quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

"Margarida, o Bom e o Mau Gigante" - Cap 3 (2ª parte)




De volta ao escritório de Margarida, Nuno retirou o seu portátil da mochila Camel coçada mas cheia de estilo e ela não pôde deixar de fazer uma comparação entre ele e o objeto, pareciam-lhe bastante idênticos, não sabia explicar bem porquê. Nuno adotou uma postura diferente, calada e concentrada, como se estivesse a preparar-se para um exame na faculdade.
Margarida observava curiosa aqueles passos metódicos, na expectativa de começar a "ler" a trama policial onde era ela quem escreveria o capítulo final.
- Quero que fiques ciente de que nada do que te disse até agora foi mentira - iniciou ele em forma de introdução - apenas tive que omitir algumas informações que não podia revelar sem estar absolutamente certo de que irias trabalhar comigo. Os crimes ocorreram em 1985 e 2001. São quatro homicídios, mas tenho quase a certeza de que estão relacionados, e isso é o que pretendo descobrir, com a tua ajuda, claro. - Margarida começou a anotar no seu caderno os tópicos do que ia ouvindo e não interrompeu Nuno para não quebrar o seu raciocínio. - Diz respeito à minha família, e por esse motivo, fui automaticamente afastado de toda a investigação, o que significa que o que estamos aqui hoje a iniciar é secreto. O nosso segredo. - Margarida levantou o olhar do caderno e somando dois mais três surgiram-lhe algumas dúvidas.
- Desculpa interromper, mas se isto que estamos a fazer é segredo, todas essas provas e material que aí trazes na mochila são roubados? Como pode a Dra. Ana ter permitido esta nossa parceria, ela paga-me para ler livros, não para investigar crimes, que pelos vistos nem eu nem tu temos autoridade para fazer...
Nuno já esperava ter de dar todas aquelas satisfações a Margarida, e naturalmente que o iria fazer se queria o total empenho dela na investigação clandestina.
- A Dra Ana é minha cunhada e tia da Sofia, é casada com o meu irmão mais velho, Jorge. Os meus pais, Afonso e Manuela e os pais de Sofia, Sara e Paulo, minha irmã e cunhado, foram as vítimas dos crimes… - uma sombra negra passou pelo olhar do polícia, que continuou a explicação - A Ana é que sugeriu o teu nome para me ajudar na investigação. - parecia embaraçado, mas continuou firme a argumentação - Margarida, ela conhece-te muito bem, e como tem testemunhado o meu sofrimento e angústia ao longo destes anos, decidiu falar-me de ti e sugeriu dispensar-te do teu trabalho para te dedicares à minha... obsessão particular... - parou o discurso momentaneamente, e ficou apreensivo com a reação que Margarida teria a todas aquelas revelações - A princípio não queria que mais ninguém se envolvesse neste assunto, mas a Ana começou a falar-me de ti, da tua personalidade, defeitos, qualidades, e conseguiu convencer-me de que serias a pessoa perfeita para completar as minhas características de investigador. - concluiu.
Margarida não sabia bem o que pensar, anotava tudo no caderno, "perfeita para o completar", "minhas qualidades, defeitos, personalidade", "Ana é cunhada de Nuno e tia de Sofia", “sugeriu o meu nome” e no final, pousou o lápis de carvão ao lado dos seus apontamentos, endireitando-o nervosamente antes de falar.
- Se compreendi bem, tu conheces-me ao ponto de achares que vou descobrir o que aconteceu com os teus pais, e os pais de Sofia, certo?
- Sim... penso que é isso. - respondeu ele sem certeza.
Margarida sentiu o estômago contorcer-se, e queria vomitar o pão de cereais e a meia de leite do pequeno almoço. Como poderia ela aceitar uma responsabilidade daquele tamanho, criando esperanças... O sofrimento que aquele assunto provocava no polícia era visível na mudança de brilho dos seus olhos, em toda a tensão que se acumulava nos músculos do pescoço e ombros, e na vibração que ela "sentia" vinda diretamente do seu coração. Aquele homem sentia dor física ao falar sobre os pais e a família, e queria que ela o curasse. Merda, pensou ela engolindo em seco. A chefe só podia querer castiga-la…
- Nuno, o que me estás a pedir não é simples, eu pensava que íamos brincar aos polícias e ladrões - e homem que é homem, mesmo numa situação séria daquelas, arquearia a sobrancelha e sorriria com malícia à expressão pouco feliz de Margarida, Nuno não era exceção - Ó bolas, podes parar com isso? Eu estou a falar a sério. É demasiado difícil para mim aceitar esta responsabilidade, estamos a falar dos teus pais, não de um desconhecido qualquer. - Margarida tentava a todo o custo sair daquela situação, o seu fracasso na resolução daqueles crimes seria letal para o polícia gigante, e esse pensamento desconcertava-a de um modo físico, provocando-lhe calafrios, suores nas mãos e cólicas, muitas cólicas.
Ele remexeu-se na cadeira ansioso e ripostou.
- Não posso aceitar um não como resposta, não agora. Desde que consegui marcar a entrevista contigo que recuperei a esperança de resolver isto tudo e enterrar de vez os meus pais e os meus tios, e de preferência, enterrar também quem os matou. Ontem diverti-me imenso, e não gostei da tua companhia só porque me ias ajudar no caso. - Nuno corou ligeiramente mas recuperou no segundo a seguir - És inteligente, com um sentido de humor espetacular e até agora não tentaste meter-te debaixo de mim, e acredita!, é a primeira vez que isto acontece com uma mulher! – disse com um ar fingidamente ofendido - Perfeita para uma colega de trabalho. - rematou.
Margarida tentou ignorar a insinuação dissimulada de que seria anormal, ou fufa, e decidiu não o esclarecer sobre o assunto, mantendo-se concentrada no tema principal da conversa.

- Hum... queres portanto que seja a tua palhaça pessoal, correto? Faço-te rir, divirto-te e ainda te ajudo a resolver o caso. Se é só isso que pretendes... Acho que vou aceitar. Mas fica ciente de que não há bónus nesta nossa parceria! - Margarida sorriu ao seu novo parceiro, mas interiormente temeu ter tomado a decisão errada. Tinha um daqueles pressentimentos fortes de angústia que lhe invadia o peito e a garganta, e isso raramente era um bom sinal. A cabeça dizia-lhe para o expulsar imediatamente da sala, o coração fazia-a acenar positivamente com a cabeça. Margarida foi traída pelo músculo vermelho e nervoso do seu peito.
Nuno relaxou ou músculos do tronco e da face ficando de novo animado, levantou-se e deu início a uma elaborada classificação de factos, datas e provas por ordem cronológica, que levaria o resto da manhã e princípio da tarde. Margarida engoliu a angústia o melhor que pôde e disponibilizou as suas qualidades de organização ajudando naquela tarefa administrativa. Quando terminaram, passava já bastante da hora do almoço e o ronco na barriga de Margarida fechou os trabalhos. Havia necessidades biológicas prementes e a fome era um dos instintos que ela ainda não dominava completamente. Saíram para comer deixando o escritório devidamente trancado e, ao chegarem à porta da empresa, Nuno ofereceu o braço a Margarida. Ela aceitou e caminharam juntos em direção ao café conversando sobre música, bandas favoritas, ficando assim o crime restrito às paredes da sala do escritório de Margarida. Ela tinha encontrado uma forma de arrancar dos ombros do gigante o peso das mortes dos seus familiares, trancando-os na sua sala e Nuno percebeu, aceitando essa nova regra de bom grado. A partir daí ele viveria mais leve durante algumas horas do dia.

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