- Bom dia João, posso entrar?
- Olá bom dia, Dr César, claro,
entre. - esforçou-se por sorrir, sentia-se miserável e abatido como
nunca tinha sentido, ou pelo menos que se lembrasse.
- Está tudo bem? - questionou-o,
desconfiado do semblante carregado. - Estou de saída para ir para a
clínica e decidi vir ver-te antes, espero não estar a incomodar
assim tão cedo. - Sentou-se familiarmente no sofá, fazendo-lhe
sinal para se sentar também.
- Sim, fez bem. Café?
- Se não der muito trabalho, aceito.
- sorriu-lhe, mais com vontade de abraçar um filho em sofrimento,
que manter aquela conversa de circunstância.
- Não dá trabalho nenhum, acabei
agora mesmo de fazer uma chaleira. Descobri que gosto muito de café
"brasileiro", daquele que se faz com filtro, sabe? -
explicou, enquanto se dirigia à cozinha e preparava duas chávenas e
açúcar num tabuleiro. Era estranhamente doméstico, o que não
combinava nada com aquela casa tão sofisticada e artificial. Gostava
de se distrair na cozinha, ocupava-lhe a cabeça. Tinham passado duas
semanas desde que saíra abruptamente de casa da Ganesha e nunca
mais tinha conseguido deixar a sua casa, como se estivesse em
isolamento. Escondia-se de si mesmo, talvez. Pegou no tabuleiro
pronto e foi ocupar o seu lugar junto do psiquiatra que o visitava
regularmente e de quem já gostava como figura paterna, a única que
até então surgira na sua breve vida.
- Cheira muito bem! A Lisa também
adora o café assim de manhã. - disse, apreciando o primor com que
João elaborara o tabuleiro, um perfeccionista, quando gostava do que
estava a fazer, acrescentou para si mesmo. - Está ótimo! -
confessou, depois de provar.
- Estive a ler aqueles livros que me
trouxe, sobre psiquiatria, os do curso, e acho fascinante. Mas... não
tenho a certeza se é isso que quero fazer na minha vida. Acho que
não tenho saúde mental nem para mim, quanto mais para "vender"
aos outros. - recostou-se no sofá, levando o café à boca e
apreciando o cheiro. - Gosto muito mais de cozinhar. - riu-se.
- Pois, a psiquiatria nunca foi a tua
paixão, era o teu trabalho. - confessou, olhando-o hipnoticamente –
Gostavas que te pusesse à prova? Gostavas de fazer hoje o
psicodrama? Tenho tempo agora de manhã.
- Preferia sinceramente que me
dissesse porque me sinto vazio na minha vida. Custa-me aceitar que
vivi esta fantochada e gostava disto. - olhou sugestivamente para a
zona dos quartos, onde Isabel ainda dormia. - Já concordámos que
iria esperar um tempo para que a memória voltasse naturalmente, mas
já não tenho mais paciência, César. - poisou a chávena e desviou
o olhar do do médico, que parecia entrar-lhe pela cabeça a dentro.
- Como já falámos anteriormente,
isto é uma fase, a tua mente encontrou esta forma de sobrevivência,
se assim o podemos chamar, fechou-se ao que a estava a colocar em
perigo, mas tudo continua aí. Não te preocupes demasiado, só tens
de te proteger do que conversámos. - baixou o tom de voz, de forma
cúmplice. - Não podes tomar atitudes definitivas nesta tua nova
realidade. - olhou para o corredor em frente – Tem calma, aprende a
conhecer-te, vai explorando as tuas capacidades e gostos. - apontou
para o café – Como vês, tens mais prazer a fazer café que a ser
psiquiatra. Isso é muito importante, porque a vida às vezes
impõe-nos carreiras que não são o que deveríamos fazer, mas a que
acabamos por nos resignar. Eu por exemplo, adoro ser o espertalhão
que sabe tudo sobre os outros, gosto de dar conselhos, de me meter
nas cabeças alheias, vou trabalhar com gosto todos os dias. Já a
fazer café, sou uma nódoa, e nem vamos falar em refeições
quentes, nunca tive capacidade. Distraio-me a pensar num paciente
qualquer, e lá se vai o estufado. - sorriu, descontraído. - Nesta
vida, que é curta e incerta, temos de fazer o que nos dá prazer. Tu
tens agora a oportunidade de escolher algo melhor para o teu futuro.
Felizmente não tens problemas de dinheiro, o que já é uma sorte.
Vai fazer uns cursos, sai de casa. Se continuares aqui fechado não
vais sentir-te nem melhor, nem mais realizado, e um homem tem de
fazer, criar, suar, senão morre entupido! Dá uma hipótese a ti
mesmo, ouve o que o João tem para te dizer, sai, vai caminhar, ver
pessoas, comprar ingredientes ao hipermercado e depois convida-me a
mim e à Lisa para jantar um dia destes. - levantou-se e estendeu a
mão a João, que se levantou e o abraçou comovido.
- Obrigado. Vou fazer isso. -
acompanhou-o à porta e deixou-o sair, respirando fundo. Sim, o César
tinha nascido para ser psiquiatra, ele não.
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