terça-feira, 27 de novembro de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 23 (5ª parte)




Conduziu lentamente, percebendo pela primeira vez como seria ter 70 anos e pouca ou nenhuma capacidade de rotação no tronco e pescoço para enfrentar o trânsito de uma cidade. Da próxima vez que um reformado o estivesse a empatar teria mais paciência, decidiu, gemendo com a dor de costas. Era tramada aquela falta de mobilidade, sentia-se um velhote viúvo, a fugir do lar para ir espreitar a antiga casa onde vivera momentos felizes, só que no seu caso tinham sido fugazes minutos de prazer, e não uma vida a dois com milhares de recordações. Encontrou facilmente a rua dela, tão misteriosa como seria de esperar, parou no portão e ergueu-se dificilmente de dentro do carro, resmungando como um idoso rabugento. A dor era uma merda, bufou para si mesmo. Forçou o portão fechado e caminhou arrastando os pés levemente, devagar, aproveitando para apreciar à luz do dia todo o quintal ainda bem arranjado, mas já com sinais de natureza abandonada. Algumas ervas cresciam onde antes ela perdia tempo e energia a cuidar de flores, plantas e vegetais. Pensou que talvez devesse arrancar algumas ervas daninhas, não tinha mesmo nada que fazer. Não conseguiria baixar-se, mas com uma pequena enxada resolveria o problema. Decidiu procurar ferramentas enquanto ia analisando os locais do jardim onde deveria intervir. Talvez houvesse uma garagem na parte de trás da casa, ou arrecadação, onde ela guardasse os materiais de jardinagem. Passou por um tanque, sorriu ao imaginá-la de roupão a lavar roupa, e logo a sua imaginação erótica dominou os seus pensamentos, possuindo-a ali mesmo, em cima de umas roupas ensaboadas, com água a chapinhar por todo o lado e o cãozito dela a saltitar nervoso em volta deles. Deixou o casal apaixonado para trás e continuou a caminhada dolorosa pelo caminho de pedra em volta da habitação. Um grande monte de lenha cortada e  metodicamente arrumada o surpreendeu, aquilo era trabalho de homem, nunca que ela teria capacidade física para aquele serviço, pensou, ciumento. Certamente tinha sido o parvalhão do troglodita, resmungou chateado, continuando sem parar. Uma pequena casota de madeira parecia ser o local ideal para as ferramentas, e tal como imaginava, ali estava ao fundo. Debateu-se com a fechadura, forçou-a e conseguiu retirar uma pequena enxada para começar o seu trabalho. Sim, aquilo era excêntrico, mas não lhe apetecia nada voltar para aquele apartamento cinzento e aturar a Isabel. Um monte de terra desordenado chamou-lhe a atenção e suscitou-lhe a curiosidade. Parecia uma sepultura caseira, daquelas que se faziam aos animais domésticos, aproximou-se e percebeu que ali devia estar o tal cão falecido de que ela lhe tinha falado. Uma tentativa de cruz a marcar o local pendia torta, e João endireitou-a, utilizando a enxada para reorganizar a terra em volta e deixar a sepultura mais digna. Parecia que tinham ali andado animais a esgravatar, até um pouco de osso se denunciava. João tentou tapar os restos mortais, e um tecido colorido surgiu debaixo da terra, comprovando que ali jazia um cão. Era uma coleira, constatou, tirando-a gentilmente. Ajoelhou-se e colocou-a na cruz, tapando e moldando a terra. "Filipe", dizia na coleira, ela tinha dado um nome de pessoa ao cão, pensou curioso. - Bem, Filipe, sempre tiveste mais sorte que eu. Descansa em paz. - levantou-se e começou a sua tarefa auto-imposta de jardineiro voluntário. Não sabia se alguma vez já o tinha feito, mas não deveria ser tão difícil assim, raspar as ervas que não pertenciam à cultura pretendida. Era muito quintal para trabalhar de uma só vez, mas começaria pela frente da casa, a parte mais visível da rua. Parou no tanque e experimentou a torneira, funcionava. Pelo menos se lhe desse a sede não morreria ali. Analisou o jardim e decidiu começar pelas flores, estavam amontoadas com uma certa ordem que lhe conferiam uma beleza que parecia natural e selvagem, mas notava-se que tinham sido plantadas propositadamente. Tirou a camisola mais grossa, mandou-a para o alpendre e lançou-se à velocidade possível por causa das dores nas costelas. Era uma atividade que requeria algum jeito, mas passado uns minutos João já conseguia minimizar o esforço e encontrou formas e técnicas de melhorar os resultados, distraindo-se ao ponto de nem ter percebido há quanto tempo ali estava naquilo. Deu uma olhadela geral ao espaço já limpo e ficou surpreendido com o avanço feito. Ficava de facto muito melhor depois de retiradas as ervas daninhas, pensou orgulhoso de si mesmo. Pôs a mão ao bolso para ver as horas no telemóvel e decidiu que por um dia bastava. A casa estava silenciosa, sem sinais de vida no interior, o que o desiludiu ligeiramente. Para terminar em beleza aquele dia excêntrico só mesmo se ela abrisse a porta e viesse com aquele roupão, sem nada por baixo, obviamente. Como isso não iria acontecer decidiu aventurar-se e tentar espreitar para dentro da casa, só para ter a certeza de que ela tinha abandonado a vida em Coimbra.

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