-
Não… não pode ser… não… - dizia com a cabeça nas mãos,
sentado no chão e balouçando-se ritmadamente. Sentia-se a
enlouquecer, não queria aceitar aquilo, porque se o fizesse cairia
no desespero, e não sabia se conseguiria voltar de lá inteiro. –
Desculpa filho… - disse o pai, que parecia um fantasma. – Agora
somos só nós os dois. – concluiu sem emoção, como se falasse de
algo trivial. João levantou-se e repeliu-o, aquela figura patética
e inútil que a tinha deixado sucumbir à doença, porque não fora
ele em vez da mãe?, gritava interiormente revoltado. Naquele dia
jurou não permitir que outras pessoas se matassem de tristeza, iria
ser Psiquiatra, curá-la-ias daquela doença e conseguiria fazê-las
ver o lado bom da vida. João não carregaria para sempre a culpa de
ter deixado Filipe afogar-se, e com ele, ter morrido uma parte da sua
mãe.
-
Dr., desculpe interromper… - disse a funcionária o mais
delicadamente possível, sabia bem que ele ficava tempos infinitos a
matutar em coisas e não gostava de ser incomodado.
-
Sim, diga. – regressou das suas recordações tristes, aliviado
pela interrupção.
- Há
um pequeno problema… - confessou envergonhada. – Telefonei para a
sua oficina e disseram-me que não é possível colocar barras de
transporte no modelo 420 coupé…, mas a bicicleta há para entrega
hoje! – rematou, tentado compensar a má notícia com a boa.
- Que
chatice… - resmungou frustrado com aquele contratempo. – Agora
como é que vou levar a bicicleta?... – perguntava-se.
-
Bem, eu estive a pensar numa solução, e se me der autorização,
vou à garagem, meço a mala do carro e vejo se cabe a bicicleta. Já
pedi as medidas dela por isso mesmo. – sugeriu Diana eficazmente.
-
Isso, faça isso. – deu-lhe as chaves do carro e sorriu satisfeito.
– Obrigada.
A
funcionária saiu do escritório radiante por conseguir agradar o
chefe difícil. Aquilo era uma estreia, pensava animada, só esperava
que a sua ideia resultasse.
-
Bem, Filipe, o melhor é deixarmo-nos de sonhos patetas, não achas?
Ele nunca mais cá vai aparecer. – lamentou-se Marta levantando-se
do banco corrido do alpendre. Tinha imensas coisas para fazer e
dera-lhe para pastelar à entrada da casa a olhar o portão. –
Idiota! – insultou-se, arrastando os pés até às obrigações
caseiras. Por ali era tudo feito à antiga, a Câmara prometera há
anos canalização e saneamento, mas Marta já deixara de pensar
nisso. Lavava tudo à mão, tirava água do poço e mantinha-se na
era medieval com algum esforço e pesar. Nem sempre vivera assim,
apenas se tinha mudado para ali há cinco anos, a princípio
provisoriamente, mas foi ficando, ano após ano e presentemente
gostava bastante de ali estar. Já não se adaptaria a um prédio ou
bairro urbanizado, com gente por toda a parte e barulhos humanos. Mas
se um dia pudesse ter máquina de lavar roupa outra vez, pensava
sonhadora, enquanto enchia o tanque com água e colocava algum
detergente para mergulhar umas peças grandes que precisavam de ficar
de molho um bom bocado. No verão ainda suportava lavar à mão, mas
no inverno era doloroso, fisicamente esgotante. Filipe olhava-a
preocupado, como se sentisse as suas mágoas e lhe ouvisse os
pensamentos, quando ficou subitamente hirto, de orelhas em pé a
rodar à procura de um som em particular e de cauda alegre.
- É
ele? – perguntou-lhe animada, sorrindo de orelha a orelha. – Vai
lá palerma! Vai recebê-lo e trá-lo aqui. Agora não posso deixar
isto por fazer. – ordenou ao cão que parecia compreender tudo o
que ela dizia, afastando-se. Tirou
os lençóis do tanque com alguma dificuldade, deu-lhe algumas voltas
e preparava-se para os torcer, quando João surgiu com Filipe a
saltitar à sua beira, como um cachorrinho feliz.
-
Olá… - cumprimentou-a, curioso com as manobras estranhas que ela
fazia com um pedaço de tecido gigante.
-
Olá, então voltaste? Estou a ver que gostaste da sesta. – brincou
Marta que começava a suar com a força que era necessária para
torcer lençóis.
-
Queres ajuda? – perguntou preocupado ao vê-la ganhar tantas cores
com o esforço.
-
Obrigada, agarra nessa ponta. – disse decidida – Agora viras para
a direita, com força. Isso… - agradeceu aos céus ter aparecido
ajuda, logo naquele momento. Normalmente ficava com dores nos pulsos
depois daquela tarefa, mas adorava deitar-se em roupa de cama
cheirosa, não tinha perfil para ser porca, nem mesmo por preguiça,
pensava pesarosa dos seus hábitos aristocratas.
-
Lavas sempre assim a roupa? – perguntou-lhe chocado com aquelas
tarefas pesadas para uma mulher sozinha. – Isto parece ser muito
difícil de se fazer sem ajuda…
- Às
vezes o Filipe agarra numa ponta e eu noutra, mas hoje está
preguiçoso. – gracejou, fugindo à ideia de que não pudesse ser
independente.
- E
quando chove? Como é que fazes? – continuou o interrogatório,
enquanto esticava a sua ponta do lençol na corda e a prendia com uma
mola que Marta lhe tinha dado.
-
Tenho de esperar que fique sol. – respondeu simplesmente.
- És
muito pragmática. Devias ensinar alguns dos meus pacientes a serem
assim, menos emocionais com as vicissitudes da vida. – sugeriu.
- Que
profundo, Sr Dr. – ironizou sorrindo e fazendo sinal para que ele
agarrasse no outro lençol e repetisse com ela a técnica anterior. –
Acho que os seus clientes ricalhaços têm é falta de lavar umas
colchas num tanque com água fria, que é para verem o que é bom
para a tosse. – escarneceu.
-
Calma, não lhes podemos dizer como é que ficam automaticamente
curados. Eu preciso de me sustentar! – gozou, torcendo a sua ponta
do lençol e esticando-a perfeitamente na corda.
-
Muito bem. Está ótimo! Vamos ao chá, antes da prática? – disse
sorrindo e caminhando para casa. Era muito fácil conversar com ele,
se ali ficassem distraídos perderiam a luz natural que ainda entrava
na sala.
- Mas
desta vez pode ser Camomila? – brincou, fazendo a mesma careta de
nojo que se lembrava ter feito no café.
- Com
mel! – acrescentou bem disposta.
-
Arghhh... – grunhiu arrepiando-se, só de imaginar a junção de duas
coisas que não gostava.
- Eu
logo vi que tinhas cara de não gostar de mel.
-
Pensei que fosses desistir das aulas, - comentou ao levantar as
chávenas da mesinha de centro onde tinham estado demasiado tempo à
conversa – não furaste mais nenhum pneu?
-
Hoje vim de bicicleta, - respondeu preguiçoso sem vontade de se
levantar do cadeirão fofo – amanhã não me consigo sentar, já
não me lembrava de como um selim podia ser doloroso. – bocejou
longamente a sentir-se cada vez mais sonolento. – Mas que raio tem
esse chá que tu fazes? Fico sempre com sono…
-
Vamos, levanta-te daí. – deu-lhe a mão e puxou-o com vigor. –
Hoje faremos menos tempo de Pranayama,
senão não aprendes nada. Precisas de roupa?
-
Não. – disse esfregando os olhos sem vontade nenhuma de se ir
exercitar. – Trouxe uma mochila com um fato de treino. Podes ir
andando que já lá vou ter.
-
Estás proibido de te tornar a sentar aí, não me vais andar a pagar
para dormires a sesta. Vamos Filipe. – chamou o cão que lhe
obedeceu sem reclamar, e dirigiu-se à sala de prática, deixando os
chinelos à porta. Sentou-se no seu lugar, virada para a parede, a
contemplar Ganesha, pedindo orientação para aquela aula.
Conetava-se com o poder daquele deus quando João entrou fazendo
barulho e desconcentrando-a. Teria de o educar para o silêncio, que
homem barulhento, constatava divertida. Parecia ele próprio um
pequeno elefante cheio de braços e orelhas gigantes, que batiam em
tudo ao seu redor. O som dele a sentar-se com estrondo fê-la
virar-se e olhá-lo com censura.
-
Estava a conversar com Ganesha, a pedir-lhe ajuda para a nossa aula.
Ele diz que vai tentar manter-te acordado e que tu fazes muito
barulho. – gracejou, colocando-se na posição de pernas cruzadas e
mãos abertas nos joelhos.
- E
qual destes é esse tal de Gane… - apontou para a parede.
- O
elefante fofinho. – respondeu já de olhos fechados.
-
Fofinho? Eu acho ligeiramente perturbador. – confessou, tentado
imitar na perfeição a posição inicial.
-
Hum… isso diz muito sobre ti. Já reparei que vês sempre o pior de
tudo em primeiro lugar. – comentou num tom já mais lento.
- A
Drª hoje está muito perspicaz! – gozou ligeiramente incomodado
com aquele comentário.
-
Shh… Mãos em Shuni Mudra. – ordenou – Agora repete comigo
“Ommmm”.
- Tem
mesmo que ser?
-
“Ommmm” – reforçou mais alto, tentando não sorrir.
João
fechou os olhos, satisfeito por ter finalmente encontrado uma amiga
que compreendia o seu sentido de humor. A primeira mulher bonita a
que apenas teria de dedicar amizade, pensou feliz.
(direitos reservados, afsr)
(imagem, internet)
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