- Não sejas teimosa, isso não
combina, fica horrível! – exclamava já enervado com a insistência
de Isabel em querer ir ao jantar de Natal da Clínica com o vestido
de gala e aquela mala desgastada e berrante. – Não te sabia tão
conhecedor de moda… - ironizava, sabendo que o iria irritar ainda
mais. – Se levas isso ao ombro, então não vamos! – berrava já
a perder as estribeiras com aquele comportamento da mulher. – Eu
não vou, pronto, se te incomodo assim tanto. – bateu a porta do
quarto e trancou-se novamente. – Isabel, por favor, deixa-te de
palermices.
Acordou
do transe com o bater insistente da porta do consultório.
-
Sim, entre. – disse, ainda angustiado com as lembranças que não
o deixavam em paz.
-
Olá boa tarde Dr. – sussurrou uma mulher de meia idade, de
olheiras fundas e cor acinzentada.
-
Boa tarde, sente-se por favor. O meu nome é João, - cumprimentou-a
com um passou bem, fazendo o ar mais profissional que conseguia,
impressionado com o aspeto degradado e sem vida a que algumas pessoas
chegavam.
-
Obrigada.
-
Então, comecemos pelo início, como se chama?
A
casa estava escura e silenciosa, João tinha bebido um pouco demais
por se sentir chateado com a mulher, e tentava encontrar o caminho
até ao quarto sem fazer barulho. Percebeu com alívio que ela
destrancara a porta, entrou e sentou-se na beira da cama a olhá-la.
Continuava bonita, como sempre, mas algo tinha mudado entre os dois.
Não sabia bem quando acontecera, mas a dada altura dera por si a
deixar-se levar pela conversa dengosa da sua secretária, que o
assediava sem culpas desde o primeiro dia. Quando a olhava assim
tinha remorsos, muitos remorsos, pois apenas a contemplava, como se
ela ainda fosse a antiga Isabel, doce, alegre e divertida. Depois ela
acordava e todos os fantasmas se erguiam com ela, os filhos que ele
ainda não tinha vontade de ter, por sentir que a iriam roubar dele,
a mágoa que ela trazia desde então… Não tinham ainda bebés, e
eles já lhes tinham destruído o casamento, pensava rancoroso.
Detestava-os, os seus filhos por nascer. E isso não o deixava em
paz. Filipe era um dos motivos, mas não lho podia dizer, jurara
nunca falar sobre isso. Aquele irmão pequeno, sorridente, o primeiro
“filho” que a vida lhe tinha trazido, e que ele tinha deixado
afogar-se…
-
Dr., peço desculpa, mas acho que já passou uma hora… - disse a
medo, não queria ser indelicada.
-
Sim, claro. Estava aqui a pensar no que me tinha dito. –
desculpou-se sem grande convicção. As mãos começavam-lhe a suar,
e teve de limpar as palmas nas calças, antes de prescrever os
remédios. – Quero que comece por tomar um destes, e consoante a sua
recuperação, quando se sentir mais calma, reduza para meio. Se
conseguir, até à próxima consulta, deixe de tomar, e depois
conversamos melhor. – sorriu-lhe satisfeito, ao ver um rasgo de
esperança no olhar da paciente. Se ao menos ele fosse tão fácil de
convencer. Seria tudo mais simples. Alguém lhe diria: “toma um
destes e vais ficar curado!”
-
Muito obrigada, Dr. – exclamou feliz, pegando na receita como se de
algo sagrado se tratasse. – Então até daqui a um mês.
-
Adeus, e as melhoras. – levantou-se, como habitualmente e
acompanhou a senhora à porta, fechando mais um dia de loucuras e
desesperos alheios.
Tinha
estado todo o dia em ansiedade, não percebia bem o motivo. Desde o
dia do chá de camomila que sentia umas ânsias que iam e vinham, e a
culpada era dela, a porcaria da mala. Já pensara em arranca-la à
força da mulher, queimá-la num ermo, acabar de vez com aquilo, mas
por ironia do destino, ou simples azar, a mulher evaporara-se. Quase
que entrara no piso da Oncologia, só para a procurar, mas as pernas
não obedeciam, e limitava-se a fazer tempo no hall de entrada, na
esperança de que ela tornasse a sair pelas escadas de incêndio.
Sentia-se um perseguidor ridículo, mas tinha de resolver aquele
assunto, senão nunca mais teria paz.
Tornou
a sentar-se no sofá impessoal do rés-do-chão, esperou duas horas,
e nada. A maluca desaparecera. Passou pelo café, só para se
certificar de que ela não estava a beber o chá horroroso, mas
também não havia sinal dela, nem a tinham visto desde o dia em que
conversaram na mesa do canto.
Já
pensara em telefonar-lhe, mas dir-lhe-ia o quê? “olha, dá cá a
tua mala que tenho de a destruir! Obrigado”, era tão ridículo que
assustaria a mulher. Olhou o cartão e estranhou uma vez mais alguém
só ter número de telefone fixo. Maluca… rosnou frustrado. Não
tinha morada, só nome, telefone e umas estrelas desenhadas à mão,
poderia aquilo ser mais excêntrico?
-
Que burro! - exclamou de repente, ciente de que na sua paranoia não
percebera o óbvio; o número fixo e o nome deviam aparecer na lista
amarela, ou como é que se chamava aquele antigo calhamaço com os
números de todos e de toda a gente, pensava com o coração na boca,
enquanto corria de volta para a clínica pra tentar encontrar uma
Lista Telefónica.
Entrou esbaforido em direção ao balcão de
informação e por sorte havia lá numa gaveta uma lista
significativamente mais fina que aquelas de que se lembrava. Claro,
só as empresas e meia dúzia de pessoas mantinham números de
telefone fixos, concluiu cheio de si, enquanto folheava o livro
freneticamente. À primeira não encontrou o apelido dela no local
óbvio, mas depois de reler as páginas dos nomes começados por P
descobriu o local onde estaria o objecto da sua tortura. Arrancou a
página sem pensar, meteu-a no bolso e dirigiu-se à garagem da
clínica em passo apressado. Escreveu a morada no GPS do computador
de bordo e esperou batendo os dedos no volante pela direção
correta.
“Avance 50 metros e vire à direita!” –
ordenou a voz de Sócrates, uma piada que tinha instalado na memória
do GPS, para distrair a cabeça sempre que não lhe apetecia ouvir
música.
- Sim, Sr Ex-Primeiro Ministro! – respondeu
animado, acelerando para fora da garagem e cortando à direita.
Nunca tinha estado naquela zona verdejante da
cidade, onde não havia um único asfalto decente, o que o
aterrorizava, visto que o seu carro era pouco dado a caminhos de
todo-o-terreno. Cada solavanco eram facadas na suspensão do
desportivo coupé que lhe tinha custado os olhos da cara.
- Caramba!, se te estás a enganar no caminho,
troco-te pelo António Costa. – praguejou contra as indicações do
GPS falante. Seria possível que alguém no seu perfeito juízo
quisesse morar num sítio daqueles? Se ali houvesse um fogo morria
tudo.
Um buraco enorme surgiu sem que João
percebesse a tempo, ou conseguisse evitar, raspando o carro com
demasiada força no chão, provocando-lhe um arrepio na espinha.
-
Merda! – praguejou alto, parando o carro e saindo para se
certificar de que ainda não havia peças soltas pelo chão.
Deitou-se na terra batida para espreitar por debaixo do carro, que
parecia ainda intacto, suspirou de alívio, quando vislumbrou um dos
pneus bastante mais vazio que os restantes. – Ó não… - engoliu
em seco, pensando na trabalheira que iria ser mudar ali um pneu
sozinho, sem assistência em viagem, e nem sabia ao certo se aquele
modelo ainda trazia pneu sobresselente, ou vinha equipado com aquelas
modernices de remendos que não sabia como funcionavam, muito menos
ao final da tarde que ameaçava a escuridão da noite num ermo
isolado. As guinadas na coluna começaram a avisá-lo de que
precisava de ser mais calmo e pragmático, senão iria entrar em
pânico no meio de nenhures, como uma adolescente com chiliques.
Respirou fundo e decidiu conduzir mais um pouco até à casa da
maluca, já não faltava muito e talvez ela o ajudasse.
Sentou-se ao volante, sentindo-o escorregar das
mãos suadas e sujas de terra, desabotoou alguns botões da camisa
outrora imaculada e abriu o vidro para respirar melhor, sentindo-se a
ceder à ansiedade. Conduziu o mais lentamente possível, na
tentativa de minimizar os estragos na roda, praguejando contra os
seus impulsos idiotas que lhe iam custar caro. Tudo aquilo para
encontrar a mala e ainda não conseguira imaginar como a iria
“roubar” da mulher para concluir o seu plano alucinado. Respirava
ritmadamente, como uma mulher em trabalho de parto quando “Sócrates”
o felicitou pela chegada ao destino. Olhou em volta e ficou estático
sem saber como reagir. Não havia sinais de campainha, nem badalos
que avisassem o proprietário de visitas, como se faria anunciar?,
pensou, cada vez mais ansioso. Não podia sequer fugir dali,
precisava de ajuda para arranjar o carro…
(direitos reservados, afsr)
(imagem, internet)
Sem comentários:
Enviar um comentário