Mais uma vez o telemóvel acabou
por cair da mesa-de-cabeceira de tanto vibrar e tocar. Passavam já vinte
minutos da hora certa para acordar, quando Margarida se permitiu abrir os olhos
e amaldiçoar a luz matinal que irradiava um novo dia e uma estranha esperança
para os pássaros que alegremente cantavam na rua. Arrastou-se para a casa de
banho e dormitou mais tempo do que devia no chuveiro, quando se lembrou que naquela manhã tinha marcada uma reunião com um “chato do caraças” que nos últimos meses lhe
enviava emails, requisitando a sua atenção para um manuscrito que, tinha de
confessar, nem sequer tirara da mala...
Uma
das suas mil e uma exigências profissionais era ler em papel, recusava a ideia
de se limitar a um ecrã de computador porque adorava rabiscar e fazer anotações
técnicas. Como habitualmente, recebera um envelope pesado, e parecera-lhe logo,
só pelas folhas imaculadas e o cheiro agoniante a perfume, que o tal Tomás
"qualquer coisa" deveria ser um insuportável menino da mamã, rico e
sem conteúdo. Daqueles nojentos das camisas tom pastel com quem nunca desejara
conviver nos seus tempos de liceu. Agora teria de olhar Aquele, recebê-lo no seu escritório e fingir que estava interessada nos devaneios
literários do saloio... A vida às vezes era madrasta, lamentava Margarida, e
não fosse o seu brio profissional e as constantes chantagens da sua chefe,
ter-se-ia recusado a conhecer o betinho que a queria obrigar a queimar as
pestanas com aquele calhamaço a cheirar a frutas! Com Ana Santos, essa
sociopata mandona, teria de se entender noutra altura. O seu comportamento
autoritário e insano estava a começar a dar-lhe comichões e não fazia tenção de
ganhar nenhum eczema à conta dela. Mas, por ora o "pequeno" Tomás
ocuparia todos os seus pensamentos e esforços.
Já tinha traçado um plano genial,
e mesmo estando tão atrasada naquela manhã, seria cumprido à risca! Inspirou
profundamente frente ao espelho da casa de banho, e optou por sair de casa sem
comer, dedicando-se apenas ao fabrico meticuloso da sua personagem favorita, a «cabra
excêntrica»! Cabelo negro esticado, lentes de contacto, maquilhagem a puxar o
gótico, roupa preta e justa, botas de cano alto biqueira de aço vermelhas, que
guardara religiosamente dos tempos de liceu, sem esquecer o seu pequeno pecado
dos dias stressantes, o maço de tabaco.
Olhou-se uma vez mais ao
espelho e lamentou ter tão mau feitio, pois quando queria, conseguia ser mesmo
uma brasa! Qualquer homem se ajoelharia a seus pés, se à personagem do espelho
lhe colocassem um stick nas mãos!
Saiu de casa divertida com o
choque que o palerma levaria quando se deparasse com a melhor editora das
redondezas mascarada de adolescente
problemática com problemas de álcool, senão pior!
(Direitos Reservados, afsr)
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