O dia passou devagar, torturante, com a
dor de cabeça a afundar-se cada vez mais, resultado da crise de pânico da noite
anterior, e a ideia de que não teria aula no fim daquilo tudo ainda o deprimia
mais. Felizmente não teria de ir para casa, era esperado em casa de César para
o habitual jantar das sextas-feiras, em que se juntavam já como uma tradição,
bebiam uns copos e falavam de tudo e de nada. Uma terapia de terapeutas, que
chegavam ao final da semana carregados de más energias, como dizia Elisabete. A
mulher do amigo tinha toda a razão, pensava João, e mantinha-os assim
minimamente controlados, não permitindo que embarcassem nas doideiras dos
outros, pois já lhes bastavam as suas. Só teria de passar rapidamente em casa,
trocar de roupa, tomar qualquer coisa para a dor de cabeça e acabaria mais um
dia difícil.
Chegou a casa dos amigos demasiado
cedo, lamentou-se, ao ver a azáfama que ainda ia na cozinha, e ficando
demasiado solitário na sala, agarrado a um copo de vinho, sem paciência para
ver televisão ou distrair-se com outra coisa qualquer. Ofereceu-se para por a
mesa e agradeceu a oportunidade de ocupar a cabeça, a imagem das algas ainda o
ensombrava de vez em quando, arrepiando-o e aquecendo-lhe a cara.
- Quatro pratos? – perguntou curioso
com a companhia do jantar que ainda ninguém tinha mencionado.
- Sim, convidei uma amiga. – explicou
Elisabete falando alto de dentro da cozinha, bem no momento em que a campainha
tocou. – Olha, já chegou! Podes ir abrir João?
- Sim, eu vou lá. – respondeu meio
contrariado. Gostava muito daqueles momentos privados entre os três. Se vinha
um estranho para jantar não poderia falar sobre o que lhe apetecesse, lamentou,
abrindo a porta. – Marta? – olhou-a espantado a sorrir, sendo também observado
com espanto.
- João? Mas… Também aqui estás? –
perguntou incrédula com aquela coincidência feliz. Tinha pensado nele todo o
dia, desanimada com o facto de apenas o ir rever na segunda-feira, e ali estava
o seu aluno preferido, a abrir-lhe a porta.
João cumprimentou-a com dois beijos,
pela primeira vez, sentindo-a corar e estranhando aquela Marta que ficara sem
jeito e envergonhada, talvez se sentisse intimidada na casa de outras pessoas,
concluiu, indicando-lhe o caminho até à sala.
- Então, esta era a tua amiga? –
sorriu-lhe – Pensava que ias sair com alguma “amiga” das outras.
Marta sentiu-se a ficar escarlate, ele
conseguia ser tão indiscreto, e Elisabete sabia que ela não era lésbica
nenhuma, pensava nervosa com aquilo tudo. Não queria que ele se zangasse com
ela por causa da mentira que inventara estupidamente, e cada vez crescia mais.
Precisava de lhe contar a verdade, concluiu. E fosse o que Deus quisesse.
- João, preciso de falar contigo sobre
uma coisa. – começou a confissão, quando o casal anfitrião os veio interromper,
cheios de comida nas mãos e solicitando ajuda para colocar o jantar na mesa.
- Ok, não te esqueças de onde vais. –
disse João, chamando-a para a mesa e sentando-se animado com o cheiro da
comida.
- Então já se conhecem? – perguntou
César curioso com a excitação do amigo.
- Ah, sim. Eu ainda não tinha dito
anda, mas fui experimentar o Yoga. – confessou João.
- Foste? Mas eu não te vi lá na escola.
– perguntou Elisabete espantada, olhando alternadamente para Marta, que corava
ainda mais, e João, que sorria com naturalidade.
- Eu estou a dar-lhe as aulas em minha
casa. Ele apareceu-me lá a pedir aulas privadas, e como o Filipe foi com a cara
dele, eu aceitei. – explicou Marta meio a gaguejar.
César fez uma nota mental sobre aquele
pormenor em particular, o facto de ela mencionar o nome de Filipe e João não
reagir emocionalmente, mais tarde iria pensar sobre aquilo.
- E quem é o Filipe? – perguntou
genuinamente curioso.
- É o cão. – respondeu João com
naturalidade.
- Sim, o companheiro de sesta aqui do
rapaz. – brincou Marta servindo-se de salada.
- César, não comeces com os teus scaners profissionais. – recriminou João
incomodado, ao ver o olhar interessado do amigo naquelas revelações sobre os
últimos dias em casa de Marta. – Adormeci por causa de um exercício de
respiração… o Prayama…
- Pranayama.
– corrigiu Marta instintivamente.
- Isso. – agradeceu, enchendo-lhe o
copo. – E o cão deitou-se em cima de mim.
- Isto está muito bom. – comentou Marta
olhando Elisabete e piscando-lhe o olho.
- Obrigada, querida. Espera até
provares a sobremesa.
O jantar arrastou-se mais do que o
normal, até terminarem todas as garrafas de vinho e a sobremesa ter sido comida
até à última migalha, descontraídos uns com os outros, numa conversa que
parecia não acabar. César analisava tudo aquilo com um interesse para além do
profissional, pois João era-lhe muito querido como amigo. Queria vê-lo feliz, a
ultrapassar a depressão que arrastava desde os 14 anos, e um dia deixar de lhe
prescrever drogas. Não fazia sentido um homem novo tomar tanta porcaria, se
assim se mantivesse iria ter dificuldades sérias na velhice. E aquela
Professora de yoga, embora lésbica e amorosamente inacessível a João, parecia
conseguir normalizá-lo de alguma maneira.
- Bem, agradeço-vos imenso o convite,
mas o Filipe está para lá sozinho e tem medo do escuro. Tenho de voltar para
casa. – levantou-se e despediu-se do casal anfitrião – Adorei o jantar e este
bocadinho. – olhou para João e, sem intenção de lhe tocar despediu-se também. –
Então, até segunda.
- Eu também vou. – disse num impulso.
Ainda era cedo e talvez ela quisesse ir ao Bar do Salvador beber qualquer
coisa, pensou, desistindo automaticamente da ideia ao imaginar a Nélia a
agarrar-se a ele e estragar a noite. – Acompanho-te até lá abaixo.
- Ok, obrigada. – disse a sentir um
formigueiro na barriga. Queria ir para casa e afastar-se rapidamente, precisava
de distância daquela energia que sentia vinda dele, que a punha meio tonta e
vulnerável. Ou talvez fosse só efeito do vinho, pensava, olhando-o a chamar o
elevador.
Entraram no cubículo apertado e o
silêncio crescia, tornando a viagem dolorosa. Olharam-se e Marta viu nos seus
olhos a intenção de a beijar, ficando hipnotizada naquela expectativa, sem saber
como reagir, mas desejando que ele o fizesse. Um leve movimento na sua direção
denunciou que ele ia avançar, quando subitamente a porta se abriu e um casal de
idosos sorriu educadamente à espera que eles saíssem, pois já tinham chegado ao
rés-do-chão e não se haviam apercebido.
Saíram meio desajeitados com aquele
momento incómodo, e Marta caminhou rapidamente até ao local onde tinha o seu
pequeno Jipe estacionado, procurando pelas chaves furiosamente enquanto se
aproximava do veículo. Teria de resolver aquele mal entendido rapidamente,
censurava-se com cólicas na barriga. Que trapalhada para ali estava, parecia o
interior daquela carteira, pensava angustiada.
- Queres ir conhecer a minha casa? –
perguntou João colocando um braço no tejadilho do carro, bem perto dela, sem
ser capaz de racionalizar o que estava a fazer, afinal ela não seria
susceptível a avanços amorosos vindos dele.
- Não sei se é boa ideia… - confessou a
sentir-se afogueada, sem o olhar, concentrando-se na busca pela chave perdida.
- Eu já conheço a tua. Agora tens de
conhecer a minha. É justo. É aqui mesmo no prédio do lado. – se continuasse
assim tão perto dela iria acabar por fazer um disparate, e podia estragar
aquela amizade, recriminava-se, sem no entanto conseguir deixá-la ir.
Marta olhou-o furtivamente, decidida a
não aceitar, mas aquela energia começava a envolvê-la como uma teia,
sentindo-se a amolecer na sua direção.
- Bem, só se for muito rápido… o Filipe
não gosta de estar sozinho à noite. – balbuciou, encontrando naquele momento a
chave e largando-a logo de seguida dentro da carteira.
João teve vontade de dizer “Yes!”, mas
conteve-se, afinal aquilo eram fantasias apenas da sua cabeça, ela não tinha as
mesmas sensações animais relativamente a si, estando apenas a ser educada, e não
poderia ofendê-la ou ser grosseiro. Gostava cada vez mais da sua companhia, não
iria estragar tudo, prometeu a si mesmo.
(direitos reservados, afsr)
(imagem, internet)
Sem comentários:
Enviar um comentário