Acordou
transpirado e com uma angústia a apertar-lhe o estômago, já perto
da hora a que a empregada deveria chegar. Levantou-se e meteu-se no
duche, passando pelos comprimidos da felicidade instantânea sem se
dar conta. Fazia
a barba, quando notou que não tinha tomado a medicação da manhã,
metendo um comprimido na boca e recriminando-se por estar tão
distraído. Acabou de se arranjar e dirigiu-se à cozinha,
estranhando a Rosário não estar lá, mas a mesa estar posta. Onde
andará ela?, procurou na sala, no quarto de hóspedes, no
escritório, e foi encontrá-la no quarto principal a folhear o livro
do “Sexo Tântrico” que Marta lhe emprestara, o que lhe provocou
uma gargalhada. – Isso não são livros para a sua idade! –
gracejou, apanhando o livro do chão que lhe saltara das mãos em
voo, com o susto de ter sido apanhada.
- Mas
o que é isto, Dr.? – perguntou honestamente chocada.
- Foi
a minha professora de Yoga que me emprestou. – explicou sorridente.
- Meu
Deus, Santíssimo Sacramento, mas que professora é essa? Eu não
sabia que nas aulas de Yoga se aprendiam estas badalhoquices. –
recriminou, benzendo-se, enquanto caminhava para a cozinha.
João
olhou o livro, sorrindo com a cena e visualizando mentalmente Marta
numa das “badalhoquices” que o entusiasmara especialmente na sua
leitura noturna. – Graças a Deus que é lésbica… - comentou
aliviado com o facto de que poderia imaginá-la à vontade sem mais
tarde se sentir incomodado ou culpado. Ela nunca seria um problema
nessa matéria, concluiu satisfeito.
- Bom
dia. – cumprimentou a sala de espera que já começava a encher,
sendo cumprimentado de volta por vozes menos animadas que a sua.
- Bom
dia Diana. Precisava que me encomendasse uma bicicleta e uns
adaptadores para colocar no tejadilho do carro, por favor. – disse
com naturalidade, como se lhe estivesse a pedir um café ou uma tosta
do bar da clínica.
-
Claro, tem alguma preferência na marca? Modelo? – perguntou
tentando não demonstrar espanto.
-
Não. Ah, quer dizer, tenho sim. Tem de ser todo-o-terreno. –
explicou, lembrando-se do piso acidentado até casa da Marta. Se
pudesse ser ainda hoje, agradecia. Pode mandar entrar o primeiro
paciente. Até já. – concluiu sorrindo e entrando no gabinete.
Tinha
pensado bastante naquela opção pela bicicleta durante o
pequeno-almoço. Cogitou várias possibilidades, comprar um jipe, mas
isso demoraria alguns dias, uma moto, mas não era fã de duas rodas
que tivessem motor, ir a pé também não seria prático, por isso a
bicicleta vencera. Já sabia onde deixaria o carro estacionado,
recordava-se de um local seguro que não ficaria muito longe do
destino final, pensava satisfeito.
-
Posso? – uma voz perguntou, depois de bater à porta.
-
Sim, faça favor. Sente-se.
-
Podíamos ir dar uma volta, estamos aqui sempre enfiados… -
perguntou aborrecido por ultimamente passarem os fim-de-semana
encafuados em casa. – Não tenho vontade, vai tu. – respondeu
Isabel voltando para a sua leitura, sem sequer o olhar. – Dar um
passeio de bicicleta? Ir à Figueira comer um gelado? Qualquer coisa?
Podes largar a porra do livro e olhar para mim quando falo? –
perguntou quase aos gritos, irritado com o desprezo dela. – Tens de
ser malcriado? Deixa-me em paz! – gritou de volta, levantando-se e
deixando-o sozinho na sala, furioso. João apertou a cana do nariz
com os dedos e desistiu, saindo porta fora. Pegou no telefone e
ligou-lhe, ao menos aquela tinha sempre uma palavra simpática.
- E
foi assim, Sr Dr., eu e o meu marido já não dormimos no mesmo
quarto nem nada. – explicava a paciente ainda na casa dos
cinquenta.
- E
como se sente com essa mudança? – perguntou, realmente curioso por
saber a opinião feminina sobre esse tema tão comum nos casais de
longa data.
-
Triste, muito triste. – confessou – Sabe, não é muito moderno
dizer isto, mas eu sei que desde essa data, que obviamente não
partilhamos intimidade, ele tem andado cada vez mais longe da
família. Eu sempre me recusei a aceitar que o meu marido, tão
intelectualmente superior, fosse primitivo nessas questões, mas
tenho quase a certeza de que ele tem outra. – uma lágrima caiu
desamparada no colo da paciente, que pediu desculpa por gestos,
recompondo-se.
-
Acha? Não poderá ser o receio de que ele a substitua que a faz
pensar nessa opção tão drástica? – perguntou angustiado, porque
ela tinha toda a razão. O marido já tinha outra, ele mesmo tinha
trocado Isabel por bem menos que dormir em quartos separados.
-
Também pode ser… afinal, ele continua a tratar-me bem, apenas me
sinto mais longe dele, de todos, lá em casa. Comecei a ter estas
malditas insónias e crises de choro depois da “separação”… -
explicava – Sinto-me muito cansada e infeliz.
- O
facto de não dormir despoleta uma série de sintomas que lhe podem
sugerir depressão, mas que por vezes não são necessariamente tão
sérios. Primeiro vamos pô-la a descansar à noite, depois vemos
como se sente. – sugeriu carinhosamente. Gostava especialmente de
alguns pacientes, e aquela em particular lembrava-lhe a mãe, tão
perdida e tristonha, carregada de responsabilidades, trabalho
familiar e tão pouco reconhecida pelos seus. Já conhecera centenas
de mulheres com todos aqueles “sintomas”, as mães e esposas
perfeitas casadas com bestas quadradas e com filhos egoístas e
cínicos. Aguentavam-se até aos cinquenta, depois batiam-lhe à
porta a pedir ajuda. Se ao menos ele já fosse médico na altura,
relembrava-se magoado do triste fim da sua mãe. Tudo poderia ter
sido diferente, ainda hoje a teria na sua vida, pensou abatido.
- Se
conseguisse descansar seria meio caminho andado, não é? –
perguntou esperançosa.
-
Claro, olhe, eu por exemplo, quando não durmo fico doente, nem
consigo pensar. – comentou aliviando o clima com uma pequena
confissão pessoal. – Já pensou, aliado ao tratamento que lhe vou
prescrever, fazer yoga? – disse num impulso, ao se recordar da
sesta em casa de Marta – Dizem que ajuda muito.
-
Olhe, tenho umas amigas que andam, talvez vá experimentar. Obrigada
Sr Dr. – agradeceu a sugestão atenciosa daquele médico bonito e
simpático.
-
Aqui tem a receita, é só tomar um diariamente depois do jantar,
mais ou menos uma hora antes da altura em que pretende adormecer. É
uma dose levezinha, mas como não está habituada a estes fármacos
não será preciso mais. – levantou-se e acompanhou-a à porta,
despedindo-se formalmente e chamando o próximo paciente.
(direitos reservados, afsr)
(imagem, internet)
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