Nélia escutou a conversa dos dois
homens atrás da porta, como habitualmente, sempre que César
aparecia para ver o namorado. Temia que o médico abrisse a bocarra,
mas estranhamente não o fazia. Era um mistério para ela o facto do
médico continuar a deixar João na ignorância, mas um alívio. A
vida a dois era já penosa o suficiente, sem a confrontação com a
verdade. A única vantagem que tinha ao estar ali a aturar aquele
depressivo era o poder económico que usufruía, mas mesmo isso já a
começava a aborrecer. Entusiasmava-se sempre quando percebia que
podia comprar fosse o que fosse, mas ainda não tinha saído da loja,
já o tédio se instalava, e ao chegar a casa e se deparar com aquele
fantasma, mais chateada ficava com a sua vida. Vestiu-se com a roupa
de ginástica, como todas as manhãs e rezou para que ele não a
quisesse acompanhar. Não o suportava, e isso era cada vez mais
notório entre os dois. Felizmente João mudara-se para o quarto de
hóspedes, por livre e espontânea vontade, senão, tinha-o feito
ela. Era uma situação que começava a pesar-lhe no corpo, parecia
que aquele parvo lhe sugava a alegria de viver, sempre de trombas e
sorumbático. Calçou as sapatilhas de treino, passou por ele, deu os
bons dias e avisou que ia demorar. Só voltava para almoçar, e mesmo
isso não sabia se lhe apetecia. Bateu a porta, depois de lhe pedir
dinheiro, a derradeira humilhação diária, e uma emoção estranha
invadiu-a, trazendo-lhe umas lágrimas de frustração, enquanto
premia o botão do elevador. A porta deslizou, e apressou-se a limpar
as provas da sua fraqueza, colocando o seu melhor ar, com medo de
testemunhas. Um homem enorme saiu do elevador com demasiada pressa e
esbarrou nela, e para sua surpresa reconheceu o segurança do bar que
frequentava, que a olhou com algum desprezo, como habitualmente
acontecia com algumas pessoas. Era invisível, e raramente a olhavam
com interesse, a menos que vestisse um decote ou mini saia. Entrou no
elevador, sem grande interesse no que faria por ali o homem, carregou
no botão do rés do chão e suspirou, quando uma mão estacou a
porta de fechar, surpreendendo-a.
- Sente-se bem?
- Como? - perguntou surpreendida.
- Pareceu-me que estava a chorar.
Precisa de alguma coisa?
- Ham?... Não, não, é alergia. -
apressou-se a explicar, mentindo. Não estava habituada a baixar a
guarda, o que a incomodava bastante.
- Ok, desculpe, então. Bom dia. -
largou a porta, que começou a fechar, e Nélia carregou no botão de
abrir, como reflexo.
- Obrigada, na mesma. - disse, sem
jeito, carregando no botão de fechar logo de seguida.
Janota ficou cismado com aquele
semblante da tipa que agora vivia com o João. Devia andar triste, as
coisas entre os dois não andavam bem. Isso não era favorável,
claro, mas tinha ali ido para descarregar a sua frustração pessoal,
e tirar satisfações, não ficar preocupado com uma vigarista. Bateu
à porta vigorosamente, tentando recuperar o estímulo negativo que o
tinha levado até casa do seu rival, esperando sinceramente que ele
fosse arrogante e mal educado, apetecia-lhe muito dar-lhe uns
safanões e libertar-se daqueles nervos. Isabel tinha-o abandonado
fazia já quase duas semanas, precisava tirar a limpo se continuavam
a comunicar ou se também se tinha afastado dele. Era uma questão
que o consumia. Deu mais dois murros na porta, que abriu de repente e
tal como desejara, João olhava-o com desdém.
- Posso saber o que é que queres
daqui? - lançou, genuinamente espantado com aquela visita matinal.
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(imagem, internet)
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