João
e Filipe ainda dormiam na mesma posição quando o carro da
“Assistência em Viagem dos ricos” chegou. Marta não conhecia
aqueles serviços chiques de mecânico à porta, mas ficou
impressionada com o profissionalismo do funcionário. O homem
tratava-a com muita delicadeza e algum espanto, porque na realidade
ela e o carro eram dois mundos distintos. Inventou uma mentira para
justificar a ausência do proprietário do veículo, ofereceu um chá
e alguma simpatia ao senhor
Manuel, e conseguiu
resolver o problema sem acordar João. Ele parecia precisar de
descanso, e o Filipe também dormia como um bebé em cima dele, seria
cruel ir incomodá-los. Apanhou as roupas de João do chão da sala,
tentou limpá-las o melhor que conseguia, dobrou-as e colocou-as em
cima do pequeno sofá, começando a preparação do jantar. Não
sabia se teria companhia, mas decidiu fazer para dois, se ele não
comesse já teria almoço para o dia seguinte, decidiu.
-
Marta! – uma voz chamou-a da sala de prática. – Podes chegar
aqui, por favor?
-
Sim, o que se passa? Já acordaram, os meninos? – brincou
divertida.
- Ele
não me deixa sair… - explicou amedrontado com os olhares profundos
que o animal lhe deitava.
-
Filipe, anda. Vamos comer. – ordenou, sendo obedecida sem
hesitações. – Comer, é sempre a palavra mágica para os
teimosos. – disse, voltando para a cozinha.
-
Acho que dormi… - disse confuso com o que tinha acontecido,
seguindo-a. – Já telefonaram da assistência?
- Há
horas que já cá estiveram, arranjaram o pneu e foram-se embora. Não
te acordei porque estavas a dormir profundamente. Queres jantar? –
disse sem parar, enquanto cortava legumes para saltear com nozes e
amêndoas.
- Não
sei… bem, obrigado pelo trabalho com o carro. Mas, acho que vou
para casa. – sentia-se bastante intrigado por ter adormecido sem
remédios, depois de tantos anos, mas precisava de tomar banho e
pensar sobre tudo aquilo.
- Ok,
quando quiseres, volta. – pegou no livro e entregou-lho – Não te
esqueças, vai lendo, e quando tiveres dúvidas, pergunta.
- Vou
só trocar de roupa, se entro assim no prédio os vizinhos chamam a
polícia. – gracejou, sentindo-se logo envergonhado com o ar
desagradado dela. – Não foi isso que quis dizer… - desculpou-se.
- Eu
percebo. – disse com mágoa, mas sorrindo educadamente.
Despediram-se
formalmente, sem que João combinasse o dia e a hora da aula
seguinte, o que deixou Marta um pouco desanimada. Gostava muito
daquele livro, não queria perder-lhe o rasto. Acenou-lhe adeus e
entrou em casa melancolicamente, pegou nas roupas que lhe tinha
emprestado e não resistiu a cheirá-las. – Lésbica… - sorriu,
dirigindo-se para a cozinha. – Sim, pois, está bem, antes fosses.
Depois
de muito suar ao volante, João conseguiu chegar a casa com o carro minimamente
intacto. Não poderia lá voltar naquele meio de transporte, pensava,
estranhando estar a cogitar visitar a mulher novamente. Sentia-se
bastante bem depois de ter dormido aquelas horas. Aquela tal de
Prayalama,
ou como é que se chamava, era de facto mágica. Quem diria que
respirar pudesse ser tão eficaz, matutava ao entrar no banho. O
cheiro a cão parecia não querer sair, constatava divertido pois
ironicamente, não dormia tão bem há anos e fizera-o logo com um
cão em cima do corpo.
Comeu
uns restos que a Rosário lhe deixara preparados num prato, pegou no
livro e acomodou-se no seu sofá, bem mais rijo e desconfortável que
o de Marta, que parecia moldar-se perfeitamente ao corpo, concluiu,
levantando-se e levando o livro para o quarto. Deitou-se na cama e
iniciou a leitura “imprópria” cheio de curiosidade. Sentia-se um
miúdo a ver pornografia às escondidas, excitado e maravilhado.
Leu o
livro até ao final, sem conseguir parar, resultado da insónia que
aquela sesta de fim de tarde lhe provocou, e obrigou-se a dormir já
passava das quatro da manhã, engolindo um comprimido. Assim que
adormeceu começou a sonhar com uma mulher de vários braços que o
envolvia num abraço sufocante, mas bom, dizendo-lhe palavras em
sânscrito que nunca ouvira antes. Marta surgia ao longe, sempre a
caminhar de costas voltadas, apenas olhando furtivamente para ele,
com censura. O que estaria ele a fazer mal? Tinha as pernas cruzadas,
como ela ensinara, as costas direitas… Filipe lambeu-o, e seguiu-a,
deixando-o sozinho no meio do nada. Vislumbrou uma mancha vermelha
nos arbustos e começou a sentir-se ansioso, correndo até ao local,
seria a mala?
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(imagem, internet)
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