Marta lutava com o micro-ondas
demasiado sofisticado da cozinha ultra-moderna de João, carregando
em botões atrás de botões, sentindo-se uma idiota por não
conseguir perceber como se descongelava coisas sem ser ao natural, ou
em água quente, como estava habituada na sua casa com os ritmos mais
lentos. Não podiam ficar horas à espera que aquela mistela estranha
aquecesse ao ar, lamentava-se, aborrecida com a ideia de que teria de
lhe perguntar como se usava aquela geringonça, e detestava pedir
favores, especialmente a homens. Quase se convencera a si própria de
que teria de engolir o orgulho no que dizia respeito ao micro-ondas,
quando subitamente a máquina decidiu colaborar e iniciou o processo
de descongelar, ao mesmo tempo que a campainha da porta tocou, junto
com um bater leve de nós dos dedos. Marta dirigiu-se à entrada e
espreitou pelo óculo, já a embarcar em pensamentos neuróticos de
perseguição. Confirmou que era ele e abriu a porta aos dois machos
da sua vida. Esse pensamento fê-la sorrir e João ainda não tinha
poisado Filipe nem fechado a porta, já ela se lhe tinha agarrado ao
pescoço, beijando-o. O cão libertou-se do abraço de grupo com
dificuldade, saltando nas três patas para o chão e procurando um
sítio isolado para descansar, enquanto o casal esbarrava contra os
objetos dispostos nas superfícies dos móveis modernos da sala.
Encontraram o sofá, depois de várias caneladas na mobília, e
caíram desamparados, sem notar que Filipe os olhava de orelhas em
pé, surpreso com aquela súbita luta. Arrancaram os sapatos, as
roupas, sem se descolarem um do outro, numa fúria desenfreada que
começou a enervar o cão, que dava voltas sobre si mesmo, com a pata
enfaixada ao pendurão, soltando uivos. Marta e João pararam para
olhar o animal, que se arrastava na direção do sofá, gemendo de
medo, sem entender o que se passava entre eles os dois, obrigando-os
a isolarem-se no quarto e fechar a porta.
-
Isto é como ter um filho, é preciso os papás se esconderem para
darem uns beijinhos… brincou João, puxando-a para si.
-
Pior… este vai-te arranhar a porta toda… - gracejou, acabando de
despir o que ainda trazia no corpo.
-
Acho que vai valer a pena… o que é uma porta riscada perante uma
mulher nua? – provocou João sorrindo à imagem de Marta.
-
“Uma mulher”? – reclamou ofendida com aquele termo pouco
personalizado.
-
A minha mulher. – atreveu-se a classificar.
-
Ah, assim está melhor. – sorriu-lhe afetada, queimando de alegria
interiormente. Há muito tempo que não se sentia tão feliz,
ironicamente, no dia em que Tiago ressuscitara na sua vida. César
tinha razão, a vida era uma caixa de surpresas, ninguém está certo
de nada, mas podemos escolher o que fazer perante aquilo que nos vai
surgindo, de bom e de mau. João era uma prenda do destino, uma
oportunidade de ser feliz e de fazer felicidade com outro. Não iria
afastá-lo, pelo contrário, se ele quisesse, e aceitasse o seu
passado, iria pela primeira vez em muito tempo, lutar por manter essa
felicidade.
-
E eu? – perguntou-lhe ao ouvido, interrompendo os seus pensamentos.
-
Tu? – questionou-o surpreendida, sem entender a pergunta.
-
O que sou eu para ti? – um aperto no estômago obrigou-o a olhá-la
perante o seu silêncio.
-
João, tu és o meu homem. – disse, num rasgo de coragem inédito.
-
Ah bom… - comentou aliviado, e estupidamente contente. Levantou-a
do chão, enquanto a beijava apaixonadamente, sentindo-se tonto de
tanta emoção. O seu corpo era ainda mais fácil de amar que a sua
personalidade, o que o enlouqueceu. Tudo parecia de tal forma seu e
familiar, sem constrangimentos ou dúvidas, simplesmente doce e
sensual, numa combinação perfeita que o arrebatou. Como era
possível que alguém não a venerasse ou beijasse os pés à cabeça?
Como podia aquele traste ter-lhe batido e infernizado a vida? Não
iria descansar enquanto aquele homem estivesse solto, ou vivo,
concluiu vingativo.
-
Prometes-me uma coisa? – pediu Marta procurando o seu olhar.
-
Não sei… - beijou-lhe o pescoço, descendo até ao ombro.
-
Não te zangas comigo se eu te contar um segredo?
-
Não sei… - continuou a descida, quase sem a ouvir.
-
Eu não me chamo Marta… - confessou.
-
Ah não?... – gracejou, sem parar de a beijar. Sabia bem quem ela
era, mas queria que o dissesse espontaneamente.
-
Eu chamo-me Isabel… - conseguiu dizer, com medo de que ele achasse
estranho ou bizarro ela ter o mesmo nome da ex-mulher falecida.
-
Hum… - levantou a cabeça e olhou-a a sorrir, deliciado com o voto
de confiança que ela lhe dava. – E posso tratar-te por Belinha?
-
Não achas estranho?... – perguntou aflita.
-
Não. – apoiou todo o seu peso em cima dela, encarando-a – Eu já
sei disso há alguns dias. Sei de várias coisas… andei a
pesquisar. – confessou.
-
E então? Queres ser namorado de uma mulher que vive uma vida dupla a
fugir de um psicopata?
-
Não, se ela quiser, quero casar com uma mulher linda, boazona, livre
e desimpedida, que ainda por cima sabe sexo tântrico! – disse-lhe
reforçando as palavras com alguns beijos estratégicos.
-
Isso não se diz assim… é covardia… agora tenho de aceitar para
tu não parares… - sentia-se a entrar em ebulição com aquela
conversa de pé de orelha, carregada de estímulos.
-
Eu consigo ser muito retorcido, ainda não viste nada. – ameaçou-a,
voltando-a para cima de si. Sexo falante, aquilo era uma novidade,
constatou divertido. Levantou-se e ficaram sentados um no outro, de
cabeças coladas, encarando-se apaixonados.
-
Podes chamar-me de Isabel? Eu queria ouvir.
-
Isabel. – beijou-a na bochecha – Isabel. – no canto da boca –
Isabel. – no pescoço livre que ela lhe oferecia ao colocar a
cabeça para trás. – Isabel. – no peito.
-
Adoro-te.
(direitos reservados, afsr)
(imagem, internet)
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