sábado, 7 de abril de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 2 (2ª parte)





- Sim, entre. – respondeu ao suave toque na porta que o tirou dos seus pensamentos. – Bom dia, como está?

            O dia passou lento, doloroso, como se o relógio se arrastasse de propósito, alongando aquelas conversas impensáveis, de gente desorientada com os acontecimentos da vida. A maioria não aceitava a morte dos seus, o filho problemático, o marido agressivo, ou não raras as vezes, não conseguia conviver consigo mesmo. Queriam remédios eficazes, soluções milagrosas, recusavam-se a aceitar que ele não fosse mágico. Um médico psiquiatra que nem de si conseguia cuidar, pensava com angústia, como poderia ajudar aqueles amarelentos todos?

            - Até amanhã Diana. – grunhiu só por educação, já com a cabeça a latejar de dores. Precisava de se deitar um pouco no escuro e recuperar de tanto horror alheio.
            - Até amanhã, Dr. – respondeu Diana sem vontade. Custava-lhe ser ligeiramente simpático?, pensava com rancor daquele médico soturno e fechado.
            João enfiou-se no elevador e agradeceu aos céus estar sozinho durante uns minutos. Que dia…, lamentava-se exausto, encostado ao espelho. Parou no rés do chão e saiu calmamente para o átrio, quando viu uma mulher a sair da escadaria de emergência que ninguém usava, a não ser que os elevadores avariassem. Vinha a chorar, descontrolada, e passou-lhe mesmo à frente, ignorando-o, como se não visse nada à sua volta. João olhou cúmplice para os colegas e alguns doentes que por ali passavam, e todos os que sabiam da sua especialidade lhe sugeriram que a tentasse alcançar, ajudando-a. Não que alguém lho tivesse dito, claro, mas os olhares estavam carregados de insinuação, e João obedeceu. Apressou o passo, para a tentar alcançar, mas a mulher não fazia caso dos seus chamamentos.
            - Sra! Espere por favor! – exclamou, conseguindo agarrar-lhe num braço.
            - Mas… O que foi? – perguntou surpresa com aquele contacto, ainda com a cara cheia de lágrimas.
            - Desculpe… - disse a recuperar o fôlego da corrida – Vi-a a sair das escadas de incêndio a chorar, precisa de ajuda?
            - Não! – respondeu prontamente – Mas agora uma pessoa já não pode chorar?  - perguntou fungando alto.
            - Bem… claro, que estupidez. Se não precisa de nada, ainda melhor. – concluiu, virando costas. Mais uma maluca, não obrigado, pensou afastando-se aliviado.
            - Espere! – gritou a mulher alcançando-o – Desculpe, não queria ser mal educada. Mas apanhou-me a meio da minha catarse… preciso de chorar uma quantidade certa, entende? Senão não fico aliviada. Mas obrigada pela atenção. – explicou-se, recompondo-se com demasiada rapidez, pensava João.
            - Catarse?! – disse João sem pensar.
            -Sim, é muita energia negativa lá dentro, se não deito cá para fora, rebento! – disse de sopetão.
            - Desculpe, não entendi, mas… - e ia terminar a sua deixa politicamente correta com “ainda bem que não precisa de ajuda, então adeus, peço desculpa pelo mal entendido”, mas não teve hipótese.
            - Venha, vamos ali ao café do lado que eu explico-lhe. – agarrou-lhe no braço e dirigiu-o à esquina da rua onde havia um pequeno café sempre cheio de utentes, médicos e funcionários da clínica.
            - Tenho de ir para casa… - conseguiu dizer no meio do espanto, mas a mulher tinha força, constatou surpreso, já a entrar no estabelecimento e a sentar-se sem perceber bem como.
            - Vou ser muito rápida! – explicou, sorrindo-lhe satisfeita. – O que quer beber? Para mim um chá de camomila, para ver se me acalmo, - disse decidida ao empregado que aguardava de pé junto à mesa – o melhor é serem dois. – concluiu, despachando-o.
            - Eu não gosto de chá. – comentou João pouco satisfeito com aquela metediça.
            - Quem é que não gosta de chá? – insurgiu-se quase ofendida.
            - Eu. – disse laconicamente.
            - Adiante! Porque referiu especificamente há pouco que eu vinha das “escadas de incêndio a chorar”? – perguntou-lhe curiosa.
            - Psicologia a esta hora? – gozou com sarcasmo. – Chá ainda aguento…
            - Não é nada disso, não sou psicóloga. – explicou, ignorando o tom maldisposto. – Fiquei curiosa, apenas.
            - Olá, o meu nome é João, como se chama? – ironizou, estendendo-lhe a mão.
            - Sim, claro… Olá João, o meu nome é Marta. Sou um bocado matraca, desculpa. Posso tratar-te por tu?
            - Pode. – disse no meio de um suspiro de resignação – Ia falar-me da tal catarse…
            - Ah, sim, claro! – encostou-se na cadeira, relaxada – Eu venho aqui todas as semanas, à Oncologia, e por vezes fico assim, emotiva.
            - Tem alguém conhecido lá internado? – perguntou com interesse, sabia o que era visitar uma pessoa querida naquelas enfermarias.
            - Não, faço voluntariado. – explicou sorridente, colocando metade do pacote de açúcar no chá.
            - Então afeiçoou-se a alguém? Isso acontece. É a chamada empatia, que só os humanos conseguem.
            - Não é nada disso. – abanou a cabeça para reforçar o que sentia – Sempre que alguém morre, ou recebe aquelas notícias terríveis dos médicos, com sentenças sem retorno, não consigo deixar de chorar pelos parentes. A dor que se vê nos seus olhos é bastante dura de aguentar… - deu um gole no chá e olhou-o curiosa – Assim um pouco como se vê no teu olhar, quando falas, principalmente. -  rematou, continuando a olhá-lo cientificamente.
            - É cansaço, “dores” da profissão. – mentiu, sentindo-se desconfortável com o rumo da conversa.
            - Hum… pode ser. Ainda não bebeste o chá. Vamos, vais ver que te passa já a dor. – piscou-lhe o olho divertida, levantando a chícara.
            - Horrível… - grunhiu depois do primeiro gole.
            - O que arde cura, o que aperta segura, e o que sabe mal faz bem! – brincou.
            - Isso não rima. – advertiu-a sem vestígios de humor.
            - Mas que exigente… Afinal, qual é a tua profissão?
            - Psiquiatra.
            - Está explicado. – exclamou, dando uma palmada no tampo da mesa. - Deves chorar imenso no fim das consultas.
            - Nem por isso. – gozou, imaginando como seria ridículo se ficasse em prantos todas as vezes que saísse alguém do gabinete.
            - Por isso é que estás assim, cheio de tristeza. – concluiu pragmaticamente, como se fosse a coisa mais óbvia do mundo. – Precisas de chorar. Ou então de umas aulas de yoga e meditação, o que é mais a minha especialidade. – pegou na carteira que trazia debaixo do casaco e retirou um cartão de contacto, estendendo-o na direção de João, que de repente parecia em agonia, sobressaltando-a. – O que se passa? Sente-se bem?
            - Essa… onde é que… - conseguiu dizer com a boca a secar, enquanto apontava para a mala de Marta.
            - A mala? – perguntou espantada.
            - Sim! – exclamou mais duramente. – Onde é que encontrou essa mala?
            - Não sei… deram-ma. – respondeu confusa, poisando o cartão na mesa.
            João respirou fundo, bebendo mais um gole de chá, a tentar controlar todos os sintomas que já lhe eram tão familiares. Poisou a cabeça nas mãos, apoiando-se com os cotovelos na mesa e o silêncio crescia perturbadoramente.
- Passa-se alguma coisa? Por favor, fale. O que o incomoda? Foi a carteira que lhe lembrou de algo? – perguntou Marta tentando perceber o que se passava com aquele homem tão estranho. Tocou-lhe no pulso, num gesto de compaixão, mas João repeliu-a instantaneamente, sacudindo-lhe a mão com vigor, de forma grosseira, e Marta levantou-se a medo. Aquele homem começava a assusta-la.
            - Desculpe. Fiquei apenas surpreendido. – desculpou-se, ao ver o pânico dela com a sua reação.
            - Tenho de ir. Obrigada pelo chá. Vemo-nos por aí. – caminhou para fora do café o mais rápido que conseguiu a sentir o coração na boca. Há muito tempo que não tinha medo. Metia-se em cada uma… lamentava-se, temendo que o homem a seguisse e lhe fizesse algum mal. Bolas! Deixara lá o cartão… gemeu.
            João tentou levantar-se e alcançá-la, mas as pernas simplesmente não colaboravam. A descarga de adrenalina que sentia nos ataques de pânico paralisavam-no sempre. Chamou o empregado, terminando o chá a contra gosto, nem sabia bem porquê, pediu a conta e manteve-se um momento a olhar a rua, com uma angústia diferente do normal. Olhou o talão e não pôde deixar de sorrir, a maluca tinha-o arrastado até ali e depois pirava-se sem pagar. Excêntrica em tudo. Também devia saber de astrologia e reiki, matutava cinicamente, com um bocado de sorte lia a sina…


            - Chá de camomila? – riu-se César, satisfeito com aquela história atípica no dia a dia cinzento e rotineiro de João.
            - Nojento. Mas bebi-o todo, não sei porquê. – comentou sem fazer grande caso, nem referir a cena da mala, receoso de que aquela refeição se tornasse num inquérito psicanalista.
            Elisabete colocava o jantar na mesa, curiosa com a descrição de João, de quem gostava quase como um filho, embora não tivesse idade suficiente para ser mãe de um quarentão. Conhecera-o por intermédio do marido, professor e tutor do excelente aluno de psiquiatria que mais tarde se tornaria colega de trabalho. Inicialmente aquele rapaz era cheio de carisma e vigor, mas em casa de ferreiro espeto de pau, costumava comentar com César, quando este se martirizava por não conseguir curar o amigo. Havia coisas que marcavam uma pessoa profundamente, e para Elisabete, embora as estatísticas o desmentissem, os homens eram muito mais fracos mentalmente que as mulheres, apenas nunca pediam ajuda nem chegavam aos gabinetes dos psiquiatras. Bebiam, drogavam-se, batiam nas mulheres, nos filhos, etc, e assim iam convivendo com as suas “dores” emocionais. Mas o que sabia ela de problemas mentais, perguntava-se a si própria com sarcasmo, apenas aturava o rei dos malucos há mais de vinte anos e nunca tinha tomado um “Valdispert” sequer.
            - Yoga, precisas de uma atividade que te acalme e relaxe. Eu adoro! Não troco a minha Martita por nada, é uma deusa do bom astral. Saio sempre de lá revigorada. – comentou Elisabete, sentando-se ao lado do marido e de frente para João.
            - Disseste Martita? – perguntou curioso, seria muita coincidência.
            - Sim, é a minha instrutora, ali em Celas. Porquê? Conheces?
            - Acho que é dela que estava a falar. Cabelo castanho ondulado, comprido? Cara oval, olhos castanhos claros, um sinal mesmo aqui, por cima do lábio? – apontou com o dedo.
            - Parece-me que tiraste o rx à rapariga. – gozou César enfiando uma garfada de lasanha vegetariana na boca e sorrindo.
            - Deve ser a mesma! – exclamou Elisabete entusiasmada.
            João retirou o cartão do bolso e mostrou-o, guardando-o de novo, depois de Elisabete confirmar que era de facto a “sua Martita” instrutora, a mesma do chá de Camomila.
            - Que estranho… eu achei-a meia tola, mas se dizes que é boa pessoa… - ironizou – mas esquece lá o yoga. Não tenho paciência, nem tempo. – rematou friamente. Não lhe parecia nada boa ideia meter-se nessas cenas alternativas, era demasiado céptico para se permitir relaxar vestido de “pijama”, rodeado por pessoas sorridentes.
            - A Lisa tem razão. Devias pensar nisso. Experimentar outras coisas, sem ser só bares às tantas da noite e mulheres de ocasião. – sugeriu paternalmente César – O que é que perdes em ir lá uma vez?
            - A aula de experiência é grátis! – acrescentou Elisabete animada.
            - Não sei… acho difícil, tenho as próximas semanas cheias de marcações, ao fim do dia já só me apetece ir para casa e dormir. – disse cheio de convicção, repetindo a lasanha que estava deliciosa. – Isto só leva legumes? Até é bom…
            - Receita da Martita! Ela é vegetariana, sabem, tem cá uma imaginação com legumes… - comentou fingindo-se a falar para os dois, mas com a intenção clara de informar João de pormenores sobre a rapariga do café.
            - Eu percebo o que estão a tentar fazer. – olhou o casal com censura – Não estou interessado, mas obrigado pela preocupação.
            - Querido, já chega de penitência. – disse Elisabete emocionada.
            - Quem disse que ando a fazer penitência?! – rugiu João demasiado francamente. – Desculpa, não queria ser mal educado.
            - Não te preocupes, eu faço muito yoga, tenho paciência para dar e vender.
            - Podias vender um bocado aqui ao João. – brincou César que adorava aqueles jantares entre os três. A mulher conseguia sempre arrancar do João mais do que ele.  No seu gabinete mantinham-se calados a olhar um para o outro. João recusava-se a falar o que sentia e ele simplesmente nunca o forçaria.



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