sexta-feira, 6 de abril de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 2 (1ª parte)




         - Dr! – exclamou Dona Rosário ao encontrar João caído na varanda, embrulhado no edredon. – Acorde, Dr., acorde, por favor! – disse aflita, sem saber se estava vivo ou morto.
          - Ham…? – João abriu os olhos e ergueu-se do chão com dificuldade, sentia o corpo dormente e pesado de ter dormido todo torto. – Já chegou? Mas que horas são? – sobressaltou-se com a ideia de que já estaria atrasado para a primeira consulta do dia.
           - Ainda é cedo, - acalmou-o Rosário, a empregada diária que o mantinha humanamente ordenado há alguns anos – vamos, vou fazer-lhe café e umas torradinhas, vá-se arranjar. E dê cá esse edredon! – ralhou maternalmente, cheia de vida e energia.
   João invejava-a na sua simplicidade, uma senhora que se levantava com as galinhas, apanhava a camioneta e vinha dos arredores de Coimbra para o aturar a partir das 8h00 da manhã, desde que Isabel adoecera, sem nunca ter tido um contratempo e maleita que a impedisse de cumprir o seu dever. De cara rosada e com um simples casaquito no corpo, qualquer que fosse a estação do ano, chegava afogueada e pronta para o que fosse preciso fazer.
          - Obrigado – entregou-lhe o grande edredon, arrastou-se para o quarto de banho, engoliu mais um comprimido da felicidade instantânea e sorriu ironicamente para o seu reflexo assustador no espelho. “Não sei quem ainda te paga para os curares…”


        Sentia-se bem melhor quando se sentou à mesa da cozinha para tomar o pequeno-almoço que já enchia o individual solitário naquele espaço demasiado largo para apenas um.
          - Sente-se aqui um bocado, beba um café. – pediu a Rosário, que já estava habituada a fazer-lhe companhia de manhã, mas que mantinha sempre o seu ar atarefado antes do Dr. a convidar a sentar. Nunca tomaria a iniciativa de o fazer se ele não a chamasse, mas gostava daquele momento em particular no seu longo dia. Aquele rapaz era demasiado triste e precisava de muita atenção, dizia a si mesma enternecida com o semblante envelhecido do seu patrão, e esse era um dos motivos porque nunca faltava ou preguiçava com alguma doença sazonal. O que era uma gripe comparada com a tristeza? Essa maldita levara-lhe uma irmã, que não resistiu ao desespero e se tinha suicidado, fazia já quinze anos. Se dependesse dela, o Dr. nunca chegaria a esse ponto.
        - Com licença, - disse cerimoniosamente antes de se sentar – quer mais torradas? Posso ir fazer num instante! – exclamou dedicada.
          - Não, está óptimo. Conte-me lá, hoje o motorista vinha mais bem disposto? – perguntou João mais animado, adorava ouvi-la contar por palavras suas as peripécias das viagens de camioneta.





         - Bom dia Dr. João! – cumprimentou formalmente a administrativa daquele andar da clínica privada, o “piso dos desaparafusados”, como lhe chamavam na brincadeira os funcionários do prédio.
        - Bom dia Diana. Já chegou a primeira marcação? – perguntou, deitando um olhar discreto à já cheia sala de espera, que o fez sentir um arrepio frio na espinha. “Que gente feia e amarelenta…”, lamentou-se, forçando um sorriso para a plateia esmorecida e pouco comunicativa. Por mais que os anos passassem nunca deixava de o impressionar aquela imagem, doentes psiquiátricos todos juntos numa sala, acompanhados de familiares à beira de um ataque de nervos, era deprimente. Um movimento rápido de uma cabeça pô-lo curioso, e ao ver um pequeno rapazinho a olhar assustado para o homem sem vida ao seu lado, virou-se automaticamente para a funcionária, que estremeceu com o seu olhar furioso. – Eu não lhe disse já que não atendo crianças? – vociferou o mais baixo que conseguiu inclinado para ela.
          - Eu sei, mas… - tentava Diana explicar-se, nervosa.
          - Mas, mas,.. mas nada! Trate de os despachar para o Nogueira. – voltou-se sem lhe dar mais hipóteses de argumentar e bateu a porta do consultório.


Com mais força! – gritava-lhe o irmão mais novo, a pedir que João lhe empurrasse o baloiço. – Daqui a nada sais a voar! – respondeu, dando um impulso ainda maior e rindo com o espírito corajoso de Filipe. – Meninos! Venham jantar! – chamou a mãe naquele tom melodioso característico das horas de comer. Correram os dois para ver quem chegava primeiro. Filipe detinha o recorde, orgulhoso e fazia sempre uma festa quando atingia a porta mais depressa que o irmão mais velho. A casa cheirava a assado, o prato preferido dos dois. Continuaram a corrida para ver quem lavava as mãos mais depressa, mas o pequeno Filipe sorria-lhe esticando-se a pedir ajuda para chegar ao sabonete. – Dá cá esses dedinhos marotos!


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