- Dr!
– exclamou Dona Rosário ao encontrar João caído na varanda,
embrulhado no edredon. – Acorde, Dr., acorde, por favor! – disse
aflita, sem saber se estava vivo ou morto.
-
Ham…? – João abriu os olhos e ergueu-se do chão com
dificuldade, sentia o corpo dormente e pesado de ter dormido todo
torto. – Já chegou? Mas que horas são? – sobressaltou-se com a
ideia de que já estaria atrasado para a primeira consulta do dia.
-
Ainda é cedo, - acalmou-o Rosário, a empregada diária que o
mantinha humanamente ordenado há alguns anos – vamos, vou
fazer-lhe café e umas torradinhas, vá-se arranjar. E dê cá esse
edredon! – ralhou maternalmente, cheia de vida e energia.
João
invejava-a na sua simplicidade, uma senhora que se levantava com as
galinhas, apanhava a camioneta e vinha dos arredores de Coimbra para
o aturar a partir das 8h00 da manhã, desde que Isabel adoecera, sem
nunca ter tido um contratempo e maleita que a impedisse de cumprir o
seu dever. De cara rosada e com um simples casaquito no corpo,
qualquer que fosse a estação do ano, chegava afogueada e pronta
para o que fosse preciso fazer.
-
Obrigado – entregou-lhe o grande edredon, arrastou-se para o quarto
de banho, engoliu mais um comprimido da felicidade instantânea e
sorriu ironicamente para o seu reflexo assustador no espelho. “Não
sei quem ainda te paga para os curares…”
Sentia-se
bem melhor quando se sentou à mesa da cozinha para tomar o
pequeno-almoço que já enchia o individual solitário naquele espaço
demasiado largo para apenas um.
-
Sente-se aqui um bocado, beba um café. – pediu a Rosário, que já
estava habituada a fazer-lhe companhia de manhã, mas que mantinha
sempre o seu ar atarefado antes do Dr. a convidar a sentar. Nunca
tomaria a iniciativa de o fazer se ele não a chamasse, mas gostava
daquele momento em particular no seu longo dia. Aquele rapaz era
demasiado triste e precisava de muita atenção, dizia a si mesma
enternecida com o semblante envelhecido do seu patrão, e esse era um
dos motivos porque nunca faltava ou preguiçava com alguma doença
sazonal. O que era uma gripe comparada com a tristeza? Essa maldita
levara-lhe uma irmã, que não resistiu ao desespero e se tinha
suicidado, fazia já quinze anos. Se dependesse dela, o Dr. nunca
chegaria a esse ponto.
- Com
licença, - disse cerimoniosamente antes de se sentar – quer mais
torradas? Posso ir fazer num instante! – exclamou dedicada.
-
Não, está óptimo. Conte-me lá, hoje o motorista vinha mais bem
disposto? – perguntou João mais animado, adorava ouvi-la contar
por palavras suas as peripécias das viagens de camioneta.
- Bom
dia Dr. João! – cumprimentou formalmente a administrativa daquele
andar da clínica privada, o “piso dos desaparafusados”, como lhe
chamavam na brincadeira os funcionários do prédio.
- Bom
dia Diana. Já chegou a primeira marcação? – perguntou, deitando
um olhar discreto à já cheia sala de espera, que o fez sentir um
arrepio frio na espinha. “Que gente feia e amarelenta…”,
lamentou-se, forçando um sorriso para a plateia esmorecida e pouco
comunicativa. Por mais que os anos passassem nunca deixava de o
impressionar aquela imagem, doentes psiquiátricos todos juntos numa
sala, acompanhados de familiares à beira de um ataque de nervos, era
deprimente. Um movimento rápido de uma cabeça pô-lo curioso, e ao
ver um pequeno rapazinho a olhar assustado para o homem sem vida ao
seu lado, virou-se automaticamente para a funcionária, que
estremeceu com o seu olhar furioso. – Eu não lhe disse já que não
atendo crianças? – vociferou o mais baixo que conseguiu inclinado
para ela.
- Eu
sei, mas… - tentava Diana explicar-se, nervosa.
-
Mas, mas,.. mas nada! Trate de os despachar para o Nogueira. –
voltou-se sem lhe dar mais hipóteses de argumentar e bateu a porta
do consultório.
Com
mais força! – gritava-lhe o irmão mais novo, a pedir que João
lhe empurrasse o baloiço. – Daqui a nada sais a voar! –
respondeu, dando um impulso ainda maior e rindo com o espírito
corajoso de Filipe. – Meninos! Venham jantar! – chamou a mãe
naquele tom melodioso característico das horas de comer. Correram os
dois para ver quem chegava primeiro. Filipe detinha o recorde,
orgulhoso e fazia sempre uma festa quando atingia a porta mais
depressa que o irmão mais velho. A casa cheirava a assado, o prato
preferido dos dois. Continuaram a corrida para ver quem lavava as
mãos mais depressa, mas o pequeno Filipe sorria-lhe esticando-se a
pedir ajuda para chegar ao sabonete. – Dá cá esses dedinhos
marotos!
(direitos reservados, afsr)
(imagem, internet)
Sem comentários:
Enviar um comentário