João
acordou com o som vindo da cozinha, estremunhado com um sonho
bastante real em que falara ao telefone com Marta, e ela fizera yoga
na sua cama. Esfregou os olhos pesados das poucas horas de sono que
conseguira aproveitar e sentiu algo rijo na sua almofada, agarrando-o
sobressaltado. Porque raio tinha ali o telemóvel?... Ligou o
aparelho, sentando-se, e viu no registo de chamadas o número de
Castelo Branco, às 7h00 em ponto. Alguns minutos de chamada… -
Merda, adormeci ao telefone com ela… - Se
fizesse isto à Isabel ela faria um escândalo. Estaria Marta,
Isabel, corrigiu, zangada? Dirigiu-se
ao quarto de banho e arranjou-se o mais depressa possível. Já não
teria tempo para tomar o pequeno almoço, dormira quase duas horas a
mais que o normal, lamentou-se, mais ansioso com o facto de ela ter
ficado pendurada ao telefone com ele a dormir, do que os pacientes na
sala de espera a reclamar com o atraso do médico. Eles
que lessem uma revista,
resmungou, saturado daquelas caras amarelentas e depressivas. Iria
ser um péssimo dia com a neura do sono, constatou. Tinha a cabeça
demasiado cheia de dúvidas e teorias sobre ela, o seu passado, seria
um suplício ter de se abstrair de tudo isso e concentrar-se nos
problemas dos outros. Precisava urgentemente de retomar a sua
pesquisa, explorar cada pista e ideia que o mantivera acordado
durante horas, compreender quem ela realmente era o mais depressa
possível. Estava a caminhar a passos largos para a dependência
emocional dela, a gostar demasiado de uma pessoa que simplesmente
poderia não existir, ser uma farsa. Não tinha a certeza de que
aguentaria outra “morte”.
Saiu
de casa enervado, a sua empregada Rosário andava particularmente
estranha, parecia-lhe preocupada, mas João não tinha tido tempo
para tentar perceber porquê. Sabia que ela tinha uma sobrinha
problemática, que lhe tirava o sono de vez em quando, mas nunca se
alongara muito em conversas. Algo de mais grave se passava, concluía,
a sentir-se culpado por não lhe retribuir a dedicação que ela lhe
devotava.
Entrou
no carro e o telemóvel não lhe saía da mão, como que a pedir-lhe
que lhe ligasse, colado aos dedos, irrequietos. Olhou o número dela
e não se conteve, afinal tinha uma boa desculpa para telefonar,
devia-lhe um pedido de desculpas.
-
Estou, sim? – Adelaide atendeu prontamente.
-
Estou, sim, muito bom dia. Fala de casa da Isabel? – perguntou a
sentir uma gota de suor a nascer-lhe no pescoço.
-
Quem fala? –questionou sem lhe responder. Um homem a ligar para a
casa da menina não era usual, principalmente quando ela chegara dois
dias antes.
-
Peço desculpa, chamo-me João Marques, sou o psiquiatra da Isabel, e
fiquei em ligar-lhe hoje de manhã. – mentiu descaradamente,
reagindo a um instinto que lhe dizia que a senhora o iria despachar
se não estivesse segura de que a Isabel quisesse atender o telefone.
-
Ah, sim, como está Dr.? A menina Isabel não me avisou que iria
telefonar. Mas ela saiu há pouco com a Senhora, só voltarão ao
final do dia. – explicou.
-
Não há problema, deve ter-se esquecido. Pode apenas dar-lhe o
recado de que liguei? – pediu, frustrado com a ideia de estar o
resto do dia sem a ouvir.
-
Com certeza, assim que a menina chegar, darei o recado.
-
Muito obrigado, bom dia.
-
Bom dia, com sua licença. – desligou o aparelho, agradada com os
modos bem educados do médico da Isabelinha. Gente fina, concluiu.
João
carregou no acelerador e dirigiu-se para o seu calvário diário,
agora com mais uma preocupação na mente, não saber se ela estava
zangada consigo.
-
Isabelinha, tu não podes tratar o cão como se fosse um humano! –
recriminou Mariana, aborrecida com o mau humor da filha desde que
saíra de casa.
-
Não é nada disso mãe, fico com medo que ele fuja, não está
habituado a viver naquela casa, pode tentar procurar por mim e sair
para a rua.
-
Disparate! A Adelaide disse que o vigiava, agora vamos aproveitar o
dia em Cáceres, fazer umas compras, almoçar uns tapas e passear. –
rematou decidida.
-
Claro, desculpe mãe. – acariciou-lhe a mão e esforçou-se por
sorrir perante aquele programa de mulheres. Descontraiu no banco do
passageiro do carro de Mariana e distraiu-se com a paisagem da viagem
até Espanha, imaginando como seria bom que João conhecesse aqueles
locais com ela, comessem uns tapas, dormitassem na relva do Parque
Del Príncipe,
em vez de se ir enfiar no El
Corte Inglês,
a percorrer quilómetros atrás da mãe, de loja em loja, sem
orçamento nem travões de qualquer espécie. – Acha que consigo
comprar um telemóvel ainda hoje? – queria muito falar com João,
saber se não tinha chegado atrasado de manhã à clínica, estar
sempre contactável para ele.
-
Claro querida! – reagiu surpreendida com a ideia. – Ainda bem que
decidiste deixar-te dessas ideias malucas de estares isolada de tudo
e todos.
-
Pois, anda-me a fazer falta, e a conduzir sozinha posso ter
necessidade de pedir ajuda. – concluiu, omitindo a verdadeira
intenção de ter um telefone móvel; esperar os telefonemas dele.
-
Claro. Deves ser a única rapariga com vinte e nove anos que não tem
telemóvel! – recriminou-a.
-
Faz-me mais falta um esquentador, mas pronto… - sorriu-lhe
divertida.
Mariana
arrepiou-se com a ideia de viver sem água quente nas torneiras, na
era medieval, como a filha.
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(imagem, internet)
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