quarta-feira, 11 de abril de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 4 (1ª parte)


    



    João e Filipe ainda dormiam na mesma posição quando o carro da “Assistência em Viagem dos ricos” chegou. Marta não conhecia aqueles serviços chiques de mecânico à porta, mas ficou impressionada com o profissionalismo do funcionário. O homem tratava-a com muita delicadeza e algum espanto, porque na realidade ela e o carro eram dois mundos distintos. Inventou uma mentira para justificar a ausência do proprietário do veículo, ofereceu um chá e alguma simpatia ao senhor Manuel, e conseguiu resolver o problema sem acordar João. Ele parecia precisar de descanso, e o Filipe também dormia como um bebé em cima dele, seria cruel ir incomodá-los. Apanhou as roupas de João do chão da sala, tentou limpá-las o melhor que conseguia, dobrou-as e colocou-as em cima do pequeno sofá, começando a preparação do jantar. Não sabia se teria companhia, mas decidiu fazer para dois, se ele não comesse já teria almoço para o dia seguinte, decidiu.
      - Marta! – uma voz chamou-a da sala de prática. – Podes chegar aqui, por favor?
      - Sim, o que se passa? Já acordaram, os meninos? – brincou divertida.
     - Ele não me deixa sair… - explicou amedrontado com os olhares profundos que o animal lhe deitava.
    - Filipe, anda. Vamos comer. – ordenou, sendo obedecida sem hesitações. – Comer, é sempre a palavra mágica para os teimosos. – disse, voltando para a cozinha.
   - Acho que dormi… - disse confuso com o que tinha acontecido, seguindo-a. – Já telefonaram da assistência?
    - Há horas que já cá estiveram, arranjaram o pneu e foram-se embora. Não te acordei porque estavas a dormir profundamente. Queres jantar? – disse sem parar, enquanto cortava legumes para saltear com nozes e amêndoas.
    - Não sei… bem, obrigado pelo trabalho com o carro. Mas, acho que vou para casa. – sentia-se bastante intrigado por ter adormecido sem remédios, depois de tantos anos, mas precisava de tomar banho e pensar sobre tudo aquilo.
     - Ok, quando quiseres, volta. – pegou no livro e entregou-lho – Não te esqueças, vai lendo, e quando tiveres dúvidas, pergunta.
    - Vou só trocar de roupa, se entro assim no prédio os vizinhos chamam a polícia. – gracejou, sentindo-se logo envergonhado com o ar desagradado dela. – Não foi isso que quis dizer… - desculpou-se.
     - Eu percebo. – disse com mágoa, mas sorrindo educadamente.
    Despediram-se formalmente, sem que João combinasse o dia e a hora da aula seguinte, o que deixou Marta um pouco desanimada. Gostava muito daquele livro, não queria perder-lhe o rasto. Acenou-lhe adeus e entrou em casa melancolicamente, pegou nas roupas que lhe tinha emprestado e não resistiu a cheirá-las. – Lésbica… - sorriu, dirigindo-se para a cozinha. – Sim, pois, está bem, antes fosses.


    Depois de muito suar ao volante, João conseguiu chegar a casa com o carro minimamente intacto. Não poderia lá voltar naquele meio de transporte, pensava, estranhando estar a cogitar visitar a mulher novamente. Sentia-se bastante bem depois de ter dormido aquelas horas. Aquela tal de Prayalama, ou como é que se chamava, era de facto mágica. Quem diria que respirar pudesse ser tão eficaz, matutava ao entrar no banho. O cheiro a cão parecia não querer sair, constatava divertido pois ironicamente, não dormia tão bem há anos e fizera-o logo com um cão em cima do corpo.
   Comeu uns restos que a Rosário lhe deixara preparados num prato, pegou no livro e acomodou-se no seu sofá, bem mais rijo e desconfortável que o de Marta, que parecia moldar-se perfeitamente ao corpo, concluiu, levantando-se e levando o livro para o quarto. Deitou-se na cama e iniciou a leitura “imprópria” cheio de curiosidade. Sentia-se um miúdo a ver pornografia às escondidas, excitado e maravilhado.
    Leu o livro até ao final, sem conseguir parar, resultado da insónia que aquela sesta de fim de tarde lhe provocou, e obrigou-se a dormir já passava das quatro da manhã, engolindo um comprimido. Assim que adormeceu começou a sonhar com uma mulher de vários braços que o envolvia num abraço sufocante, mas bom, dizendo-lhe palavras em sânscrito que nunca ouvira antes. Marta surgia ao longe, sempre a caminhar de costas voltadas, apenas olhando furtivamente para ele, com censura. O que estaria ele a fazer mal? Tinha as pernas cruzadas, como ela ensinara, as costas direitas… Filipe lambeu-o, e seguiu-a, deixando-o sozinho no meio do nada. Vislumbrou uma mancha vermelha nos arbustos e começou a sentir-se ansioso, correndo até ao local, seria a mala?



(direitos reservados, afsr)
(imagem, internet)

Sem comentários:

Enviar um comentário