quarta-feira, 21 de novembro de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 23 (1ª parte)






- Bom dia João, posso entrar?
- Olá bom dia, Dr César, claro, entre. - esforçou-se por sorrir, sentia-se miserável e abatido como nunca tinha sentido, ou pelo menos que se lembrasse.
- Está tudo bem? - questionou-o, desconfiado do semblante carregado. - Estou de saída para ir para a clínica e decidi vir ver-te antes, espero não estar a incomodar assim tão cedo. - Sentou-se familiarmente no sofá, fazendo-lhe sinal para se sentar também.
- Sim, fez bem. Café?
- Se não der muito trabalho, aceito. - sorriu-lhe, mais com vontade de abraçar um filho em sofrimento, que manter aquela conversa de circunstância.
- Não dá trabalho nenhum, acabei agora mesmo de fazer uma chaleira. Descobri que gosto muito de café "brasileiro", daquele que se faz com filtro, sabe? - explicou, enquanto se dirigia à cozinha e preparava duas chávenas e açúcar num tabuleiro. Era estranhamente doméstico, o que não combinava nada com aquela casa tão sofisticada e artificial. Gostava de se distrair na cozinha, ocupava-lhe a cabeça. Tinham passado duas semanas desde que saíra abruptamente de casa da Ganesha e nunca mais tinha conseguido deixar a sua casa, como se estivesse em isolamento. Escondia-se de si mesmo, talvez. Pegou no tabuleiro pronto e foi ocupar o seu lugar junto do psiquiatra que o visitava regularmente e de quem já gostava como figura paterna, a única que até então surgira na sua breve vida.
- Cheira muito bem! A Lisa também adora o café assim de manhã. - disse, apreciando o primor com que João elaborara o tabuleiro, um perfeccionista, quando gostava do que estava a fazer, acrescentou para si mesmo. - Está ótimo! - confessou, depois de provar.
- Estive a ler aqueles livros que me trouxe, sobre psiquiatria, os do curso, e acho fascinante. Mas... não tenho a certeza se é isso que quero fazer na minha vida. Acho que não tenho saúde mental nem para mim, quanto mais para "vender" aos outros. - recostou-se no sofá, levando o café à boca e apreciando o cheiro. - Gosto muito mais de cozinhar. - riu-se.
- Pois, a psiquiatria nunca foi a tua paixão, era o teu trabalho. - confessou, olhando-o hipnoticamente – Gostavas que te pusesse à prova? Gostavas de fazer hoje o psicodrama? Tenho tempo agora de manhã.
- Preferia sinceramente que me dissesse porque me sinto vazio na minha vida. Custa-me aceitar que vivi esta fantochada e gostava disto. - olhou sugestivamente para a zona dos quartos, onde Isabel ainda dormia. - Já concordámos que iria esperar um tempo para que a memória voltasse naturalmente, mas já não tenho mais paciência, César. - poisou a chávena e desviou o olhar do do médico, que parecia entrar-lhe pela cabeça a dentro.
- Como já falámos anteriormente, isto é uma fase, a tua mente encontrou esta forma de sobrevivência, se assim o podemos chamar, fechou-se ao que a estava a colocar em perigo, mas tudo continua aí. Não te preocupes demasiado, só tens de te proteger do que conversámos. - baixou o tom de voz, de forma cúmplice. - Não podes tomar atitudes definitivas nesta tua nova realidade. - olhou para o corredor em frente – Tem calma, aprende a conhecer-te, vai explorando as tuas capacidades e gostos. - apontou para o café – Como vês, tens mais prazer a fazer café que a ser psiquiatra. Isso é muito importante, porque a vida às vezes impõe-nos carreiras que não são o que deveríamos fazer, mas a que acabamos por nos resignar. Eu por exemplo, adoro ser o espertalhão que sabe tudo sobre os outros, gosto de dar conselhos, de me meter nas cabeças alheias, vou trabalhar com gosto todos os dias. Já a fazer café, sou uma nódoa, e nem vamos falar em refeições quentes, nunca tive capacidade. Distraio-me a pensar num paciente qualquer, e lá se vai o estufado. - sorriu, descontraído. - Nesta vida, que é curta e incerta, temos de fazer o que nos dá prazer. Tu tens agora a oportunidade de escolher algo melhor para o teu futuro. Felizmente não tens problemas de dinheiro, o que já é uma sorte. Vai fazer uns cursos, sai de casa. Se continuares aqui fechado não vais sentir-te nem melhor, nem mais realizado, e um homem tem de fazer, criar, suar, senão morre entupido! Dá uma hipótese a ti mesmo, ouve o que o João tem para te dizer, sai, vai caminhar, ver pessoas, comprar ingredientes ao hipermercado e depois convida-me a mim e à Lisa para jantar um dia destes. - levantou-se e estendeu a mão a João, que se levantou e o abraçou comovido.
- Obrigado. Vou fazer isso. - acompanhou-o à porta e deixou-o sair, respirando fundo. Sim, o César tinha nascido para ser psiquiatra, ele não.


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