sexta-feira, 13 de abril de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 4 (3ª parte)





- Não… não pode ser… não… - dizia com a cabeça nas mãos, sentado no chão e balouçando-se ritmadamente. Sentia-se a enlouquecer, não queria aceitar aquilo, porque se o fizesse cairia no desespero, e não sabia se conseguiria voltar de lá inteiro. – Desculpa filho… - disse o pai, que parecia um fantasma. – Agora somos só nós os dois. – concluiu sem emoção, como se falasse de algo trivial. João levantou-se e repeliu-o, aquela figura patética e inútil que a tinha deixado sucumbir à doença, porque não fora ele em vez da mãe?, gritava interiormente revoltado. Naquele dia jurou não permitir que outras pessoas se matassem de tristeza, iria ser Psiquiatra, curá-la-ias daquela doença e conseguiria fazê-las ver o lado bom da vida. João não carregaria para sempre a culpa de ter deixado Filipe afogar-se, e com ele, ter morrido uma parte da sua mãe.


    - Dr., desculpe interromper… - disse a funcionária o mais delicadamente possível, sabia bem que ele ficava tempos infinitos a matutar em coisas e não gostava de ser incomodado.
      - Sim, diga. – regressou das suas recordações tristes, aliviado pela interrupção.
     - Há um pequeno problema… - confessou envergonhada. – Telefonei para a sua oficina e disseram-me que não é possível colocar barras de transporte no modelo 420 coupé…, mas a bicicleta há para entrega hoje! – rematou, tentado compensar a má notícia com a boa.
     - Que chatice… - resmungou frustrado com aquele contratempo. – Agora como é que vou levar a bicicleta?... – perguntava-se.
      - Bem, eu estive a pensar numa solução, e se me der autorização, vou à garagem, meço a mala do carro e vejo se cabe a bicicleta. Já pedi as medidas dela por isso mesmo. – sugeriu Diana eficazmente.
     - Isso, faça isso. – deu-lhe as chaves do carro e sorriu satisfeito. – Obrigada.
    A funcionária saiu do escritório radiante por conseguir agradar o chefe difícil. Aquilo era uma estreia, pensava animada, só esperava que a sua ideia resultasse.


    - Bem, Filipe, o melhor é deixarmo-nos de sonhos patetas, não achas? Ele nunca mais cá vai aparecer. – lamentou-se Marta levantando-se do banco corrido do alpendre. Tinha imensas coisas para fazer e dera-lhe para pastelar à entrada da casa a olhar o portão. – Idiota! – insultou-se, arrastando os pés até às obrigações caseiras. Por ali era tudo feito à antiga, a Câmara prometera há anos canalização e saneamento, mas Marta já deixara de pensar nisso. Lavava tudo à mão, tirava água do poço e mantinha-se na era medieval com algum esforço e pesar. Nem sempre vivera assim, apenas se tinha mudado para ali há cinco anos, a princípio provisoriamente, mas foi ficando, ano após ano e presentemente gostava bastante de ali estar. Já não se adaptaria a um prédio ou bairro urbanizado, com gente por toda a parte e barulhos humanos. Mas se um dia pudesse ter máquina de lavar roupa outra vez, pensava sonhadora, enquanto enchia o tanque com água e colocava algum detergente para mergulhar umas peças grandes que precisavam de ficar de molho um bom bocado. No verão ainda suportava lavar à mão, mas no inverno era doloroso, fisicamente esgotante. Filipe olhava-a preocupado, como se sentisse as suas mágoas e lhe ouvisse os pensamentos, quando ficou subitamente hirto, de orelhas em pé a rodar à procura de um som em particular e de cauda alegre.
     - É ele? – perguntou-lhe animada, sorrindo de orelha a orelha. – Vai lá palerma! Vai recebê-lo e trá-lo aqui. Agora não posso deixar isto por fazer. – ordenou ao cão que parecia compreender tudo o que ela dizia, afastando-se. Tirou os lençóis do tanque com alguma dificuldade, deu-lhe algumas voltas e preparava-se para os torcer, quando João surgiu com Filipe a saltitar à sua beira, como um cachorrinho feliz.
    - Olá… - cumprimentou-a, curioso com as manobras estranhas que ela fazia com um pedaço de tecido gigante.
      - Olá, então voltaste? Estou a ver que gostaste da sesta. – brincou Marta que começava a suar com a força que era necessária para torcer lençóis.
      - Queres ajuda? – perguntou preocupado ao vê-la ganhar tantas cores com o esforço.
     - Obrigada, agarra nessa ponta. – disse decidida – Agora viras para a direita, com força. Isso… - agradeceu aos céus ter aparecido ajuda, logo naquele momento. Normalmente ficava com dores nos pulsos depois daquela tarefa, mas adorava deitar-se em roupa de cama cheirosa, não tinha perfil para ser porca, nem mesmo por preguiça, pensava pesarosa dos seus hábitos aristocratas.
    - Lavas sempre assim a roupa? – perguntou-lhe chocado com aquelas tarefas pesadas para uma mulher sozinha. – Isto parece ser muito difícil de se fazer sem ajuda…
     - Às vezes o Filipe agarra numa ponta e eu noutra, mas hoje está preguiçoso. – gracejou, fugindo à ideia de que não pudesse ser independente.
    - E quando chove? Como é que fazes? – continuou o interrogatório, enquanto esticava a sua ponta do lençol na corda e a prendia com uma mola que Marta lhe tinha dado.
     - Tenho de esperar que fique sol. – respondeu simplesmente.
    - És muito pragmática. Devias ensinar alguns dos meus pacientes a serem assim, menos emocionais com as vicissitudes da vida. – sugeriu.
    - Que profundo, Sr Dr. – ironizou sorrindo e fazendo sinal para que ele agarrasse no outro lençol e repetisse com ela a técnica anterior. – Acho que os seus clientes ricalhaços têm é falta de lavar umas colchas num tanque com água fria, que é para verem o que é bom para a tosse. – escarneceu.
    - Calma, não lhes podemos dizer como é que ficam automaticamente curados. Eu preciso de me sustentar! – gozou, torcendo a sua ponta do lençol e esticando-a perfeitamente na corda.
    - Muito bem. Está ótimo! Vamos ao chá, antes da prática? – disse sorrindo e caminhando para casa. Era muito fácil conversar com ele, se ali ficassem distraídos perderiam a luz natural que ainda entrava na sala.
    - Mas desta vez pode ser Camomila? – brincou, fazendo a mesma careta de nojo que se lembrava ter feito no café.
     - Com mel! – acrescentou bem disposta.
    - Arghhh... – grunhiu arrepiando-se, só de imaginar a junção de duas coisas que não gostava.
       - Eu logo vi que tinhas cara de não gostar de mel.

      - Pensei que fosses desistir das aulas, - comentou ao levantar as chávenas da mesinha de centro onde tinham estado demasiado tempo à conversa – não furaste mais nenhum pneu?
     - Hoje vim de bicicleta, - respondeu preguiçoso sem vontade de se levantar do cadeirão fofo – amanhã não me consigo sentar, já não me lembrava de como um selim podia ser doloroso. – bocejou longamente a sentir-se cada vez mais sonolento. – Mas que raio tem esse chá que tu fazes? Fico sempre com sono…
     - Vamos, levanta-te daí. – deu-lhe a mão e puxou-o com vigor. – Hoje faremos menos tempo de Pranayama, senão não aprendes nada. Precisas de roupa?
       - Não. – disse esfregando os olhos sem vontade nenhuma de se ir exercitar. – Trouxe uma mochila com um fato de treino. Podes ir andando que já lá vou ter.
      - Estás proibido de te tornar a sentar aí, não me vais andar a pagar para dormires a sesta. Vamos Filipe. – chamou o cão que lhe obedeceu sem reclamar, e dirigiu-se à sala de prática, deixando os chinelos à porta. Sentou-se no seu lugar, virada para a parede, a contemplar Ganesha, pedindo orientação para aquela aula. Conetava-se com o poder daquele deus quando João entrou fazendo barulho e desconcentrando-a. Teria de o educar para o silêncio, que homem barulhento, constatava divertida. Parecia ele próprio um pequeno elefante cheio de braços e orelhas gigantes, que batiam em tudo ao seu redor. O som dele a sentar-se com estrondo fê-la virar-se e olhá-lo com censura.
    - Estava a conversar com Ganesha, a pedir-lhe ajuda para a nossa aula. Ele diz que vai tentar manter-te acordado e que tu fazes muito barulho. – gracejou, colocando-se na posição de pernas cruzadas e mãos abertas nos joelhos.
     - E qual destes é esse tal de Gane… - apontou para a parede.
     - O elefante fofinho. – respondeu já de olhos fechados.
   - Fofinho? Eu acho ligeiramente perturbador. – confessou, tentado imitar na perfeição a posição inicial.
    - Hum… isso diz muito sobre ti. Já reparei que vês sempre o pior de tudo em primeiro lugar. – comentou num tom já mais lento.
   - A Drª hoje está muito perspicaz! – gozou ligeiramente incomodado com aquele comentário.
      - Shh… Mãos em Shuni Mudra. – ordenou – Agora repete comigo “Ommmm”.
      - Tem mesmo que ser?
      - “Ommmm” – reforçou mais alto, tentando não sorrir.
     João fechou os olhos, satisfeito por ter finalmente encontrado uma amiga que compreendia o seu sentido de humor. A primeira mulher bonita a que apenas teria de dedicar amizade, pensou feliz.

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(imagem, internet)


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