Dormiu
agitada com todas as sensações fortes da noite, levantando-se de
madrugada para fazer uma infusão calmante e exercícios de
meditação. Há muito tempo que não se sentia assim, excitada e
ligeiramente apaixonada, o que a deixava inquieta e distraída, a
mistura ideal para as insónias. Arrependia-se de não o ter
agarrado, mas também tinha prometido a si mesma dar um tempo nas
maluqueiras do Amor. Imaginara-o a parar o elevador e a beijá-la
dramaticamente, vezes sem fio, como uma tortura mental e de certa
maneira, física. Dava corda à sua inquietação hormonal, sabendo
que dali podia nunca nascer nada, já que ela própria enterrara as
primeiras hipóteses com a mentira parva de que era gay, pensava
censurando-se. O fantasma de Tiago também lhe ensombrava os desejos,
transformando-lhe os doces pensamentos em angustiosos receios. Temia
acima de tudo que ele a descobrisse, e se isso acontecesse, cumprisse
as ameaças que lhe fizera à saída do tribunal. Esse dia de
libertação e alívio deveria ter colocado um ponto final no seu
pesadelo, mas Tiago não tinha sido condenado por todas as agressões
e torturas a que a tinha submetido durante os dois anos em que tinham
sido casados. Escapara à lei pelas cínicas dificuldades em provar a
intenção dos crimes, sorrira-lhe ao ouvir o veredicto, e Marta não
teve outra alternativa senão fugir. Tinha-lhe sido proibida qualquer
tentativa de aproximação, mas um ex-marido obsessivo não acataria
qualquer ordem, nem mesmo da justiça. A ideia de que João pudesse
ser envolvido no meio dos seus problemas acabou por lhe silenciar a
mente sonhadora, colocando um ponto final nas suas fantasias
noturnas, substituídas pela antiga angústia, que a sossegaram como
um bálsamo. Acabou por ceder ao sono já quase de manhã, com Filipe
rabugento a seus pés por também se sentir cansado das voltas e
voltas que a dona dera na cama, a procurar a posição de descanso vezes sem
conta.
Acordou demasiado cedo, poucas horas depois, com o cão a
pisá-la sem piedade, nervoso com algum barulho vindo da rua. Marta
abriu um olho, praguejando com ele e empurrando-o para fora da cama,
zangada. Levantou-se contrariada, vestiu o robe de verão por cima do
conjunto de calções e alças pouco próprio para ir à rua e
arrastou-se pela casa, sentindo-se morta viva.
-
Quem é?- perguntou com a voz ensonada, antes de abrir.
-
Sou eu, o João. – respondeu cheio de energia.
-
Hoje é sábado. – informou-o mantendo a porta fechada.
-
Eu sei, anda, abre. - pediu animado.
Marta
abriu uma fresta da porta e olhou-o com cara de poucos amigos, sem
reagir ao ar fresco e feliz do seu perturbador de sonhos.
-
Bom dia! Mas que cara é essa? – empurrou a porta sem cerimónias,
trazendo sacos nas mãos e dirigindo-se à cozinha.
-
Cara de quem estava finalmente a dormir. – confessou, caindo no
sofá amuada.
-
Eu dormi maravilhosamente! – exclamou de dentro da cozinha, e como
pagamento pela tua massagem vim fazer-te o pequeno almoço e
convidar-te para irmos passear.
-
Aceito o comer. Passear onde? – grunhiu com a cara na almofada do
sofá.
-
Isso é surpresa! – respondeu sorridente, enquanto dispunha a
comida na mesa de centro perto do sofá. Sentou-se animado na
poltrona em frente de Marta e começou a comer fazendo-lhe sinal para
que o imitasse.
Marta
levantou-se obediente, sentindo-se cada vez pior e mais deprimida.
Cada minuto que passava com João a faziam temer ter encontrado o
homem ideal, o que seria uma tragédia, para ambos. Antes de
adormecer tomara uma difícil decisão, a de colocar um ponto final
em tudo aquilo e afastar-se dele, mas nem ela nem Filipe lhe
conseguiam resistir, constatou enternecida ao ver como o cão o
adorava, colocando o seu focinho no joelho de João, à espera de um
pedaço de pão.
-
O que se passa? Acordas sempre assim tão carrancuda? – brincou,
curioso com o clima pesado que se sentia naquela casa, ao contrário
da habitual serenidade.
-
Desculpa, tive insónias. Não dormi bem… quase nada, mesmo. –
confessou, sorrindo com esforço, sem o encarar.
-
Se quiseres posso ir embora. – disse com preocupação, pousando a
chávena de chá – Não devia ter vindo sem avisar, desculpa.
-
Não. Fizeste bem em aparecer. Vou tomar banho e vamos então à tal
surpresa. - levantou-se e dirigiu-se à cozinha, colocando uma
grande panela de água ao lume, deixando-o intrigado da utilidade que
ela daria a tanto líquido, não seria para chá, com certeza. Como
se lesse os seus pensamentos, ela esclareceu-o; precisava de tomar um
banho antes de sair, e não tinha esquentador, logo, aquecia água,
temperava com fria e colocava num balde que tinha um fundo com um
adaptador de chuveiro, bastante primitivo, mas eficaz.
-
Tomas banho assim? Sempre? – perguntou escandalizado com a
trabalheira que era tomar duche naquela casa.
-
Sim, vai dar no mesmo, só não posso ficar tempos infinitos debaixo
de água. E já que aqui estás, traz-me a panela com a água quente,
por favor. – piscou-lhe os olhos em súplica.
-
Temos de modernizar esta casa! – ralhou, carregando com dificuldade
os vários litros de água até à casa de banho.
-
Temos?! – espantou-se com aquela utilização do plural que lhe deu
um nó na barriga.
-
Força de expressão. – corrigiu envergonhado. Sentia-se tão bem
ali que às vezes se esquecia de que era somente um convidado. –
Queres ajuda para esfregar as costas? – brincou, colocando a água
dentro do balde/chuveiro.
-
Não, obrigada. Agora sai. – disse-lhe a sentir-se corar. Não lhe
faltava mais nada, pensou enervada, ficar a imaginá-lo no banho…
Depois
de muito insistir, Marta conseguiu convencê-lo a levarem o seu
pequeno jipe para o passeio; seria muito mais prático para dar
voltas e não teriam problemas com os estofos de pele do carro
desportivo, quando Filipe se esfregasse no banco traseiro, como ficou
provado, assim que entraram no veículo e o cão limpou a baba do
focinho nos tapetes grossos que cobriam os assentos. João aceitou
sem mais discussão e resignou-se ao lugar do morto, aproveitando
para a observar com mais atenção, entusiasmado com a destreza com
que Marta fintava os buracos da estrada, resultado da experiência
que tinha do terreno.
-
E dirijo-me para onde, Sr. co-piloto? – perguntou, curiosa com o
destino surpresa.
-
Podes ir andando, que eu vou dizendo. – respondeu, sem revelar mais
informações, satisfeito com a reação amuada dela. – A tua dona
é muito controladora… - disse em direção a Filipe, que o
observava com as orelhas em pé.
-
Não acho nada bem, andares a colocar o meu cão contra mim. –
reagiu, olhando-os com censura e descontraindo pela primeira vez
desde que acordara.
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(imagem, internet)
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