quinta-feira, 26 de abril de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 6 (2ª parte)


      


      Dormiu agitada com todas as sensações fortes da noite, levantando-se de madrugada para fazer uma infusão calmante e exercícios de meditação. Há muito tempo que não se sentia assim, excitada e ligeiramente apaixonada, o que a deixava inquieta e distraída, a mistura ideal para as insónias. Arrependia-se de não o ter agarrado, mas também tinha prometido a si mesma dar um tempo nas maluqueiras do Amor. Imaginara-o a parar o elevador e a beijá-la dramaticamente, vezes sem fio, como uma tortura mental e de certa maneira, física. Dava corda à sua inquietação hormonal, sabendo que dali podia nunca nascer nada, já que ela própria enterrara as primeiras hipóteses com a mentira parva de que era gay, pensava censurando-se. O fantasma de Tiago também lhe ensombrava os desejos, transformando-lhe os doces pensamentos em angustiosos receios. Temia acima de tudo que ele a descobrisse, e se isso acontecesse, cumprisse as ameaças que lhe fizera à saída do tribunal. Esse dia de libertação e alívio deveria ter colocado um ponto final no seu pesadelo, mas Tiago não tinha sido condenado por todas as agressões e torturas a que a tinha submetido durante os dois anos em que tinham sido casados. Escapara à lei pelas cínicas dificuldades em provar a intenção dos crimes, sorrira-lhe ao ouvir o veredicto, e Marta não teve outra alternativa senão fugir. Tinha-lhe sido proibida qualquer tentativa de aproximação, mas um ex-marido obsessivo não acataria qualquer ordem, nem mesmo da justiça. A ideia de que João pudesse ser envolvido no meio dos seus problemas acabou por lhe silenciar a mente sonhadora, colocando um ponto final nas suas fantasias noturnas, substituídas pela antiga angústia, que a sossegaram como um bálsamo. Acabou por ceder ao sono já quase de manhã, com Filipe rabugento a seus pés por também se sentir cansado das voltas e voltas que a dona dera na cama, a procurar a posição de descanso vezes sem conta. 
       Acordou demasiado cedo, poucas horas depois, com o cão a pisá-la sem piedade, nervoso com algum barulho vindo da rua. Marta abriu um olho, praguejando com ele e empurrando-o para fora da cama, zangada. Levantou-se contrariada, vestiu o robe de verão por cima do conjunto de calções e alças pouco próprio para ir à rua e arrastou-se pela casa, sentindo-se morta viva.
          - Quem é?- perguntou com a voz ensonada, antes de abrir.
          - Sou eu, o João. – respondeu cheio de energia.
          - Hoje é sábado. – informou-o mantendo a porta fechada.
          - Eu sei, anda, abre. - pediu animado.
         Marta abriu uma fresta da porta e olhou-o com cara de poucos amigos, sem reagir ao ar fresco e feliz do seu perturbador de sonhos.
       - Bom dia! Mas que cara é essa? – empurrou a porta sem cerimónias, trazendo sacos nas mãos e dirigindo-se à cozinha.
         - Cara de quem estava finalmente a dormir. – confessou, caindo no sofá amuada.
        - Eu dormi maravilhosamente! – exclamou de dentro da cozinha, e como pagamento pela tua massagem vim fazer-te o pequeno almoço e convidar-te para irmos passear.
         - Aceito o comer. Passear onde? – grunhiu com a cara na almofada do sofá.
       - Isso é surpresa! – respondeu sorridente, enquanto dispunha a comida na mesa de centro perto do sofá. Sentou-se animado na poltrona em frente de Marta e começou a comer fazendo-lhe sinal para que o imitasse.
       Marta levantou-se obediente, sentindo-se cada vez pior e mais deprimida. Cada minuto que passava com João a faziam temer ter encontrado o homem ideal, o que seria uma tragédia, para ambos. Antes de adormecer tomara uma difícil decisão, a de colocar um ponto final em tudo aquilo e afastar-se dele, mas nem ela nem Filipe lhe conseguiam resistir, constatou enternecida ao ver como o cão o adorava, colocando o seu focinho no joelho de João, à espera de um pedaço de pão.
       - O que se passa? Acordas sempre assim tão carrancuda? – brincou, curioso com o clima pesado que se sentia naquela casa, ao contrário da habitual serenidade.
        - Desculpa, tive insónias. Não dormi bem… quase nada, mesmo. – confessou, sorrindo com esforço, sem o encarar.
        - Se quiseres posso ir embora. – disse com preocupação, pousando a chávena de chá – Não devia ter vindo sem avisar, desculpa.
      - Não. Fizeste bem em aparecer. Vou tomar banho e vamos então à tal surpresa. - levantou-se e dirigiu-se à cozinha, colocando uma grande panela de água ao lume, deixando-o intrigado da utilidade que ela daria a tanto líquido, não seria para chá, com certeza. Como se lesse os seus pensamentos, ela esclareceu-o; precisava de tomar um banho antes de sair, e não tinha esquentador, logo, aquecia água, temperava com fria e colocava num balde que tinha um fundo com um adaptador de chuveiro, bastante primitivo, mas eficaz.
     - Tomas banho assim? Sempre? – perguntou escandalizado com a trabalheira que era tomar duche naquela casa.
      - Sim, vai dar no mesmo, só não posso ficar tempos infinitos debaixo de água. E já que aqui estás, traz-me a panela com a água quente, por favor. – piscou-lhe os olhos em súplica.
       - Temos de modernizar esta casa! – ralhou, carregando com dificuldade os vários litros de água até à casa de banho.
       - Temos?! – espantou-se com aquela utilização do plural que lhe deu um nó na barriga.
    - Força de expressão. – corrigiu envergonhado. Sentia-se tão bem ali que às vezes se esquecia de que era somente um convidado. – Queres ajuda para esfregar as costas? – brincou, colocando a água dentro do balde/chuveiro.
      - Não, obrigada. Agora sai. – disse-lhe a sentir-se corar. Não lhe faltava mais nada, pensou enervada, ficar a imaginá-lo no banho…

        Depois de muito insistir, Marta conseguiu convencê-lo a levarem o seu pequeno jipe para o passeio; seria muito mais prático para dar voltas e não teriam problemas com os estofos de pele do carro desportivo, quando Filipe se esfregasse no banco traseiro, como ficou provado, assim que entraram no veículo e o cão limpou a baba do focinho nos tapetes grossos que cobriam os assentos. João aceitou sem mais discussão e resignou-se ao lugar do morto, aproveitando para a observar com mais atenção, entusiasmado com a destreza com que Marta fintava os buracos da estrada, resultado da experiência que tinha do terreno.
      - E dirijo-me para onde, Sr. co-piloto? – perguntou, curiosa com o destino surpresa.
   - Podes ir andando, que eu vou dizendo. – respondeu, sem revelar mais informações, satisfeito com a reação amuada dela. – A tua dona é muito controladora… - disse em direção a Filipe, que o observava com as orelhas em pé.
     - Não acho nada bem, andares a colocar o meu cão contra mim. – reagiu, olhando-os com censura e descontraindo pela primeira vez desde que acordara.

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(imagem, internet)

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