Largou
o primeiro livro e continuou a sua análise nos álbuns seguintes. Gravidez,
nascimento, Jorge era um bebé enorme! Estremeceu com a ideia de parir um
“bezerro” daqueles numa época em que não havia epidural. Afonso estava
exultante com o primeiro filho, era visível a alegria e orgulho nos seus olhos.
Manuela, desfeita na cama do hospital, (mais um arrepio de medo), era uma
mistura de felicidade e alívio por tudo ter terminado e o seu lindo “bezerro”
ser saudável. Sentimentos maternais, concluía Margarida, cada vez menos
convencida de que um dia estaria em semelhante situação. Nascimento de Sara,
linda e perfeita, e um pai babado, de uma forma devotada pela sua menina
loirinha. Manuela mais recomposta do que no anterior filho, mas com olhos
tristes. Hum… estranho, não lhe parecia que uma mãe ficasse assim por ter tido
uma bebé perfeita. Talvez o casamento dos dois já sofresse com a falta de
caráter de Afonso, remoía ela incomodada. Álvaro aparecia agora nos momentos
familiares mais marcantes, jovem, muito menos assustador que o que as recordações
de Margarida descreviam. Gigante, obviamente, pensava ela, robusto, atraente,
com um sorriso de gozão… Margarida engoliu em seco, as semelhanças deste com
Nuno eram demasiado evidentes, ali Álvaro deveria ter quase a mesma idade que
ele. Não pôde deixar de notar a forma como em algumas fotos Álvaro olhava na
direção de Manuela, o que sugeria um pouco mais que amizade. Constatou com
alívio que, no entanto, a mãe de Nuno não retribuía os sentimentos, era
apaixonada por Afonso, ironias do destino que por vezes não acertava com as
setas do Cupido, lamentou. Mais uma gravidez, filhos pequenos e traquinas, mas
nada de Afonso, parecia ter sumido, talvez estivesse destacado em algum sítio a trabalho, pensava Margarida. Manuela
não sorria, parecia deprimida até, com olheiras, talvez não dormisse o
suficiente, ou sofresse calada com aquele segredo que Margarida também
conhecia. Teve pena dela, uma vida com tudo para ser perfeita, e tão
amargurada.
Uma festa de anos de Jorge e.. Álvaro,
sentado ao lado de Afonso, com cara de poucos amigos. Um arrepio percorreu-lhe
a espinha. O mesmo olhar furioso que vira de manhã no seu escritório e semanas
antes, na fábrica. Manuela de olhos baixos, submissa, gravidíssima, com filhos
no colo. Precisava descobrir o que unia Álvaro à família Santos, para além do
filho clandestino, pensou abatida. Ana era perspicaz e muito astuta, talvez
soubesse de tudo mas preferisse não partilhar aquelas revelações tristes,
matutava Margarida. Continuou a sua análise indiscreta, visualizando com calma
o crescimento de Nuno, lindo e grande, demasiado grande, pensava angustiada. Se
tivessem filhos, a genética de Nuno não seria gentil com ela, iria morrer no
parto, pensava aterrorizada.
A partir do nascimento de Nuno, Álvaro
aparecia regularmente nas recordações da família, como uma sombra negra,
furioso, carregado de uma energia assustadora, saberia já na altura que ele era
seu filho? Margarida estava convencida que sim. Recordou as confissões
lunáticas que ele lhe fizera naquela noite na fábrica. Fazia sentido pensar que
Manuela lhe tivesse contado, mas porquê? Como? Quando? Teve uma ideia repentina
e resolveu sondar com Ana, ela saberia algum passado de Álvaro, com certeza.
Arrumou os álbuns, mas não resistiu
a guardar uma foto de Nuno com a mãe, tão lindo e feliz. Não havia recordações
dele com Manuela na sua casa, o que a perturbava. Tentaria trazer, com calma e
paciência, a lembrança da mãe para o coração dele, daquela forma, alegre, feliz
e inocente, sem mágoa.
Dirigiu-se à cozinha onde Ana
continuava embrenhada nas tarefas culinárias e resolveu atacar de forma direta,
sem rodeios,
- Ana, precisava de saber alguns
pormenores do passado do Álvaro. Ajudas-me? – lançou sem piedade.
- Ham? – Ana deixou cair um
tabuleiro no chão, com a surpresa daquele tema na sua casa.
- Há qualquer coisa de errada na
presença daquele homem na família do teu marido e de Nuno. – explicou sem papas
na língua.
- Querida, por favor, o Nuno já te
pediu que não mexas mais nesses assuntos. – suplicou aflita, tentando fugir à
pergunta inicial.
- Não posso esquecer este assunto
Ana! Esse homem quase me matou, e eu nem sequer o conhecia, tem de haver uma
explicação. Tenho algumas teorias na cabeça, mas preciso de ajuda. Por favor,
faremos tudo sem que nenhum deles desconfie. Um doido anda à solta e o Nuno
precisa de paz.
Aquela preocupação por Nuno amoleceu
Ana, que se manteve em silêncio durante um bom bocado. Margarida sabia que
teria de aguardar, Ana estava a processar, mas ela tinha a certeza de que a
convencera.
- Fecha a porta, por favor. –
ordenou Ana, abatida, talvez chegara a altura de enfrentar os velhos fantasmas,
e Margarida oferecia-se para a ajudar nessa batalha, o que lhe parecia ser a
melhor hipótese de todas.
Ana contou tudo o que sabia do
passado de Álvaro, que era colega e o melhor amigo de Afonso, frequentava a
casa dos pais de Jorge e de Nuno, por vezes até passava férias com eles. Tivera
um acidente qualquer em casa. Em 1980, explodira uma botija de gás e ficara sem
os pais nesse acidente, para além de que fora internado durante uns meses.
Manuela cuidara dele, como uma boa amiga. Estivera quase a morrer numa noite,
mas sobreviveu. Diziam as más línguas que morrera qualquer coisa com ele no
hospital, pois o seu temperamento mudara radicalmente. Aquela observação deixou
Margarida curiosa, não era natural que um sobrevivente se revoltasse com o
facto de se salvar. Em 1985 dera-se a tragédia, Manuela e Afonso foram atacados
por um dos suspeitos de um crime que os dois colegas andavam a investigar, vingança,
concluiu Ana. Foram mortos quando voltavam do hospital, pararam o carro num
semáforo e balearam-nos. Margarida arrepiou-se com a violência do crime, morrer
assim devia ser horrível. Ana suspirou longamente, ainda não tinha terminado,
concluiu Margarida, curiosa. Nuno estava com eles no carro, tinha cinco anos e
viu tudo. Álvaro foi o primeiro a chegar ao local do crime e levou-o para sua
casa, a criança estava em choque. As lágrimas escorreram-lhes pelas faces e
Margarida abraçou Ana. O amor e compaixão que sentia pelo cunhado eram
verdadeiros. Um menino vira o assassínio dos pais e testemunhara tudo. Ficaram
as duas a consolar-se mutuamente durante uns minutos, cada uma amava Nuno à sua
maneira, e tinham consciência daquele amor que as unia mais que nunca.
(direitos reservados, afsr)
(Imagem, internet)
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