sexta-feira, 21 de setembro de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 14 (4ª parte)





Marta lutava com o micro-ondas demasiado sofisticado da cozinha ultra-moderna de João, carregando em botões atrás de botões, sentindo-se uma idiota por não conseguir perceber como se descongelava coisas sem ser ao natural, ou em água quente, como estava habituada na sua casa com os ritmos mais lentos. Não podiam ficar horas à espera que aquela mistela estranha aquecesse ao ar, lamentava-se, aborrecida com a ideia de que teria de lhe perguntar como se usava aquela geringonça, e detestava pedir favores, especialmente a homens. Quase se convencera a si própria de que teria de engolir o orgulho no que dizia respeito ao micro-ondas, quando subitamente a máquina decidiu colaborar e iniciou o processo de descongelar, ao mesmo tempo que a campainha da porta tocou, junto com um bater leve de nós dos dedos. Marta dirigiu-se à entrada e espreitou pelo óculo, já a embarcar em pensamentos neuróticos de perseguição. Confirmou que era ele e abriu a porta aos dois machos da sua vida. Esse pensamento fê-la sorrir e João ainda não tinha poisado Filipe nem fechado a porta, já ela se lhe tinha agarrado ao pescoço, beijando-o. O cão libertou-se do abraço de grupo com dificuldade, saltando nas três patas para o chão e procurando um sítio isolado para descansar, enquanto o casal esbarrava contra os objetos dispostos nas superfícies dos móveis modernos da sala. Encontraram o sofá, depois de várias caneladas na mobília, e caíram desamparados, sem notar que Filipe os olhava de orelhas em pé, surpreso com aquela súbita luta. Arrancaram os sapatos, as roupas, sem se descolarem um do outro, numa fúria desenfreada que começou a enervar o cão, que dava voltas sobre si mesmo, com a pata enfaixada ao pendurão, soltando uivos. Marta e João pararam para olhar o animal, que se arrastava na direção do sofá, gemendo de medo, sem entender o que se passava entre eles os dois, obrigando-os a isolarem-se no quarto e fechar a porta.
- Isto é como ter um filho, é preciso os papás se esconderem para darem uns beijinhos… brincou João, puxando-a para si.
- Pior… este vai-te arranhar a porta toda… - gracejou, acabando de despir o que ainda trazia no corpo.
- Acho que vai valer a pena… o que é uma porta riscada perante uma mulher nua? – provocou João sorrindo à imagem de Marta.
- “Uma mulher”? – reclamou ofendida com aquele termo pouco personalizado.
- A minha mulher. – atreveu-se a classificar.
- Ah, assim está melhor. – sorriu-lhe afetada, queimando de alegria interiormente. Há muito tempo que não se sentia tão feliz, ironicamente, no dia em que Tiago ressuscitara na sua vida. César tinha razão, a vida era uma caixa de surpresas, ninguém está certo de nada, mas podemos escolher o que fazer perante aquilo que nos vai surgindo, de bom e de mau. João era uma prenda do destino, uma oportunidade de ser feliz e de fazer felicidade com outro. Não iria afastá-lo, pelo contrário, se ele quisesse, e aceitasse o seu passado, iria pela primeira vez em muito tempo, lutar por manter essa felicidade.
- E eu? – perguntou-lhe ao ouvido, interrompendo os seus pensamentos.
- Tu? – questionou-o surpreendida, sem entender a pergunta.
- O que sou eu para ti? – um aperto no estômago obrigou-o a olhá-la perante o seu silêncio.
- João, tu és o meu homem. – disse, num rasgo de coragem inédito.
- Ah bom… - comentou aliviado, e estupidamente contente. Levantou-a do chão, enquanto a beijava apaixonadamente, sentindo-se tonto de tanta emoção. O seu corpo era ainda mais fácil de amar que a sua personalidade, o que o enlouqueceu. Tudo parecia de tal forma seu e familiar, sem constrangimentos ou dúvidas, simplesmente doce e sensual, numa combinação perfeita que o arrebatou. Como era possível que alguém não a venerasse ou beijasse os pés à cabeça? Como podia aquele traste ter-lhe batido e infernizado a vida? Não iria descansar enquanto aquele homem estivesse solto, ou vivo, concluiu vingativo.
- Prometes-me uma coisa? – pediu Marta procurando o seu olhar.
- Não sei… - beijou-lhe o pescoço, descendo até ao ombro.
- Não te zangas comigo se eu te contar um segredo?
- Não sei… - continuou a descida, quase sem a ouvir.
- Eu não me chamo Marta… - confessou.
- Ah não?... – gracejou, sem parar de a beijar. Sabia bem quem ela era, mas queria que o dissesse espontaneamente.
- Eu chamo-me Isabel… - conseguiu dizer, com medo de que ele achasse estranho ou bizarro ela ter o mesmo nome da ex-mulher falecida.
- Hum… - levantou a cabeça e olhou-a a sorrir, deliciado com o voto de confiança que ela lhe dava. – E posso tratar-te por Belinha?
- Não achas estranho?... – perguntou aflita.
- Não. – apoiou todo o seu peso em cima dela, encarando-a – Eu já sei disso há alguns dias. Sei de várias coisas… andei a pesquisar. – confessou.
- E então? Queres ser namorado de uma mulher que vive uma vida dupla a fugir de um psicopata?
- Não, se ela quiser, quero casar com uma mulher linda, boazona, livre e desimpedida, que ainda por cima sabe sexo tântrico! – disse-lhe reforçando as palavras com alguns beijos estratégicos.
- Isso não se diz assim… é covardia… agora tenho de aceitar para tu não parares… - sentia-se a entrar em ebulição com aquela conversa de pé de orelha, carregada de estímulos.
- Eu consigo ser muito retorcido, ainda não viste nada. – ameaçou-a, voltando-a para cima de si. Sexo falante, aquilo era uma novidade, constatou divertido. Levantou-se e ficaram sentados um no outro, de cabeças coladas, encarando-se apaixonados.
- Podes chamar-me de Isabel? Eu queria ouvir.
- Isabel. – beijou-a na bochecha – Isabel. – no canto da boca – Isabel. – no pescoço livre que ela lhe oferecia ao colocar a cabeça para trás. – Isabel. – no peito.
- Adoro-te.



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