sexta-feira, 30 de novembro de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 23 (6ª parte)




Subiu os degraus, espreitou pela janela e tentou abrir a porta, que estava obviamente trancada. Uma ideia surgiu-lhe, seria ela daquelas pessoas que tem sempre uma chave de prevenção para o caso de se esquecer da dela? Procurou por cima da moldura de madeira da porta, debaixo do tapete de entrada, e quando levantou o vaso grande com um cacto ali estava ela, a luzir. Rasgou-se-lhe um sorriso pateta, não queria acreditar na sua sorte, abriu a porta e entrou a medo, com uma excitação crescente e irresistível. Havia eletricidade, constatou ao mexer nos interruptores, seria sinal de que voltaria um dia destes?! Caminhou pela casa, admirando tudo com calma e uma certa fascinação. A sala era acolhedora, nem muito vazia nem muito cheia, com uma decoração natural. Uma estante ocupava toda a parede em frente à porta da rua, percorreu-a com os olhos, era tanta literatura diferente, desde os clássicos aos mais esotéricos. Estatuetas daquelas bonecadas hindús decoravam alguns locais fazendo o contraste com as molduras clássicas e antigas de gente com bom ar, e ela. Sempre demasiado enigmática, às vezes até triste. Entrou sem pudores para a zona mais íntima da casa, não teria de se justificar a ninguém por estar a invadir uma casa alheia. Uma sala grande com ar de estúdio de yoga, sem espelhos, e de onde saía uma vibração estranha e incomodativa. Fechou a porta por instinto, não gostava daquilo. Caminhou em busca do quarto dela, aquele santuário feminino onde a sua imaginação iria certamente explodir de tantos estímulos. Não estava enganado, ainda se sentia o cheiro dela ali, uma cama convidativa, macia, pormenores delicados e de bom gosto. Sentou-se nela e imaginou-a ali a dormir, sozinha, o segurança não encaixava naquele ambiente e nem sequer deveria caber na cama, era demasiado alto. A imagem dele ali a violar aquele espaço deu-lhe dor de barriga e estudou o armário para se distrair. Roupas simples, muitas saias, e um vestido preto que se destacava pelo género e textura. Retirou-o e analisou-o, era bonito, de marca, constatou ao ver a etiqueta, devia ser o que usara naquele dia no bar. Ficava-lhe muito bem, relembrou-se, colocando-o no sítio. Tinha voltado para Castelo Branco sem ele, pensou satisfeito, era sinal de que não ia frequentar bares. Aquela sensação de possessividade surpreendia-o, não tinha nenhum desses sentimentos pela namorada. Deu mais uma olhadela geral no quarto e voltou para a sala. Estava cansado e ainda mais dorido, procurou um local para descansar um pouco as pernas e escolheu uma poltrona que se lhe adaptou ao corpo de forma extraordinária, aquilo era uma maravilha, constatou descontraindo. Fechou os olhos relaxado, aquilo sim era vida, onde teria ela comprado aquilo? Uma luz acendeu-se na zona do quarto e João estremeceu, teria voltado? Ouviu um murmúrio de uma música familiar, numa voz de mulher, sim, a Marta tinha voltado, finalmente, pensou suspirando e fechando os olhos. Teria reparado na sua obra do jardim? Esperava que ficasse satisfeita e que o Filipe não lhe fizesse xixi nos crisântemos. Um cheiro a legumes salteados invadiu-lhe as narinas, estava cheio de fome, mas demasiado preguiçoso para se levantar e ajudá-la com o jantar. Estava ansioso para que ela lhe contasse como estava a família lá de Castelo Branco, ainda não os tinha ido conhecer, recriminou-se, se calhar estavam ofendidos com a sua falta de atenção, mas ela não o tinha convidado a ir, fugiu sem dizer nada. Marta aproximou-se dele, trazia o vestido preto debaixo do roupão, iria sair? Pegou numa manta e tapou-o, estava a dormir, constatou. Que pena, queria dizer-lhe que voltasse, mas estava a dormir. Ela saiu e fechou a porta, com demasiado barulho.
João acordou sobressaltado com o frio, tinha adormecido e estava sem a camisola mais grossa, e ao contrário do sonho, ninguém o tinha aconchegado com uma manta. Tinha escurecido, quanto tempo teria dormido? Procurou o telemóvel e viu que era perto da meia noite. Como seria aquilo possível? Dormia sempre tão mal, à base de soporíferos, como se tinha deixado ficar ali tanto tempo? Aquele cadeirão era mágico, só podia. A barriga deu um ronco de fome e João decidiu voltar para sua casa. Trancou a porta e guardou a chave no bolso, não queria mais ninguém ali a entrar sorrateiramente como ele. No dia seguinte voltaria para continuar a jardinagem, tinha adorado mexer na terra, descontraíra-o. Mais uma coisa sobre si que descobria. Certificou-se de que tudo ficava arrumado e despediu-se mentalmente do sítio. Gostava muito de ali estar, agora teria de regressar à sua realidade, à casa fria e solitária que lhe diziam ser a sua. Seria possível a amnésia ter-lhe alterado os gostos? De psiquiatra dandy e mulherengo a homem do campo que gostava de estar na cozinha e a tirar ervas daninhas do quintal... Aquilo era demasiado estranho.


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