terça-feira, 10 de abril de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 3 (2ª parte)





Saiu do veículo, trancou-o e avançou receoso, só esperava que não houvesse cães na quinta, suspirou aterrorizado com a ideia de ser mordido. Detestava aqueles bichos barulhentos e estúpidos, e não era amado de volta. Desde criança que transmitia uma energia maléfica qualquer que fazia o mais fofinho dos cachorros morder-lhe os calcanhares. Empurrou o portão, e entrou no terreno, em posição de defesa, em alerta total para correr no sentido contrário se ouvisse ladrar.
Já fizera metade do caminho que dava acesso à casa de madeira pré-fabricada, quando surgiu das traseiras o mais horrendo de todos os canídeos, que avançava em silêncio na sua direção, com cara de poucos amigos. João deu meia volta e começou a correr, olhando freneticamente o portão e o cão. – Merda, merda! – berrava – Isto não está a acontecer! – choramingou desesperado, percebendo que não teria hipótese de ser mais rápido que aquelas quatro patas enormes. O cão saltou apanhando balanço do sprint e deitou-o ao chão com facilidade, mantendo-se possessivamente em cima de João, que se mantinha de olhos fixos e aterrorizados na bocarra babosa do bicho.
- Filipe! Filipe! – gritou uma voz de mulher ao longe, mas quem seria o Filipe, perguntava-se João confuso, mas mais aliviado por saber que afinal alguém o iria ajudar. – Filipe! – ralhou a voz – Larga já o Senhor!
Marta tirou o enorme cão de cima de João, que parecia em pânico, pálido e sem reação. – Eu peço desculpa, espero que ele não o tenha aleijado… - começou a dizer estendendo-lhe uma mão para o levantar – Mas… és o psiquiatra do café! – exclamou nervosa. O que faria ali aquele doido, e como tinha dado com a sua casa?
- Ainda bem que apareceu… - sussurrou João de joelhos, tentando levantar-se com as pernas trémulas.
- Está todo sujo, veio até aqui a pé? – perguntou receosa de que ele fosse ainda mais maluco do que lhe parecera naquele dia do café.
- Não, vim de carro. Aliás, precisava que me ajudasse… - conseguiu dizer, ainda em choque com a queda e o ataque daquela besta. – Tenho um pneu furado.
- Vamos lá então ver isso. – disse mais aliviada. – Filipe, Fica! – ordenou, sendo prontamente obedecida pelo cão, que se sentou diligente.
- Está aqui fora, vim até aqui com medo que escurecesse no meio do caminho. –confessou sem se aperceber. – Estava a ver que partia o carro todo por baixo…
- O que é isto? – exclamou Marta com entusiasmo ao ver o carrão desportivo de João parado ali à sua porta.
- Um BMW 420d coupé… - respondeu prontamente, satisfeito com a reação dela. Era de facto um carro muito bonito. Olhava-a de boca aberta a admirar a sua bomba azul metalizado, e abriu o carro com o comando, para que ela pudesse verificar também os interiores, que não ficavam atrás daquela primeira impressão de quem via de fora. Marta deslizava com a mão nas curvas do carro e aquela visão era demasiado sexy para não o perturbar. Deixou cair as chaves com a surpresa dos gestos sensuais da mulher e regressou à realidade, concentrando-se no pneu, a fazer esforço para não a olhar como um tarado. Precisava de ajuda e ela era a única habitante das redondezas.
- E trouxeste este carro até aqui? Que crime. – afagou o tecto do veículo, como se acariciasse algum animal gigante em sofrimento.
- Sim, já me arrependi. – disse secamente, ao se aperceber de que o modelo era dos tais que traziam remendos. – Porra! – resmungou – Eu agora sei lá onde está o furo para remendar…
- Ah, pois, estes bebés são assim, muito temperamentais. – brincou, apreciando o mau humor do homem que precisava da ajuda de uma mulher para solucionar problemas masculinos. – Agora só chamando a assistência em viagem. – concluiu, começando a caminhar de volta para casa. – Se quiseres, podes entrar e esperar lá dentro.
João seguiu-a frustrado, aquilo iria demorar, mais valia esperar com companhia.


A decoração da casa surpreendeu-o pela positiva, tinha imaginado velas e incensos a fumegar, à imagem e semelhança da forma excêntrica de vestir de Marta, mas tudo ali era simples e acolhedor, como se estivessem em casa de uma terceira pessoa.
- Senta-te. – ordenou-lhe Marta, enquanto se dirigia à cozinha, como se aquela presença não a incomodasse. Tinha percebido o efeito que a sua espontaneidade provocara no homem, quando admirava o carro, e isso seria um problema. Não estava minimamente preparada para lidar com emoções carnais ou sentimentais.
- Porque é que o cão se chama Filipe? – perguntou a medo, intimidado pela vigilância que o animal lhe fazia, mesmo sentado à sua frente, sem piscar os olhos.
- Porque tem cara de Filipe. – respondeu de volta.
- Ah… ok. – engoliu em seco, tentando desviar o olhar do cão.
- Chá? – ironizou Marta, trazendo um tabuleiro com duas chávenas e um bule que fumegava. – Parecia que estava a prever receber visitas, tinha colocado água ao lume e tudo. – sentou-se no sofá, cruzou as pernas à chinês, colocando a longa saia por cima e serviu-os. – Então agora, antes de eu mandar o Filipe atacar, explica-me o que fazes aqui em minha casa e convence-me de que não és um criminoso, maluco e psicopata.
- Claro, desculpa, deves achar que sou tudo isso… - tentou alcançar a chávena no tabuleiro, mas o cão não lhe permitia qualquer movimento para fora do sofá, e Marta teve de lha entregar, sorrindo sarcasticamente. – É de Camomila? – perguntou submisso.
- Não, Tília.
- Ah, cheira muito bem…
- Vamos, chega de salamaleques. – disse já a perder a paciência.
- Eu fiquei a pensar naquela tua proposta das aulas de yoga… - começou a inventar à pressão, tentando abstrair-se do animal – e…, bem, queria saber se sempre estavas disposta a ajudar-me,… porque eu não queria ir praticar isso no meio de uma sala cheia de gente. Ou seja, precisava de aulas particulares, se estivesses disposta, claro. Poderia pagar-te o que achasses ser justo pela tua exclusividade, claro. – disse, sem perceber de onde lhe vinha aquele discurso maluco.
- Hum… e não podias ter telefonado? – perguntou desconfiada daquele motivo.
- Pois… - merda, pensou envergonhado, não tinha pensado nessa hipótese – Eu liguei, várias vezes, mas nunca atendeste. – mentiu, sem vergonha, suspirando de alívio ao ver a cara de convencida dela.
- É possível. Eu detesto telefones, se fosse ao contrário, possivelmente também iria falar pessoalmente. – pensava em voz alta.
- E então? Podes ajudar-me a conviver melhor que o meu lado profissional? – perguntou já a encarnar no personagem.
- Talvez. Apenas preciso que saibas de uma coisa sobre mim, para então decidires se sempre queres aulas particulares. – explicou séria – Eu sou lésbica. – lançou sem piedade, angustiada ao ver um desapontamento no olhar dele. Mas porque é que tinha dito aquilo? Lamentou-se em pensamentos. Queria distância sentimental, não enganar o homem.
- Ok, parabéns. – que pena, pensou desiludido. Era bonita demais para ser gay. Mas o importante ali era encontrar a mala e resolver o problema.
- Não é um problema para ti? – perguntou espantada com a frieza dele.
- Não, eu só quero aulas de yoga, não arranjar namorada. – escarneceu, sentindo-se miserável. Como poderia uma lésbica ser tão sensual, ali sentada à chinês de roupas andrajosas?
- Bem, se fosse hétero poderíamos chegar à lição prática do sexo tântrico, mas sendo assim, dou-te a teórica apenas e depois tu praticas em casa. – respondeu vingativa, reagindo à frieza com que ele a desdenhava.
João cuspiu parte do chá que bebia com ar de superior.
- Sexo quê? – balbuciou, limpando a boca com um guardanapo que ela lhe estendeu.
- Bem, estou a ver que vamos começar Mesmo do princípio. – lamentou-se teatralmente, enquanto se dirigia a uma prateleira carregada de livros e procurava um dos manuais da prática para principiantes. – Aqui está! Levas este e vais lendo em casa. Agora vou arranjar-te uma roupa confortável e vamos esticar a coluna. – saiu da sala e deixou-o aparvalhado com o livro nas mãos.
João olhava o calhamaço sem saber o que pensar, era tudo tão estranho e diferente do que estava habituado, a casa, a mulher, os modos dela, talvez fossem assim as lésbicas, matutava, de facto não conhecia pessoalmente nenhuma, pelo menos que soubesse. Pegou no telemóvel, que tinha pouquíssima rede dentro de casa e levantou-se devagar, sem tirar os olhos do cão, que o seguiu em silêncio até ao alpendre, para tentar chamar a assistência em viagem. Pediu a ajuda necessária e foi informado de que o serviço seria efetuado nas próximas quatro horas, o que o deixou mais aliviado com a esperança de que ainda sairia dali a tempo de ir jantar e dormir.
A mulher demorava-se lá dentro e João aproveitou para dar uma vista de olhos pela sala para tentar encontrar a mala, o que o tinha levado até aquele sítio inóspito. Não podia mexer-se com rapidez, temia que o cão o atacasse, e mantinha-se calmo a olhar todos os cantos, mas nada de carteira, pensava frustrado.
- Quando quiseres, podes mudar de roupa e vamos lá para dentro. – disse Marta que apareceu de repente, entregando-lhe uns trapos coçados e feios.
- Lá para dentro? – perguntou desconfiado. Ainda bem que ela era lésbica, pensou aliviado, aquilo estava a tornar-se bem desconfortável.
- Sim, fica à vontade, eu vou andando para a sala, quando estiveres pronto, última porta à direita. – explicou calmamente, deixando-o sozinho com Filipe.
João tirou as suas roupas sujas e formais e vestiu as calças largas e a t-shirt olhando-se ao espelho horrorizado. Parecia um hippie desvairado, de meias caras calçadas. Avançou na direção da sala e entrou receoso em silêncio. Não se sentia nada confortável, aquilo tinha sido a pior ideia de sempre, mas agora o mal já estava feito, disse a si mesmo resignado, sentando-se no chão a observar a mulher que se mantinha de costas para ele, naquela posição de chinês, virada para a parede, que continha símbolos estranhos e bonecadas feias, serpentes, elefantes, mulheres com dezenas de braços, dantesco e nada acolhedor, como o resto da casa que conhecia.
- Quando quiseres, podemos começar. – disse quebrando o silêncio enervante da sala.
- Shhhh, aqui não se fala, sussurra-se. – avisou-o baixinho, num tom quase em surdina, voltando-se para ele e indicando-lhe com um gesto de mão que imitasse a sua posição. – Pernas cruzadas, por favor, a esquerda por dentro, mãos poisadas nos joelhos, palmas para cima. Olhos fechados, e respira calmamente. – enumerou num ritmo cadenciado, fazendo os gestos correspondentes. – Para praticar yoga é preciso apenas isto, silêncio, respiração controlada, e é isso que hoje vamos fazer: Pranayama, a expansão da força vital com exercícios respiratórios, traduziu calmamente.
Aquilo era difícil, muito mais difícil do que imaginara. Ficar sentado de olhos fechados apenas a respirar, lamentava-se João que ouvia a sua mente em agitação com aquela prática anti-natural. Estava constantemente a ser tentado a espreitar a sua professora, que se mantinha num transe qualquer sem reagir, a fazer o tal Prayamama ou como é que aquilo se chamava.
- Pouco barulho! – repreendeu-o Marta, que sabia que ele continuava a pensar demais. Levantou-se em silêncio e colocou-se por trás de João a corrigir-lhe a postura das costas e cabeça. Carregou-lhe nos rins, forçando-o a inclinar a bacia para a frente, baixou-lhe os ombros hirtos e colocou-lhe a cabeça na posição certa, sentindo-o muito quente e nervoso. – Agora mantém-te assim, o polegar a tocar o dedo do meio, em Shuni Mudra, que te vai ajudar a concentrares-te e deixares os pensamentos de lado. Respira só com o abdómen, sem levantar os ombros, inspira devagar, barriga para fora, até onde conseguires, e expira pela boca, apertando o estômago, deitando todo o ar fora, até aquele que achas que já não tens lá dentro. – enumerou naquele tom melódico e quente, que o descontraiu automaticamente.
Marta levantou-se e colocou uma música suave de um Mantra calmante, observando-o curiosa. Era um bom aluno, com um bom corpo para a prática, talvez ainda conseguisse fazer dele um yogi. Sentou-se na sua frente, limpou a cabeça de emoções e dúvidas e imitou-o.
Passou mais de meia hora, e Marta regressou à realidade, abrindo os olhos e espantando-se ao dar com João caído de lado, a dormir profundamente, como uma criança, com a cabeça de Filipe, que também ressonava, sobre o seu peito. A respiração ritmada acalmara-o demais, pensou divertida, saindo da sala e voltando com uma manta para o tapar. Deixou-o aconchegado e desligou a luz.


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(imagem, internet)

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