quarta-feira, 4 de abril de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 1 (1ª parte)





Levantou-se com o corpo dorido da posição em que estivera nas últimas duas horas em frente ao computador a tentar escrever meia dúzia de linhas, foi tomar um duche e preparar-se para sair. Ficar ali era demasiado deprimente, solitário e doentio. A teoria já a sabia, era preciso lutar contra ela, não se deixar ficar a remoer na famosa maleita invisível, sugadora de ânimo, energia, alegria de viver, mas que ironicamente engrossava os bolsos a muitos profissionais e sectores, e João era um deles. O que seria de um Psiquiatra sem a Depressão? Um médico sem doentes com o gabinete às moscas.
Engoliu um dos mágicos comprimidos da alegria instantânea e enfiou-se no duche. Naquela noite iria até ao Bar de um amigo de faculdade que em boa hora trocara os “doidos pelos noctívagos”, como gostava de se gabar quando conversavam. Chamara-lhe o “Pírulas”, uma piada que nem todos atingiam, mas um nome que ficava no ouvido, servindo de marketing perfeito para quem queria beber uns copos e arranjar distracção do sexo oposto de algum nível. Por ali só andavam tipas da Universidade ou já doutoras, muito ou pouco desesperadas, normalmente sem grandes interesses em romances eternos, como lhe convinha.



Entrou irradiando confiança e boa disposição, como sempre se apresentava em público, largando charme por todas as mesas e pequenos grupos de conhecidas que o bajulavam sem pudores. Era o protótipo do homem das comédias românticas que as raparigas viam desde a adolescência - sexy, educado, bem na vida, disponível e com uma história triste para contar. Não utilizava a sua condição de viúvo para engatar ninguém, mas por ali tudo se sabia, e o mito urbano crescia, sendo difícil não usufruir das suas vantagens físicas. Se queriam tentar a sua sorte e convencerem-se de que o iriam curar do seu desgosto, quem era ele para lhes negar essa tentativa? Estava certo de que não seria tão linear ou simples como nos filmes, o romantismo cego não fazia parte da sua personalidade, e a antiga disponibilidade para amar alguém tinha sido substituída há muito tempo pelo cinismo calculista masculino, na pior acepção do conceito. Nem sempre lhe apetecia levar alguém a casa ao final da noite, mas naquele dia sentia-se especialmente motivado. Precisava de desanuviar a cabeça.

- Olá Dr! – cumprimentou-o Salvador, o proprietário do Bar e amigo de longa data.
- Então Salvador, tudo bem? Um fino, faz favor. – respondeu dando-lhe um aperto de mão sentido, enquanto se acomodava no banco alto junto ao balcão, a analisar o espaço com o olhar científico e decidido.
- Ontem houve aqui uma bronca… - lamentou-se o amigo colocando a bebida junto de João e inclinando-se para reservar a conversa apenas aos dois – Um tipo entrou aqui, já quase de dia, estávamos mesmo a acabar de limpar. Eu estava lá em cima a contar o dinheiro e a meter no saco para levar ao banco, quando ouvi uns barulhos de copos a partir. “Ó que merda”, pensei. Isto da noite é tudo muito lindo e divertido, mas temos de aturar cada boi! – explicava ainda chateado com o assunto – Estava todo lixado, drogas, de certeza, queria ir cagar! Vê tu bem! – exclamou furioso – Vá lá cagar na casa dele! Dei-lhe duas lambadas e ali o Janota resolveu o resto do problema. – acenou em direcção ao segurança sorridente. Era dos poucos que trabalhavam na área dos murros e dos socos e mantinha um ar feliz, constatava João, bastava-lhe o seu físico assustador para manter a ordem.
- Tu és demais... – confessou João divertido com as histórias sempre cómicas de Salvador – Se o homem vinha entalado, deixava-lo ir resolver o problema.
- Nem penses! Deixava-o uma vez, e depois? Vinha para aqui cagar todos os dias! – disse inflamado – Espera, tenho de ir ali servir aqueles tipos. Já volto. – afastou-se para atender outros clientes que já o olhavam de lado à espera das suas bebidas e João voltou-se novamente para a frente, retomando a sua análise feminina. Ainda não tinha concluído o scanner a todo o espaço quando uma loira generosa em atributos lhe sorriu e piscou o olho.
Salvador voltara nesse instante e recomeçava as suas lamúrias de gerente de bar nocturno quando João se levantou avançando em direcção à rapariga e o deixou a falar sozinho.
- Ah, ok, vai lá, vai lá, meu menino. Depois deixa-a infeliz e carente que só assim é que elas me dão hipótese. – gozou em voz alta.


Sempre que a via sentia-se assim, parvinho de todo, sem saber como lhe dizer todas aquelas coisas inteligentes que pensara no dia anterior. Era impossível ser natural e descontraído quando ela estava por perto, lamentava-se. Naquele dia combinaram ir beber um café ao Samambaia, sentaram-se um em frente ao outro, pediram café, depois água, um bolo, uma torrada, dois finos, tremoços, e acabaram a tarde a serem repreendidos pelo empregado de mesa para pararem com os beijos, havia clientes incomodados. Invejosos, dissera ela divertida.


- Desculpa, o que é que disseste? – apercebeu-se de que se perdia nas memórias quando a rapariga… Célia? Amélia? Cornélia?, o abanou com cara de ofendida.
- Queres ir dançar? – repetiu pela quarta vez.
- Sim, claro. – poisaram as bebidas numa mesa e João enlaçou-lhe a cintura, levando-a até à pista e fazendo os possíveis para remediar aquele começo já meio inquinado. – Desculpa, estava a pensar onde gostava de te levar hoje, quando sairmos daqui. – inventou à pressão, fazendo olhos de carneiro mal morto.
- Vamos a algum lado, mais logo? – perguntou satisfeita.
- Sim, mas é surpresa! – beijou-a repentinamente, já não tinha mais nada para lhe dizer e ela mostrava-se bem contente com a ideia.


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