capítulo
1
01:07
O silêncio do quarto nunca lhe parecera
tão difícil de suportar. Mais uma vez estava sozinha. Teria de obrigar o seu
corpo a adormecer e, mentalmente, repetia «aquelas» frases já gravadas no seu
inconsciente...
-
Já só vais dormir 6 horas!
-
Sim! Trancaste a porta, fechaste as janelas e os ladrões não trepam três
andares para te vir roubar o cotão dos bolsos!
-
Deixa de ser parva, fecha os olhos e Dorme!!!
Quem a conhecia, e contavam-se pelos dedos
de uma mão, sabia que era uma mulher acima do comum. Com grandes defeitos de
personalidade e pouca confiança no seu aspeto físico, era extremamente
exigente, com os outros, claro! Tinha pouca paciência para o óbvio mas, um
coração capaz de aquecer um iceberg se… lhe caíssem em graça. Não havia melhor
ser humano a quem confiar uma amizade… o problema era ser-lhe
"engraçado".
Desde pequena que naturalmente selecionava
quem interessava manter por perto e quem não valia a pena aturar. Era um dom,
uma bênção, saber em poucos segundos de que fibra
era feita aquela pessoa que insistia em socializar, qualidade que lhe tinha
permitido vencer profissionalmente e fazia dela uma editora de sucesso. Sabendo
de antemão quem se lhe atravessava no caminho, como poderia comportar-se como
todos os outros no dia-a-dia, deixando-se ingenuamente envolver em laços
sentimentais que mais tarde ou mais cedo seriam rasgados pela cruel realidade?
E a partir de dada altura, aplicava a técnica de olhar por cima do ombro das
pessoas que tentavam, em vão, meter conversa consigo, acenando a um estranho
qualquer de costas ou distraído, porque para si era uma tortura cultivar
amizades fúteis. Simplesmente não tinha de o fazer.
Um dom, uma bênção, uma estranha
capacidade de ler corações que a
tornara numa mulher de vinte e sete anos, sozinha e com falta de sono.
Margarida tinha chegado a uma idade em que
deveria apagar a luz do quarto sem receios, mas o máximo que tinha conseguido
atingir até à data, era o controlo mental de se obrigar a desligar o pequeno
candeeiro ao lado da cama, ficando com o corredor iluminado para uma
eventualidade qualquer... As séries e os livros policiais que tanto adorava não
ajudavam, e não raras vezes, imaginava filmes inteiros dentro da sua cabeça,
estudando saídas estratégicas, reações dramáticas e corajosas perante um «psicopata
perseguidor» que a tinha seguido desde o hipermercado, e que agora, em plena
madrugada, subia pelas janelas do prédio e silenciosamente encontrava forma de
as abrir... Tudo aquilo para a matar! Para si, era natural que fosse a vítima
perfeita! Por que carga de água não seria apetecível para um assassino
depravado? Tinha tudo o que nos filmes chamava a atenção a um louco, jovem,
solitária, feminina e com a mania da superioridade. Essas cabras convencidas
"com a cona na testa", como "gentilmente" a apelidara um
sujeito no início da adolescência, eram perfeitas para esquartejar e guardar
num armário.
Nesses momentos de pânico desejava ter
alguém com quem partilhar a cama, gostaria de aguentar aquelas relações mornas
e desgastantes, só para ter um homem qualquer a ressonar ao seu lado... Mas
logo divagava nos prós e contras dessa ideia e a folha de cálculo mental em
Excel, sem sombra de dúvidas que justificava a sua longa solidão.
Quando finalmente o cansaço físico vencia,
adormecia, sendo perturbada com sonhos ainda mais angustiantes e grotescos que
os pensamentos que a assolavam enquanto tentava adormecer. Acordava à força
depois do despertador do telemóvel insistir em tocar a melodia pela quinta vez,
e não percebia como podia sonhar tanto, porque não tinha simplesmente uma bela
noite de sono em branco?! Como era secretamente apavorada pela ideia de que se
tomasse um soporífero poderia não acordar na manhã seguinte, teimava em
disciplinar a cabeça e, noite após noite, adiava essa importante decisão de se
render aos comprimidos dos "velhos malucos". Sempre que passava pela
farmácia para comprar o seu arsenal para asmáticos, analisava os clientes que
estavam à sua frente e tinha chegado à conclusão de que a terceira idade
portuguesa dormia, acordava, caminhava, respirava, e resistia à depressão com
diversas caixas tamanho familiar. Era percorrida por um calafrio quando se
imaginava com setenta e muitos, descaída, quase careca, desdentada, amarelenta
e de senha na mão à espera que o "doutor" da farmácia chamasse pelo
número cento e qualquer coisa para finalmente adquirir as drogas que a
manteriam de pé.
(todos os direitos reservados, afsr)
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