De
todos os autores, Eça de Queirós era o seu preferido, talvez por se recordar
das gargalhadas de barítono que Dinis soltava ao ler a "Relíquia",
uma sátira mordaz aos falsos beatos da sociedade portuguesa do século XIX.
Margarida poderia ficar horas sentada no pequeno sofá de pele gasta a admirar
aquele homem grande e alegre, inspirando o cheiro da sua cigarrilha aromática
que aos catorze anos experimentou fumar às escondidas. Estava sozinha em casa
naquela tarde, ganhou coragem e decidiu tentar perceber o prazer daquele vício.
Deu duas passas exageradamente longas na cigarrilha e só se recordava de
acordar esticada no sofá com os lamentos histéricos da mãe, que lhe colocava
água fresca na cara pálida, enquanto o pai gozava aquela cena queirosiana sufocando o riso, afastando-se da mulher que
repreendia ferozmente o seu sentido de humor macabro.
Eram
uma família feliz, e Margarida e Isabel tinham ficado sozinhas cedo demais.
-
Estás doente querida? - perguntou Isabel, preocupada - Não me lembro de alguma
vez teres faltado ao trabalho. Queres um chazinho? - Para Isabel tudo se curava
com uma xícara de chá quente. Dores, más disposições, tristezas, desgostos e
uma tisana mágica era a solução!
-
Não, mãe, estou apenas chateada. Hoje tive uma manhã difícil e precisava de
desanuviar a cabeça, nada mais. - e Isabel percebeu que não era necessário mais
conversa. A filha tinha uma forma muito própria de se resolver internamente, e
a ela cabia o papel de a auxiliar nesse processo com comida feita com bastante
amor. Levantou-se e deixou a filha sorumbática na sala de estar, dirigindo-se
animadamente para a sua sala de poções, pronta a desempenhar o seu papel de
enfermeira holística.
Margarida
enfardou dois pratos cheios da mistela estranha, mais uma das experiências
vegans que a mãe cozinhava como ninguém, e recuperou parte do seu ânimo,
rematando com um chazinho estimulante.
Conversaram
sobre as novidades do prédio de Isabel, riram com as maluqueiras da vizinha do
3º esquerdo e Margarida lamentou-se uma vez mais das porcarias que tinha de ler
na próxima semana. Para ela a maioria dos escritores eram uma perfeita
chachada. Isabel fazia de advogada de defesa dos clientes da editora, como
habitualmente, e tentava em vão que a filha compreendesse que não havia Eças de
Queirós em todas as gerações. A compaixão que Isabel sentia pelos escritores
que nas suas carreiras esbarravam com Margarida era cada vez maior, a filha
piorava de feitio de
ano para ano, pensava preocupada.
Perto
das 20h00, despediram-se e Margarida agradeceu o almoço e a companhia, não sem antes
prometer que voltaria ainda naquela semana para continuarem as fofocas. Um
pequeno esforço para agradar aquela mulher bondosa a quem tentaria não
desiludir.
(direitos reservados, afsr)
(imagem, internet)
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