João entrou em casa cabisbaixo e ainda
mais maldisposto do que antes. Arrastara-se até ao “Pírulas”,
na tentativa de desanuviar um pouco, mas a conversa com o segurança
do bar ainda o perturbou mais. Janota não tinha nascido em Castelo
Branco, mas por coincidência sabia quem era a família de Isabel,
toda a gente ligada à cidade em questão os conhecia, e as novidades
não eram animadoras, constatou João. O julgamento de Tiago, o
ex-marido de Isabel, tinha sido o maior escândalo de sempre naquela
cidade, comentado em todo o lado. O pai dela, então Diretor do
serviço de Medicina Legal do Hospital, estava em processo de
candidatura às eleições para a Câmara Municipal, e tinha sido
afastado do processo de recolha de provas periciais para a acusação,
ficando a chefiar o departamento um antigo colega de Tiago, diziam as
más línguas, que tratou de ajudar o amigo, sem sequer disfarçar.
Isabel tinha sido considerada “doida”, com um processo vazio de
factos, e histórias mirabolantes de crimes que nunca foram provados.
Acabou internada por ordem do juiz, por seis meses, aconselhado pelas
perícias psiquiátricas de um outro conhecido do ex-marido. Quando o
advogado dela conseguiu anular aquela crueldade, já o prazo passara
e Isabel havia voltado para casa. O pai dela, pressionado pelo
partido, que não tinha outra hipótese de candidato com
possibilidades de vencer a eleição, nunca intervira em todo o
processo. Ficara a ver de fora, e segundo alguns familiares de
Janota, fora o culpado de Isabel ter sido negligenciada em
julgamento, um traste, segundo a sua tia. Janota ouvira várias
conversas sobre o caso na altura, e recordava-se de ter ficado
chocado com o provincianismo que ainda se vivia em certos locais do
interior do país. Lamentou honestamente que Marta fosse Isabel,
disponibilizando-se para a ajudar, se algum dia fosse preciso, odiava
machistas, e se pudesse, mostraria ao tal Tiago qual era a sensação
de levar uns murros de alguém maior que ele.
Tentou
novamente ligar-lhe, mas o telemóvel continuava desligado, no voice
mail, ainda sem mensagem de voz personalizada. Mandou-lhe uma
mensagem de boa noite, juntamente com um desabafo “Mais uma vez,
desculpa. Vou ligar-te todos os dias, até me ouvires. Se precisares
de mim, liga. Não desapareças, por favor.”
Olhou
longamente o aparelho, sentindo-se miserável e perdido. Como
poderia aquilo estar a acontecer-lhe? Aquela maluca entrar-lhe pela
casa a dentro, mesmo na hora em que Marta abria a guarda e começava
a deixá-lo entrar?
Engoliu
um comprimido para dormir e ficou a torturar-se com as duas fotos que
ela lhe mandara ao jantar. Adorava-a, e não só porque era perfeita
e bonita. Tinha qualquer coisa de familiar dentro dela, que o
preenchia e descontraía. Não sabia explicar o quê. Ainda nem
sequer a abraçara e já sentia mais paixão que nos primeiros tempos
com a mulher, Isabel. Era estranho que tivessem o mesmo nome, até
confuso e perturbador, pensava. As duas mulheres de que tinha
gostado… Lamentou-se por não ter sido o homem perfeito para a
primeira, com quem a dada altura travara batalhas inglórias sobre
tudo e nada, como se fossem inimigos de sangue e ele precisasse de a
vencer, recusando-se simplesmente a ceder e a fazer-lhe as vontades.
Poderia ter tido um casamento mais feliz, sem dramas, feito um filho,
mas nunca o conseguira com ela. Simplesmente recusara-se a ser seu,
por inteiro, e tinha a certeza de que isso também a tinha matado.
Gostava de um dia confessar tudo aquilo a César, libertar-se da sua
eterna culpa conjugal, respirar fundo com a absolvição profissional
do amigo, talvez acabasse a carta e lha entregasse, mais dia
menos dia iria fazê-lo. Sentia que só assim poderia começar com
Marta, Isabel, corrigiu, sem fantasmas ou angústias. Desta vez seria
todo dela, da sua Isabel.
(direitos reservados, afsr)
(imagem, internet)
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