. - Estou quase a chegar a casa. Já falamos. - desligou sem cerimónias, aborrecido. Isabel interrompia sempre os seus momentos de transe e sonho acordado, enquanto ouvia algumas músicas no carro, parecia que fazia de propósito, só para chatear. Ultimamente deixava-se perder nas suas fantasias, entusiasmado com a satisfação que retirava do trabalho no jardim. Só se sentia mais desanimado quando era inevitável ir dormir ao apartamento. Tinha prometido ao César que jantariam com ele e com a Lisa, e já estava ligeiramente atrasado, perdera imenso tempo a organizar os produtos que levaria no dia seguinte para a tal feira que o vizinho sugerira. Ainda não tinha decidido se ia contar essa sua atividade comercial ao jantar, talvez fosse melhor guardar para si mesmo, a namorada podia estragar-lhe o sábado com uma birra qualquer. Mas de bom agrado cancelaria todos os planos da noite para dormir na cama dela e continuar a fingir que aquela era a sua casa e que a Marta voltaria de uma breve ausência para visitar familiares. Ele não podia deixar o jardim abandonado, então ficara, mas já estava cheio de saudades, e a casa começava a ficar ligeiramente caótica sem ela, pó nas estantes, roupa para lavar, tinha de ganhar coragem e arrumar tudo antes que ela voltasse. Estacionou o carro e suspirou, desligando o motor do veículo ao mesmo tempo que parava com o sonho agradável. - Vamos lá, Dr João.

- Sim, claro, fico a aguardar então, obrigado Santos. - desligou o telefonema sob o olhar curioso da filha e acenou-lhe que se aproximasse. - Senta-te Isabel. Desculpa só ter podido receber-te a esta hora, mas valores mais altos de levantam.
- Boa tarde pai, o que se passa? A Adelaide disse-me que queria falar comigo. - obedeceu à ordem e colocou a sua melhor pose.
- Sabes quem era ao telefone? - lançou, enquanto endireitava papéis que estavam na sua frente espalhados na secretária, sem a olhar diretamente.
- Não pai, quem era? - se não a olhava era porque a ia informar de algo que não gostaria de ouvir. Já começava a ficar farta daquele paternalismo do século passado e da postura obediente que tinha de manter. Como sentia saudades da sua casa em Coimbra, quando era obrigada a conviver com o Sr Dr Fontes Pereira e Melo.
- O Comandante Alberto Santos, na PSP de Coimbra. Um antigo conhecido meu do tempo da faculdade. – esclareceu – Ele vai amanhã mesmo ver o que se passa lá no sítio onde moras quando estás em Coimbra. Pelos vistos anda lá um sujeito a apropriar-se da tua casa, usando-a como se fosse dele. Recebi um telefonema do Sr Joaquim preocupado com a situação. - enumerou com autoridade, como se o assunto estivesse arrumado.
- Um sujeito? Mas o Sr Joaquim sabe quem é? Como se chama? - por momentos temeu que o Janota lá andasse a arranjar o jardim e que fosse prejudicado com a impetuosidade do pai.
- João, mas certamente é um nome falso. - rematou.
- Meu Deus... - enlouqueceu de vez, pensou, sentindo as bochechas a aquecer e um remoinho a crescer no estômago. - Mas o que disse exatamente o Sr Joaquim? Como assim, a apropriar-se da minha casa? - gaguejou, a tentar disfarçar o mais possível o seu choque.
- Anda para lá de enxada na mão, de volta do jardim, mas o mais grave é que ele usa a tua casa. Como entrou, não faço ideia, mas o Sr Joaquim garante que ele dorme lá de vez em quando. Deve ser um daqueles parasitas hippies, sem respeito pela propriedade alheia. Mas o Alberto já está ao corrente de tudo, não te preocupes, amanhã cedo acaba a ousadia do tipo. Depois tens de lá ir formalizar a queixa, e ver os prejuízos, mas para já vamos ver se é apanhado em flagrante. - explicou, olhando-a a terminar simbolicamente a conversa.
- Ham... pois, claro, aguardemos então. Obrigada – levantou-se meia dormente e saiu do escritório, sem saber o que fazer. O seu instinto dizia-lhe que telefonasse ao João e esclarecesse aquilo tudo, mas a história parecia-lhe tão excêntrica que lhe custava acreditar que fosse ele a andar de enxada na mão. Podia ser uma grande coincidência, e o maluco ter inventado o nome de João para calar o Sr Joaquim. Faria uma figura de idiota se lhe ligasse e ele se risse daquela sugestão apalermada de que andava a brincar aos jardineiros. Ele nem sequer sabia distinguir uma erva daninha de uma flor... Caminhou sem perceber até ao quarto, fechou a porta e pegou no telemóvel desligado que mantinha na gaveta da mesa de cabeceira. Ligou-o e uma série de notificações sonoras de tentativas de contacto e mensagens escritas caíam sem parar. Janota encabeçava a lista dos mais persistentes, para sua angústia e tinha de admitir, desilusão. Devia-lhe um telefonema, mas João desistira dela, e era só nisso que conseguia pensar.

(direitos reservados, afsr)
(imagem, internet)

Sem comentários:

Enviar um comentário