quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

"Margarida, o Bom e o Mau Gigante" - Capítulo 1, 1ª parte



capítulo 1

01:07

O silêncio do quarto nunca lhe parecera tão difícil de suportar. Mais uma vez estava sozinha. Teria de obrigar o seu corpo a adormecer e, mentalmente, repetia «aquelas» frases já gravadas no seu inconsciente...
- Já só vais dormir 6 horas!
- Sim! Trancaste a porta, fechaste as janelas e os ladrões não trepam três andares para te vir roubar o cotão dos bolsos!
- Deixa de ser parva, fecha os olhos e Dorme!!!

Quem a conhecia, e contavam-se pelos dedos de uma mão, sabia que era uma mulher acima do comum. Com grandes defeitos de personalidade e pouca confiança no seu aspeto físico, era extremamente exigente, com os outros, claro! Tinha pouca paciência para o óbvio mas, um coração capaz de aquecer um iceberg se… lhe caíssem em graça. Não havia melhor ser humano a quem confiar uma amizade… o problema era ser-lhe "engraçado".
Desde pequena que naturalmente selecionava quem interessava manter por perto e quem não valia a pena aturar. Era um dom, uma bênção, saber em poucos segundos de que fibra era feita aquela pessoa que insistia em socializar, qualidade que lhe tinha permitido vencer profissionalmente e fazia dela uma editora de sucesso. Sabendo de antemão quem se lhe atravessava no caminho, como poderia comportar-se como todos os outros no dia-a-dia, deixando-se ingenuamente envolver em laços sentimentais que mais tarde ou mais cedo seriam rasgados pela cruel realidade? E a partir de dada altura, aplicava a técnica de olhar por cima do ombro das pessoas que tentavam, em vão, meter conversa consigo, acenando a um estranho qualquer de costas ou distraído, porque para si era uma tortura cultivar amizades fúteis. Simplesmente não tinha de o fazer.
Um dom, uma bênção, uma estranha capacidade de ler corações que a tornara numa mulher de vinte e sete anos, sozinha e com falta de sono.

Margarida tinha chegado a uma idade em que deveria apagar a luz do quarto sem receios, mas o máximo que tinha conseguido atingir até à data, era o controlo mental de se obrigar a desligar o pequeno candeeiro ao lado da cama, ficando com o corredor iluminado para uma eventualidade qualquer... As séries e os livros policiais que tanto adorava não ajudavam, e não raras vezes, imaginava filmes inteiros dentro da sua cabeça, estudando saídas estratégicas, reações dramáticas e corajosas perante um «psicopata perseguidor» que a tinha seguido desde o hipermercado, e que agora, em plena madrugada, subia pelas janelas do prédio e silenciosamente encontrava forma de as abrir... Tudo aquilo para a matar! Para si, era natural que fosse a vítima perfeita! Por que carga de água não seria apetecível para um assassino depravado? Tinha tudo o que nos filmes chamava a atenção a um louco, jovem, solitária, feminina e com a mania da superioridade. Essas cabras convencidas "com a cona na testa", como "gentilmente" a apelidara um sujeito no início da adolescência, eram perfeitas para esquartejar e guardar num armário.
Nesses momentos de pânico desejava ter alguém com quem partilhar a cama, gostaria de aguentar aquelas relações mornas e desgastantes, só para ter um homem qualquer a ressonar ao seu lado... Mas logo divagava nos prós e contras dessa ideia e a folha de cálculo mental em Excel, sem sombra de dúvidas que justificava a sua longa solidão.

Quando finalmente o cansaço físico vencia, adormecia, sendo perturbada com sonhos ainda mais angustiantes e grotescos que os pensamentos que a assolavam enquanto tentava adormecer. Acordava à força depois do despertador do telemóvel insistir em tocar a melodia pela quinta vez, e não percebia como podia sonhar tanto, porque não tinha simplesmente uma bela noite de sono em branco?! Como era secretamente apavorada pela ideia de que se tomasse um soporífero poderia não acordar na manhã seguinte, teimava em disciplinar a cabeça e, noite após noite, adiava essa importante decisão de se render aos comprimidos dos "velhos malucos". Sempre que passava pela farmácia para comprar o seu arsenal para asmáticos, analisava os clientes que estavam à sua frente e tinha chegado à conclusão de que a terceira idade portuguesa dormia, acordava, caminhava, respirava, e resistia à depressão com diversas caixas tamanho familiar. Era percorrida por um calafrio quando se imaginava com setenta e muitos, descaída, quase careca, desdentada, amarelenta e de senha na mão à espera que o "doutor" da farmácia chamasse pelo número cento e qualquer coisa para finalmente adquirir as drogas que a manteriam de pé.

(todos os direitos reservados, afsr)

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