segunda-feira, 23 de abril de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 5 (3ª parte)





O dia passou devagar, torturante, com a dor de cabeça a afundar-se cada vez mais, resultado da crise de pânico da noite anterior, e a ideia de que não teria aula no fim daquilo tudo ainda o deprimia mais. Felizmente não teria de ir para casa, era esperado em casa de César para o habitual jantar das sextas-feiras, em que se juntavam já como uma tradição, bebiam uns copos e falavam de tudo e de nada. Uma terapia de terapeutas, que chegavam ao final da semana carregados de más energias, como dizia Elisabete. A mulher do amigo tinha toda a razão, pensava João, e mantinha-os assim minimamente controlados, não permitindo que embarcassem nas doideiras dos outros, pois já lhes bastavam as suas. Só teria de passar rapidamente em casa, trocar de roupa, tomar qualquer coisa para a dor de cabeça e acabaria mais um dia difícil.

Chegou a casa dos amigos demasiado cedo, lamentou-se, ao ver a azáfama que ainda ia na cozinha, e ficando demasiado solitário na sala, agarrado a um copo de vinho, sem paciência para ver televisão ou distrair-se com outra coisa qualquer. Ofereceu-se para por a mesa e agradeceu a oportunidade de ocupar a cabeça, a imagem das algas ainda o ensombrava de vez em quando, arrepiando-o e aquecendo-lhe a cara.
- Quatro pratos? – perguntou curioso com a companhia do jantar que ainda ninguém tinha mencionado.
- Sim, convidei uma amiga. – explicou Elisabete falando alto de dentro da cozinha, bem no momento em que a campainha tocou. – Olha, já chegou! Podes ir abrir João?
- Sim, eu vou lá. – respondeu meio contrariado. Gostava muito daqueles momentos privados entre os três. Se vinha um estranho para jantar não poderia falar sobre o que lhe apetecesse, lamentou, abrindo a porta. – Marta? – olhou-a espantado a sorrir, sendo também observado com espanto.
- João? Mas… Também aqui estás? – perguntou incrédula com aquela coincidência feliz. Tinha pensado nele todo o dia, desanimada com o facto de apenas o ir rever na segunda-feira, e ali estava o seu aluno preferido, a abrir-lhe a porta.
João cumprimentou-a com dois beijos, pela primeira vez, sentindo-a corar e estranhando aquela Marta que ficara sem jeito e envergonhada, talvez se sentisse intimidada na casa de outras pessoas, concluiu, indicando-lhe o caminho até à sala.
- Então, esta era a tua amiga? – sorriu-lhe – Pensava que ias sair com alguma “amiga” das outras.
Marta sentiu-se a ficar escarlate, ele conseguia ser tão indiscreto, e Elisabete sabia que ela não era lésbica nenhuma, pensava nervosa com aquilo tudo. Não queria que ele se zangasse com ela por causa da mentira que inventara estupidamente, e cada vez crescia mais. Precisava de lhe contar a verdade, concluiu. E fosse o que Deus quisesse.
- João, preciso de falar contigo sobre uma coisa. – começou a confissão, quando o casal anfitrião os veio interromper, cheios de comida nas mãos e solicitando ajuda para colocar o jantar na mesa.
- Ok, não te esqueças de onde vais. – disse João, chamando-a para a mesa e sentando-se animado com o cheiro da comida.
- Então já se conhecem? – perguntou César curioso com a excitação do amigo.
- Ah, sim. Eu ainda não tinha dito anda, mas fui experimentar o Yoga. – confessou João.
- Foste? Mas eu não te vi lá na escola. – perguntou Elisabete espantada, olhando alternadamente para Marta, que corava ainda mais, e João, que sorria com naturalidade.
- Eu estou a dar-lhe as aulas em minha casa. Ele apareceu-me lá a pedir aulas privadas, e como o Filipe foi com a cara dele, eu aceitei. – explicou Marta meio a gaguejar.
César fez uma nota mental sobre aquele pormenor em particular, o facto de ela mencionar o nome de Filipe e João não reagir emocionalmente, mais tarde iria pensar sobre aquilo.
- E quem é o Filipe? – perguntou genuinamente curioso.
- É o cão. – respondeu João com naturalidade.
- Sim, o companheiro de sesta aqui do rapaz. – brincou Marta servindo-se de salada.
- César, não comeces com os teus scaners profissionais. – recriminou João incomodado, ao ver o olhar interessado do amigo naquelas revelações sobre os últimos dias em casa de Marta. – Adormeci por causa de um exercício de respiração… o Prayama…
- Pranayama. – corrigiu Marta instintivamente.
- Isso. – agradeceu, enchendo-lhe o copo. – E o cão deitou-se em cima de mim.
- Isto está muito bom. – comentou Marta olhando Elisabete e piscando-lhe o olho.
- Obrigada, querida. Espera até provares a sobremesa.


O jantar arrastou-se mais do que o normal, até terminarem todas as garrafas de vinho e a sobremesa ter sido comida até à última migalha, descontraídos uns com os outros, numa conversa que parecia não acabar. César analisava tudo aquilo com um interesse para além do profissional, pois João era-lhe muito querido como amigo. Queria vê-lo feliz, a ultrapassar a depressão que arrastava desde os 14 anos, e um dia deixar de lhe prescrever drogas. Não fazia sentido um homem novo tomar tanta porcaria, se assim se mantivesse iria ter dificuldades sérias na velhice. E aquela Professora de yoga, embora lésbica e amorosamente inacessível a João, parecia conseguir normalizá-lo de alguma maneira.
- Bem, agradeço-vos imenso o convite, mas o Filipe está para lá sozinho e tem medo do escuro. Tenho de voltar para casa. – levantou-se e despediu-se do casal anfitrião – Adorei o jantar e este bocadinho. – olhou para João e, sem intenção de lhe tocar despediu-se também. – Então, até segunda.
- Eu também vou. – disse num impulso. Ainda era cedo e talvez ela quisesse ir ao Bar do Salvador beber qualquer coisa, pensou, desistindo automaticamente da ideia ao imaginar a Nélia a agarrar-se a ele e estragar a noite. – Acompanho-te até lá abaixo.
- Ok, obrigada. – disse a sentir um formigueiro na barriga. Queria ir para casa e afastar-se rapidamente, precisava de distância daquela energia que sentia vinda dele, que a punha meio tonta e vulnerável. Ou talvez fosse só efeito do vinho, pensava, olhando-o a chamar o elevador.
Entraram no cubículo apertado e o silêncio crescia, tornando a viagem dolorosa. Olharam-se e Marta viu nos seus olhos a intenção de a beijar, ficando hipnotizada naquela expectativa, sem saber como reagir, mas desejando que ele o fizesse. Um leve movimento na sua direção denunciou que ele ia avançar, quando subitamente a porta se abriu e um casal de idosos sorriu educadamente à espera que eles saíssem, pois já tinham chegado ao rés-do-chão e não se haviam apercebido.
Saíram meio desajeitados com aquele momento incómodo, e Marta caminhou rapidamente até ao local onde tinha o seu pequeno Jipe estacionado, procurando pelas chaves furiosamente enquanto se aproximava do veículo. Teria de resolver aquele mal entendido rapidamente, censurava-se com cólicas na barriga. Que trapalhada para ali estava, parecia o interior daquela carteira, pensava angustiada.
- Queres ir conhecer a minha casa? – perguntou João colocando um braço no tejadilho do carro, bem perto dela, sem ser capaz de racionalizar o que estava a fazer, afinal ela não seria susceptível a avanços amorosos vindos dele.
- Não sei se é boa ideia… - confessou a sentir-se afogueada, sem o olhar, concentrando-se na busca pela chave perdida.
- Eu já conheço a tua. Agora tens de conhecer a minha. É justo. É aqui mesmo no prédio do lado. – se continuasse assim tão perto dela iria acabar por fazer um disparate, e podia estragar aquela amizade, recriminava-se, sem no entanto conseguir deixá-la ir.
Marta olhou-o furtivamente, decidida a não aceitar, mas aquela energia começava a envolvê-la como uma teia, sentindo-se a amolecer na sua direção.
- Bem, só se for muito rápido… o Filipe não gosta de estar sozinho à noite. – balbuciou, encontrando naquele momento a chave e largando-a logo de seguida dentro da carteira.
João teve vontade de dizer “Yes!”, mas conteve-se, afinal aquilo eram fantasias apenas da sua cabeça, ela não tinha as mesmas sensações animais relativamente a si, estando apenas a ser educada, e não poderia ofendê-la ou ser grosseiro. Gostava cada vez mais da sua companhia, não iria estragar tudo, prometeu a si mesmo.


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(imagem, internet)

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