quinta-feira, 12 de abril de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 4 (2ª parte)


     



     Acordou transpirado e com uma angústia a apertar-lhe o estômago, já perto da hora a que a empregada deveria chegar. Levantou-se e meteu-se no duche, passando pelos comprimidos da felicidade instantânea sem se dar conta. Fazia a barba, quando notou que não tinha tomado a medicação da manhã, metendo um comprimido na boca e recriminando-se por estar tão distraído. Acabou de se arranjar e dirigiu-se à cozinha, estranhando a Rosário não estar lá, mas a mesa estar posta. Onde andará ela?, procurou na sala, no quarto de hóspedes, no escritório, e foi encontrá-la no quarto principal a folhear o livro do “Sexo Tântrico” que Marta lhe emprestara, o que lhe provocou uma gargalhada. – Isso não são livros para a sua idade! – gracejou, apanhando o livro do chão que lhe saltara das mãos em voo, com o susto de ter sido apanhada.
     - Mas o que é isto, Dr.? – perguntou honestamente chocada.
     - Foi a minha professora de Yoga que me emprestou. – explicou sorridente.
    - Meu Deus, Santíssimo Sacramento, mas que professora é essa? Eu não sabia que nas aulas de Yoga se aprendiam estas badalhoquices. – recriminou, benzendo-se, enquanto caminhava para a cozinha.
    João olhou o livro, sorrindo com a cena e visualizando mentalmente Marta numa das “badalhoquices” que o entusiasmara especialmente na sua leitura noturna. – Graças a Deus que é lésbica… - comentou aliviado com o facto de que poderia imaginá-la à vontade sem mais tarde se sentir incomodado ou culpado. Ela nunca seria um problema nessa matéria, concluiu satisfeito.


  - Bom dia. – cumprimentou a sala de espera que já começava a encher, sendo cumprimentado de volta por vozes menos animadas que a sua.
    - Bom dia Diana. Precisava que me encomendasse uma bicicleta e uns adaptadores para colocar no tejadilho do carro, por favor. – disse com naturalidade, como se lhe estivesse a pedir um café ou uma tosta do bar da clínica.
   - Claro, tem alguma preferência na marca? Modelo? – perguntou tentando não demonstrar espanto.
    - Não. Ah, quer dizer, tenho sim. Tem de ser todo-o-terreno. – explicou, lembrando-se do piso acidentado até casa da Marta. Se pudesse ser ainda hoje, agradecia. Pode mandar entrar o primeiro paciente. Até já. – concluiu sorrindo e entrando no gabinete.
    Tinha pensado bastante naquela opção pela bicicleta durante o pequeno-almoço. Cogitou várias possibilidades, comprar um jipe, mas isso demoraria alguns dias, uma moto, mas não era fã de duas rodas que tivessem motor, ir a pé também não seria prático, por isso a bicicleta vencera. Já sabia onde deixaria o carro estacionado, recordava-se de um local seguro que não ficaria muito longe do destino final, pensava satisfeito.
     - Posso? – uma voz perguntou, depois de bater à porta.
     - Sim, faça favor. Sente-se.

- Podíamos ir dar uma volta, estamos aqui sempre enfiados… - perguntou aborrecido por ultimamente passarem os fim-de-semana encafuados em casa. – Não tenho vontade, vai tu. – respondeu Isabel voltando para a sua leitura, sem sequer o olhar. – Dar um passeio de bicicleta? Ir à Figueira comer um gelado? Qualquer coisa? Podes largar a porra do livro e olhar para mim quando falo? – perguntou quase aos gritos, irritado com o desprezo dela. – Tens de ser malcriado? Deixa-me em paz! – gritou de volta, levantando-se e deixando-o sozinho na sala, furioso. João apertou a cana do nariz com os dedos e desistiu, saindo porta fora. Pegou no telefone e ligou-lhe, ao menos aquela tinha sempre uma palavra simpática.


    - E foi assim, Sr Dr., eu e o meu marido já não dormimos no mesmo quarto nem nada. – explicava a paciente ainda na casa dos cinquenta.
     - E como se sente com essa mudança? – perguntou, realmente curioso por saber a opinião feminina sobre esse tema tão comum nos casais de longa data.
    - Triste, muito triste. – confessou – Sabe, não é muito moderno dizer isto, mas eu sei que desde essa data, que obviamente não partilhamos intimidade, ele tem andado cada vez mais longe da família. Eu sempre me recusei a aceitar que o meu marido, tão intelectualmente superior, fosse primitivo nessas questões, mas tenho quase a certeza de que ele tem outra. – uma lágrima caiu desamparada no colo da paciente, que pediu desculpa por gestos, recompondo-se.
    - Acha? Não poderá ser o receio de que ele a substitua que a faz pensar nessa opção tão drástica? – perguntou angustiado, porque ela tinha toda a razão. O marido já tinha outra, ele mesmo tinha trocado Isabel por bem menos que dormir em quartos separados.
    - Também pode ser… afinal, ele continua a tratar-me bem, apenas me sinto mais longe dele, de todos, lá em casa. Comecei a ter estas malditas insónias e crises de choro depois da “separação”… - explicava – Sinto-me muito cansada e infeliz.
    - O facto de não dormir despoleta uma série de sintomas que lhe podem sugerir depressão, mas que por vezes não são necessariamente tão sérios. Primeiro vamos pô-la a descansar à noite, depois vemos como se sente. – sugeriu carinhosamente. Gostava especialmente de alguns pacientes, e aquela em particular lembrava-lhe a mãe, tão perdida e tristonha, carregada de responsabilidades, trabalho familiar e tão pouco reconhecida pelos seus. Já conhecera centenas de mulheres com todos aqueles “sintomas”, as mães e esposas perfeitas casadas com bestas quadradas e com filhos egoístas e cínicos. Aguentavam-se até aos cinquenta, depois batiam-lhe à porta a pedir ajuda. Se ao menos ele já fosse médico na altura, relembrava-se magoado do triste fim da sua mãe. Tudo poderia ter sido diferente, ainda hoje a teria na sua vida, pensou abatido.
    - Se conseguisse descansar seria meio caminho andado, não é? – perguntou esperançosa.
  - Claro, olhe, eu por exemplo, quando não durmo fico doente, nem consigo pensar. – comentou aliviando o clima com uma pequena confissão pessoal. – Já pensou, aliado ao tratamento que lhe vou prescrever, fazer yoga? – disse num impulso, ao se recordar da sesta em casa de Marta – Dizem que ajuda muito.
   - Olhe, tenho umas amigas que andam, talvez vá experimentar. Obrigada Sr Dr. – agradeceu a sugestão atenciosa daquele médico bonito e simpático.
   - Aqui tem a receita, é só tomar um diariamente depois do jantar, mais ou menos uma hora antes da altura em que pretende adormecer. É uma dose levezinha, mas como não está habituada a estes fármacos não será preciso mais. – levantou-se e acompanhou-a à porta, despedindo-se formalmente e chamando o próximo paciente.

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(imagem, internet)

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