Depois de vários finos e danças escaldantes,
João já perdera a noção das horas, sentindo o cansaço a
apoderar-se dos seus membros. Uma consequência da falta de sono e
dos remédios que deixara em casa e já lhe faziam falta no
organismo. Tentava livrar-se dela educadamente, não conseguiria sair
dali para lado nenhum, a não ser para a sua cama e dormir. Os
músculos pediam-lhe descanso, mas a Nélia, conseguira finalmente
decorar, era persistente e já bebera demais, o que dificultaria o
problema. Tentou desesperadamente fazer contacto visual com Salvador,
mas o amigo mantinha-se ocupado a trabalhar e parecia não perceber a
angústia de João.
- Podes ir buscar-me outro fino? – pediu-lhe
beijando-o – Tenho de ir à casa de banho, já volto! – saiu
cambaleante em direcção aos wc, dando-lhe a hipótese de fugir
cobardemente.
Pagava a sua conta apressado, quando a viu, a
balouçar num ombro pequeno de uma hippie de saia até aos
pés, que se mantinha de costas. A garganta secou-lhe
automaticamente, o coração batia furioso e descontrolado e as mãos
frouxas deixaram cair o troco que Salvador lhe entregara.
- Então, pá? Está-te a dar uma trombose, ou
quê? – gozou Salvador.
- Quem é aquela? – perguntou furioso.
- Quem? – procurava Salvador com a cabeça,
sem conseguir ver uma mulher que pudesse dar um enfarte a um homem.
- Aquela da mala vermelha! – exclamou
demasiado nervoso.
- A Hippie? Sei lá. Mas agora gostas desse
tipo? – questionou preocupado – Acho que é melhor reduzires a
dose dos ansiolíticos. – brincou para desanuviar. Andava a ficar
realmente preocupado com o vício de João pelas drogas que devia
receitar aos outros, não engolir ele próprio desenfreadamente.
- Voltei! – guinchou a loira demasiado perto
dos ouvidos de João, que se sobressaltou com o susto e foi agarrado
possessivamente para mais um beijo escaldante.
- Com licença… - retirou-se Salvador de
mansinho, regressando ao seu trabalho.
João tentava ver onde se tinha metido a
Hippie, engolido pela excitada rapariga, mas sem sucesso. Já se
sentia enojado com tanto fogo despropositado da loira, libertando-se
à força, só depois de a repelir diversas vezes e a trazer de volta
à realidade.
- Chega! – gritou-lhe, libertando-se e
avançando em direcção ao local onde a vira. Procurou por
todos os cantos do Bar, esperou à porta da casa de banho das
mulheres durante algum tempo, na esperança de que estivesse lá
dentro, mas nada. Tinha desaparecido. Arrastou-se para a rua,
respirou fundo, onde estaria ela? A mala vermelha de Isabel…
Agora que já somos namorados oficialmente,
temos de pensar num assunto de extrema importância, João! – disse
muito séria, deixando-o alarmado. Sentou-se para a olhar melhor, ali
deitada na relva de braços atrás da cabeça parecia-lhe a coisa
mais bonita que já vira.
- Diz lá, então. – sorriu-lhe acendendo
um cigarro.
- De que cor é que compro a minha mala? –
continuou séria, a esforçar-se para não se rir – É que vamos
andar sempre juntos, e preciso de saber qual a cor que vai ficar
melhor com as tuas roupas!
- Estás a brincar, ou a falar a sério? –
perguntou meio aparvalhado.
- Palerma!
– disse-lhe rindo agarrada à barriga – Achas mesmo que ia
querer combinar a carteira contigo? Adoro esta, só me separo dela
quando uma de nós morrer! – profetizou, continuando a rir do ar
apalermado com que João tinha ficado.
Precisava respirar ar puro, e depressa.
Levantou-se da cama, já depois de ter tomado os comprimidos de SOS
para os ataques de pânico, mas que ainda não tinham dado sinais de
calmaria no seu organismo descontrolado. Embrulhou-se no edredon e
sentou-se no chão da varanda, obrigando-se a respirar calma e
compassadamente, de olhos fechados. Podia sentir o coração a
martelar nas têmporas, e esforçava-se por tirar aquela imagem da
cabeça. “Não era possível que aquela pessoa andasse com a mala
dela… tinha-a deitado no lixo no ano passado, mas pensando melhor,
os hippies eram estranhos o suficiente para aproveitarem um objecto
do caixote do lixo… Pára!”, berrou a si mesmo em pensamentos.
Encostou a cabeça ao vidro da porta da janela e cantou baixinho uma
lenga lenga da sua avó, esforçando-se por se recordar da letra, até
cair suavemente para o chão e adormecer sob o efeito dos calmantes.
(direitos reservados, afsr)
(imagem, internet)
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