segunda-feira, 9 de abril de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 3 (1ª parte)






- Não sejas teimosa, isso não combina, fica horrível! – exclamava já enervado com a insistência de Isabel em querer ir ao jantar de Natal da Clínica com o vestido de gala e aquela mala desgastada e berrante. – Não te sabia tão conhecedor de moda… - ironizava, sabendo que o iria irritar ainda mais. – Se levas isso ao ombro, então não vamos! – berrava já a perder as estribeiras com aquele comportamento da mulher. – Eu não vou, pronto, se te incomodo assim tanto. – bateu a porta do quarto e trancou-se novamente. – Isabel, por favor, deixa-te de palermices.

Acordou do transe com o bater insistente da porta do consultório.
        - Sim, entre. – disse, ainda angustiado com as lembranças que não o deixavam em paz.
     - Olá boa tarde Dr. – sussurrou uma mulher de meia idade, de olheiras fundas e cor acinzentada.
      - Boa tarde, sente-se por favor. O meu nome é João, - cumprimentou-a com um passou bem, fazendo o ar mais profissional que conseguia, impressionado com o aspeto degradado e sem vida a que algumas pessoas chegavam.
       - Obrigada.
       - Então, comecemos pelo início, como se chama?


A casa estava escura e silenciosa, João tinha bebido um pouco demais por se sentir chateado com a mulher, e tentava encontrar o caminho até ao quarto sem fazer barulho. Percebeu com alívio que ela destrancara a porta, entrou e sentou-se na beira da cama a olhá-la. Continuava bonita, como sempre, mas algo tinha mudado entre os dois. Não sabia bem quando acontecera, mas a dada altura dera por si a deixar-se levar pela conversa dengosa da sua secretária, que o assediava sem culpas desde o primeiro dia. Quando a olhava assim tinha remorsos, muitos remorsos, pois apenas a contemplava, como se ela ainda fosse a antiga Isabel, doce, alegre e divertida. Depois ela acordava e todos os fantasmas se erguiam com ela, os filhos que ele ainda não tinha vontade de ter, por sentir que a iriam roubar dele, a mágoa que ela trazia desde então… Não tinham ainda bebés, e eles já lhes tinham destruído o casamento, pensava rancoroso. Detestava-os, os seus filhos por nascer. E isso não o deixava em paz. Filipe era um dos motivos, mas não lho podia dizer, jurara nunca falar sobre isso. Aquele irmão pequeno, sorridente, o primeiro “filho” que a vida lhe tinha trazido, e que ele tinha deixado afogar-se…

       - Dr., peço desculpa, mas acho que já passou uma hora… - disse a medo, não queria ser indelicada.
    - Sim, claro. Estava aqui a pensar no que me tinha dito. – desculpou-se sem grande convicção. As mãos começavam-lhe a suar, e teve de limpar as palmas nas calças, antes de prescrever os remédios. – Quero que comece por tomar um destes, e consoante a sua recuperação, quando se sentir mais calma, reduza para meio. Se conseguir, até à próxima consulta, deixe de tomar, e depois conversamos melhor. – sorriu-lhe satisfeito, ao ver um rasgo de esperança no olhar da paciente. Se ao menos ele fosse tão fácil de convencer. Seria tudo mais simples. Alguém lhe diria: “toma um destes e vais ficar curado!”
     - Muito obrigada, Dr. – exclamou feliz, pegando na receita como se de algo sagrado se tratasse. – Então até daqui a um mês.
     - Adeus, e as melhoras. – levantou-se, como habitualmente e acompanhou a senhora à porta, fechando mais um dia de loucuras e desesperos alheios.
Tinha estado todo o dia em ansiedade, não percebia bem o motivo. Desde o dia do chá de camomila que sentia umas ânsias que iam e vinham, e a culpada era dela, a porcaria da mala. Já pensara em arranca-la à força da mulher, queimá-la num ermo, acabar de vez com aquilo, mas por ironia do destino, ou simples azar, a mulher evaporara-se. Quase que entrara no piso da Oncologia, só para a procurar, mas as pernas não obedeciam, e limitava-se a fazer tempo no hall de entrada, na esperança de que ela tornasse a sair pelas escadas de incêndio. Sentia-se um perseguidor ridículo, mas tinha de resolver aquele assunto, senão nunca mais teria paz.
     Tornou a sentar-se no sofá impessoal do rés-do-chão, esperou duas horas, e nada. A maluca desaparecera. Passou pelo café, só para se certificar de que ela não estava a beber o chá horroroso, mas também não havia sinal dela, nem a tinham visto desde o dia em que conversaram na mesa do canto.
Já pensara em telefonar-lhe, mas dir-lhe-ia o quê? “olha, dá cá a tua mala que tenho de a destruir! Obrigado”, era tão ridículo que assustaria a mulher. Olhou o cartão e estranhou uma vez mais alguém só ter número de telefone fixo. Maluca… rosnou frustrado. Não tinha morada, só nome, telefone e umas estrelas desenhadas à mão, poderia aquilo ser mais excêntrico?
- Que burro! - exclamou de repente, ciente de que na sua paranoia não percebera o óbvio; o número fixo e o nome deviam aparecer na lista amarela, ou como é que se chamava aquele antigo calhamaço com os números de todos e de toda a gente, pensava com o coração na boca, enquanto corria de volta para a clínica pra tentar encontrar uma Lista Telefónica.
Entrou esbaforido em direção ao balcão de informação e por sorte havia lá numa gaveta uma lista significativamente mais fina que aquelas de que se lembrava. Claro, só as empresas e meia dúzia de pessoas mantinham números de telefone fixos, concluiu cheio de si, enquanto folheava o livro freneticamente. À primeira não encontrou o apelido dela no local óbvio, mas depois de reler as páginas dos nomes começados por P descobriu o local onde estaria o objecto da sua tortura. Arrancou a página sem pensar, meteu-a no bolso e dirigiu-se à garagem da clínica em passo apressado. Escreveu a morada no GPS do computador de bordo e esperou batendo os dedos no volante pela direção correta.
“Avance 50 metros e vire à direita!” – ordenou a voz de Sócrates, uma piada que tinha instalado na memória do GPS, para distrair a cabeça sempre que não lhe apetecia ouvir música.
- Sim, Sr Ex-Primeiro Ministro! – respondeu animado, acelerando para fora da garagem e cortando à direita.


Nunca tinha estado naquela zona verdejante da cidade, onde não havia um único asfalto decente, o que o aterrorizava, visto que o seu carro era pouco dado a caminhos de todo-o-terreno. Cada solavanco eram facadas na suspensão do desportivo coupé que lhe tinha custado os olhos da cara.
- Caramba!, se te estás a enganar no caminho, troco-te pelo António Costa. – praguejou contra as indicações do GPS falante. Seria possível que alguém no seu perfeito juízo quisesse morar num sítio daqueles? Se ali houvesse um fogo morria tudo.
Um buraco enorme surgiu sem que João percebesse a tempo, ou conseguisse evitar, raspando o carro com demasiada força no chão, provocando-lhe um arrepio na espinha.
- Merda! – praguejou alto, parando o carro e saindo para se certificar de que ainda não havia peças soltas pelo chão. Deitou-se na terra batida para espreitar por debaixo do carro, que parecia ainda intacto, suspirou de alívio, quando vislumbrou um dos pneus bastante mais vazio que os restantes. – Ó não… - engoliu em seco, pensando na trabalheira que iria ser mudar ali um pneu sozinho, sem assistência em viagem, e nem sabia ao certo se aquele modelo ainda trazia pneu sobresselente, ou vinha equipado com aquelas modernices de remendos que não sabia como funcionavam, muito menos ao final da tarde que ameaçava a escuridão da noite num ermo isolado. As guinadas na coluna começaram a avisá-lo de que precisava de ser mais calmo e pragmático, senão iria entrar em pânico no meio de nenhures, como uma adolescente com chiliques. Respirou fundo e decidiu conduzir mais um pouco até à casa da maluca, já não faltava muito e talvez ela o ajudasse.
Sentou-se ao volante, sentindo-o escorregar das mãos suadas e sujas de terra, desabotoou alguns botões da camisa outrora imaculada e abriu o vidro para respirar melhor, sentindo-se a ceder à ansiedade. Conduziu o mais lentamente possível, na tentativa de minimizar os estragos na roda, praguejando contra os seus impulsos idiotas que lhe iam custar caro. Tudo aquilo para encontrar a mala e ainda não conseguira imaginar como a iria “roubar” da mulher para concluir o seu plano alucinado. Respirava ritmadamente, como uma mulher em trabalho de parto quando “Sócrates” o felicitou pela chegada ao destino. Olhou em volta e ficou estático sem saber como reagir. Não havia sinais de campainha, nem badalos que avisassem o proprietário de visitas, como se faria anunciar?, pensou, cada vez mais ansioso. Não podia sequer fugir dali, precisava de ajuda para arranjar o carro…



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