- Sim, entre. – respondeu ao suave toque na porta que o
tirou dos seus pensamentos. – Bom dia, como está?
O dia
passou lento, doloroso, como se o relógio se arrastasse de propósito, alongando
aquelas conversas impensáveis, de gente desorientada com os acontecimentos da
vida. A maioria não aceitava a morte dos seus, o filho problemático, o marido
agressivo, ou não raras as vezes, não conseguia conviver consigo mesmo. Queriam
remédios eficazes, soluções milagrosas, recusavam-se a aceitar que ele não
fosse mágico. Um médico psiquiatra que nem de si conseguia cuidar, pensava com
angústia, como poderia ajudar aqueles amarelentos todos?
- Até
amanhã Diana. – grunhiu só por educação, já com a cabeça a latejar de dores.
Precisava de se deitar um pouco no escuro e recuperar de tanto horror alheio.
- Até
amanhã, Dr. – respondeu Diana sem vontade. Custava-lhe ser ligeiramente
simpático?, pensava com rancor daquele médico soturno e fechado.
João
enfiou-se no elevador e agradeceu aos céus estar sozinho durante uns minutos.
Que dia…, lamentava-se exausto, encostado ao espelho. Parou no rés do chão e
saiu calmamente para o átrio, quando viu uma mulher a sair da escadaria de
emergência que ninguém usava, a não ser que os elevadores avariassem. Vinha a
chorar, descontrolada, e passou-lhe mesmo à frente, ignorando-o, como se não
visse nada à sua volta. João olhou cúmplice para os colegas e alguns doentes
que por ali passavam, e todos os que sabiam da sua especialidade lhe sugeriram
que a tentasse alcançar, ajudando-a. Não que alguém lho tivesse dito, claro,
mas os olhares estavam carregados de insinuação, e João obedeceu. Apressou o
passo, para a tentar alcançar, mas a mulher não fazia caso dos seus
chamamentos.
- Sra!
Espere por favor! – exclamou, conseguindo agarrar-lhe num braço.
- Mas… O
que foi? – perguntou surpresa com aquele contacto, ainda com a cara cheia de
lágrimas.
- Desculpe…
- disse a recuperar o fôlego da corrida – Vi-a a sair das escadas de incêndio a
chorar, precisa de ajuda?
- Não! –
respondeu prontamente – Mas agora uma pessoa já não pode chorar? - perguntou fungando alto.
- Bem…
claro, que estupidez. Se não precisa de nada, ainda melhor. – concluiu, virando
costas. Mais uma maluca, não obrigado, pensou afastando-se aliviado.
- Espere! –
gritou a mulher alcançando-o – Desculpe, não queria ser mal educada. Mas
apanhou-me a meio da minha catarse… preciso de chorar uma quantidade certa,
entende? Senão não fico aliviada. Mas obrigada pela atenção. – explicou-se,
recompondo-se com demasiada rapidez, pensava João.
- Catarse?!
– disse João sem pensar.
-Sim, é
muita energia negativa lá dentro, se não deito cá para fora, rebento! – disse
de sopetão.
- Desculpe,
não entendi, mas… - e ia terminar a sua deixa politicamente correta com “ainda
bem que não precisa de ajuda, então adeus, peço desculpa pelo mal entendido”,
mas não teve hipótese.
- Venha,
vamos ali ao café do lado que eu explico-lhe. – agarrou-lhe no braço e
dirigiu-o à esquina da rua onde havia um pequeno café sempre cheio de utentes,
médicos e funcionários da clínica.
- Tenho de
ir para casa… - conseguiu dizer no meio do espanto, mas a mulher tinha força,
constatou surpreso, já a entrar no estabelecimento e a sentar-se sem perceber
bem como.
- Vou ser
muito rápida! – explicou, sorrindo-lhe satisfeita. – O que quer beber? Para mim
um chá de camomila, para ver se me acalmo, - disse decidida ao empregado que
aguardava de pé junto à mesa – o melhor é serem dois. – concluiu,
despachando-o.
- Eu não
gosto de chá. – comentou João pouco satisfeito com aquela metediça.
- Quem é
que não gosta de chá? – insurgiu-se quase ofendida.
- Eu. –
disse laconicamente.
- Adiante!
Porque referiu especificamente há pouco que eu vinha das “escadas de incêndio a
chorar”? – perguntou-lhe curiosa.
-
Psicologia a esta hora? – gozou com sarcasmo. – Chá ainda aguento…
- Não é
nada disso, não sou psicóloga. – explicou, ignorando o tom maldisposto. –
Fiquei curiosa, apenas.
- Olá, o
meu nome é João, como se chama? – ironizou, estendendo-lhe a mão.
- Sim,
claro… Olá João, o meu nome é Marta. Sou um bocado matraca, desculpa. Posso
tratar-te por tu?
- Pode. –
disse no meio de um suspiro de resignação – Ia falar-me da tal catarse…
- Ah, sim,
claro! – encostou-se na cadeira, relaxada – Eu venho aqui todas as semanas, à
Oncologia, e por vezes fico assim, emotiva.
- Tem
alguém conhecido lá internado? – perguntou com interesse, sabia o que era
visitar uma pessoa querida naquelas enfermarias.
- Não, faço
voluntariado. – explicou sorridente, colocando metade do pacote de açúcar no
chá.
- Então
afeiçoou-se a alguém? Isso acontece. É a chamada empatia, que só os humanos
conseguem.
- Não é
nada disso. – abanou a cabeça para reforçar o que sentia – Sempre que alguém
morre, ou recebe aquelas notícias terríveis dos médicos, com sentenças sem
retorno, não consigo deixar de chorar pelos parentes. A dor que se vê nos seus
olhos é bastante dura de aguentar… - deu um gole no chá e olhou-o curiosa –
Assim um pouco como se vê no teu olhar, quando falas, principalmente. - rematou, continuando a olhá-lo
cientificamente.
- É
cansaço, “dores” da profissão. – mentiu, sentindo-se desconfortável com o rumo
da conversa.
- Hum… pode
ser. Ainda não bebeste o chá. Vamos, vais ver que te passa já a dor. –
piscou-lhe o olho divertida, levantando a chícara.
- Horrível…
- grunhiu depois do primeiro gole.
- O que
arde cura, o que aperta segura, e o que sabe mal faz bem! – brincou.
- Isso não
rima. – advertiu-a sem vestígios de humor.
- Mas que
exigente… Afinal, qual é a tua profissão?
-
Psiquiatra.
- Está
explicado. – exclamou, dando uma palmada no tampo da mesa. - Deves chorar
imenso no fim das consultas.
- Nem por
isso. – gozou, imaginando como seria ridículo se ficasse em prantos todas as
vezes que saísse alguém do gabinete.
- Por isso
é que estás assim, cheio de tristeza. – concluiu pragmaticamente, como se fosse
a coisa mais óbvia do mundo. – Precisas de chorar. Ou então de umas aulas de
yoga e meditação, o que é mais a minha especialidade. – pegou na carteira que
trazia debaixo do casaco e retirou um cartão de contacto, estendendo-o na
direção de João, que de repente parecia em agonia, sobressaltando-a. – O que se
passa? Sente-se bem?
- Essa…
onde é que… - conseguiu dizer com a boca a secar, enquanto apontava para a mala
de Marta.
- A mala? –
perguntou espantada.
- Sim! –
exclamou mais duramente. – Onde é que encontrou essa mala?
- Não sei…
deram-ma. – respondeu confusa, poisando o cartão na mesa.
João
respirou fundo, bebendo mais um gole de chá, a tentar controlar todos os
sintomas que já lhe eram tão familiares. Poisou a cabeça nas mãos, apoiando-se
com os cotovelos na mesa e o silêncio crescia perturbadoramente.
- Passa-se alguma coisa? Por favor,
fale. O que o incomoda? Foi a carteira que lhe lembrou de algo? – perguntou
Marta tentando perceber o que se passava com aquele homem tão estranho.
Tocou-lhe no pulso, num gesto de compaixão, mas João repeliu-a
instantaneamente, sacudindo-lhe a mão com vigor, de forma grosseira, e Marta
levantou-se a medo. Aquele homem começava a assusta-la.
- Desculpe.
Fiquei apenas surpreendido. – desculpou-se, ao ver o pânico dela com a sua
reação.
- Tenho de
ir. Obrigada pelo chá. Vemo-nos por aí. – caminhou para fora do café o mais
rápido que conseguiu a sentir o coração na boca. Há muito tempo que não tinha
medo. Metia-se em cada uma… lamentava-se, temendo que o homem a seguisse e lhe
fizesse algum mal. Bolas! Deixara lá o cartão… gemeu.
João tentou
levantar-se e alcançá-la, mas as pernas simplesmente não colaboravam. A
descarga de adrenalina que sentia nos ataques de pânico paralisavam-no sempre.
Chamou o empregado, terminando o chá a contra gosto, nem sabia bem porquê,
pediu a conta e manteve-se um momento a olhar a rua, com uma angústia diferente
do normal. Olhou o talão e não pôde deixar de sorrir, a maluca tinha-o
arrastado até ali e depois pirava-se sem pagar. Excêntrica em tudo. Também
devia saber de astrologia e reiki, matutava cinicamente, com um bocado de sorte
lia a sina…
- Chá de
camomila? – riu-se César, satisfeito com aquela história atípica no dia a dia
cinzento e rotineiro de João.
- Nojento.
Mas bebi-o todo, não sei porquê. – comentou sem fazer grande caso, nem referir
a cena da mala, receoso de que aquela refeição se tornasse num inquérito
psicanalista.
Elisabete
colocava o jantar na mesa, curiosa com a descrição de João, de quem gostava
quase como um filho, embora não tivesse idade suficiente para ser mãe de um
quarentão. Conhecera-o por intermédio do marido, professor e tutor do excelente
aluno de psiquiatria que mais tarde se tornaria colega de trabalho.
Inicialmente aquele rapaz era cheio de carisma e vigor, mas em casa de ferreiro
espeto de pau, costumava comentar com César, quando este se martirizava por não
conseguir curar o amigo. Havia coisas que marcavam uma pessoa profundamente, e
para Elisabete, embora as estatísticas o desmentissem, os homens eram muito
mais fracos mentalmente que as mulheres, apenas nunca pediam ajuda nem chegavam
aos gabinetes dos psiquiatras. Bebiam, drogavam-se, batiam nas mulheres, nos
filhos, etc, e assim iam convivendo com as suas “dores” emocionais. Mas o que
sabia ela de problemas mentais, perguntava-se a si própria com sarcasmo, apenas
aturava o rei dos malucos há mais de vinte anos e nunca tinha tomado um
“Valdispert” sequer.
- Yoga,
precisas de uma atividade que te acalme e relaxe. Eu adoro! Não troco a minha
Martita por nada, é uma deusa do bom astral. Saio sempre de lá revigorada. –
comentou Elisabete, sentando-se ao lado do marido e de frente para João.
- Disseste
Martita? – perguntou curioso, seria muita coincidência.
- Sim, é a
minha instrutora, ali em Celas. Porquê? Conheces?
- Acho que
é dela que estava a falar. Cabelo castanho ondulado, comprido? Cara oval, olhos
castanhos claros, um sinal mesmo aqui, por cima do lábio? – apontou com o dedo.
- Parece-me
que tiraste o rx à rapariga. – gozou César enfiando uma garfada de lasanha
vegetariana na boca e sorrindo.
- Deve ser
a mesma! – exclamou Elisabete entusiasmada.
João
retirou o cartão do bolso e mostrou-o, guardando-o de novo, depois de Elisabete
confirmar que era de facto a “sua Martita” instrutora, a mesma do chá de
Camomila.
- Que
estranho… eu achei-a meia tola, mas se dizes que é boa pessoa… - ironizou – mas
esquece lá o yoga. Não tenho paciência, nem tempo. – rematou friamente. Não lhe
parecia nada boa ideia meter-se nessas cenas alternativas, era demasiado
céptico para se permitir relaxar vestido de “pijama”, rodeado por pessoas
sorridentes.
- A Lisa
tem razão. Devias pensar nisso. Experimentar outras coisas, sem ser só bares às
tantas da noite e mulheres de ocasião. – sugeriu paternalmente César – O que é
que perdes em ir lá uma vez?
- A aula de
experiência é grátis! – acrescentou Elisabete animada.
- Não sei…
acho difícil, tenho as próximas semanas cheias de marcações, ao fim do dia já
só me apetece ir para casa e dormir. – disse cheio de convicção, repetindo a
lasanha que estava deliciosa. – Isto só leva legumes? Até é bom…
- Receita
da Martita! Ela é vegetariana, sabem, tem cá uma imaginação com legumes… -
comentou fingindo-se a falar para os dois, mas com a intenção clara de informar
João de pormenores sobre a rapariga do café.
- Eu
percebo o que estão a tentar fazer. – olhou o casal com censura – Não estou
interessado, mas obrigado pela preocupação.
- Querido,
já chega de penitência. – disse Elisabete emocionada.
- Quem
disse que ando a fazer penitência?! – rugiu João demasiado francamente. –
Desculpa, não queria ser mal educado.
- Não te
preocupes, eu faço muito yoga, tenho paciência para dar e vender.
- Podias
vender um bocado aqui ao João. – brincou César que adorava aqueles jantares
entre os três. A mulher conseguia sempre arrancar do João mais do que ele. No seu gabinete mantinham-se calados a olhar
um para o outro. João recusava-se a falar o que sentia e ele simplesmente nunca
o forçaria.
(direitos reservados, afsr)
(imagem, internet)
Sem comentários:
Enviar um comentário