quarta-feira, 26 de setembro de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 15 (3ª parte)




- Bom dia, Diana. Se alguém me ligar, por favor passe-me a chamada. – pediu à secretária, que se surpreendeu com o ar fresco e bem disposto do chefe.
-Bom dia Dr. Sim, claro. Espera uma chamada de alguém em especial? – perguntou de forma prática, havia sempre imensos pacientes que tentavam contactar o médico durante o dia. – É só que não o queria estar a interromper sempre que alguém precisa de saber quantos comprimidos pode tomar, ou… - começou a explicar, ficando corada logo de seguida com o sorriso do médico, que nunca tinha reagido a nada do que ela dissesse.
- Sim, esqueci-me desse pormenor. Só atendo a “Ganesha”, a Isabel, ou a Marta. – disse, entrando no gabinete satisfeito com o ar escandalizado de Diana. Sentia-se especialmente divertido, leve e com menos dez anos em cima. E tudo aquilo sem um único fármaco. Tinha de repensar as prescrições que fazia habitualmente aos seus pacientes, seria de facto necessária tanta droga? Problemas emocionais gerados por vidas conflituosas, frustradas, madrastas, que os ensinavam na escola a medicar com anestesiantes, compensado depois com estimulantes e finalizando com soporíferos, tudo devidamente legal e acessível economicamente. Seria aquele o caminho para a cura mental, ou apenas um adiar de problemas? Decidira-se pela psiquiatria por se sentir compelido a tratar nos outros aquilo que nunca tinha conseguido resolver dentro de si, e que vira matar a mãe, depois da morte de Filipe. Conscientemente sabia que as suas reações físicas à dor da perda e da culpa poderiam ter uma explicação neurológica, e aprendera a lidar com isso, à força de comprimidos estratégicos, fazendo as suas próprias experiências pessoais, até encontrar uma dose certa e o menos prejudicial possível. Lia todas as bulas, pesquisava os componentes, origens, efeitos a médio e longo prazo, tentando assim resolver o problema principal que lhe dominava a vida, sentir demais. Esse era o seu diagnóstico privado e secreto, o facto de amar demais, pensar demais, temer demais, numa angústia sufocante, que as drogas anulavam à superfície. Cresceu até à idade adulta acompanhado pelos frascos, conheceu Isabel, namorou, casou, e as doses cresceram com ele, ela morreu e já não havia remédio que o trouxesse totalmente de volta. César dizia-lhe que um dia teria a sua “noite negra”, que o corpo se fartaria de ser obrigado a reagir emocionalmente de forma artificial, e que lhe iria cobrar todas as lágrimas e gritos que João lhe negava, sempre que engolia mais um comprimido. Mas cada vez acreditava mais que o amigo se enganara na profecia profissional, Marta apareceu na sua vida, e com Isabel trouxera-lhe a cura, sem que o fundo do poço se tivesse revelado. O psiquiatra dentro de si levantava a sobrancelha em dúvida, e João olhava-o com desprezo. Se havia um poço no seu caminho, já o tinha ultrapassado e deixara ficar para trás.
Foi interrompido pelo bater leve na porta, pôs de lado os seus raciocínios e iniciou mais uma manhã de trabalho. Sentia-se especialmente esperançoso e positivo. Iria almoçar com ela, jantariam juntos, e no final do dia, dormiriam abraçados. Não havia melhor remédio.

- Marta, graças a Deus voltaste! – exclamou Elisabete ao entrar na sala de yoga e ver a sua professora preferida de volta.
- Olá, sim, foram apenas umas mini-férias. – explicou sem jeito, incomodada com o facto de que Elisabete a tratava pelo nome fictício e isso lhe soar estranho e indelicado, não queria que a amiga ficasse zangada quando descobrisse que tinha sido enganada.
- O César ontem disse-me que estás em casa do João… - disse baixinho de forma cúmplice – desculpa estar a ser indiscreta, mas fiquei tão feliz… não imaginas como sonhei com isto. Algo me dizia que vocês podiam dar certo… - continuou excitada – e não é que estava certa? O João é um amor, queria tanto que ele encontrasse uma mulher em condições…
- Sim, bem… obrigada. Eu também o acho um amor… - sentiu-se corar, ao ver o resto da classe atenta às palavras de Elisabete que falava um pouco alto demais com a emoção.
- Desculpa, estou a encavacar-te… vamos mas é à aula, depois falamos. Queres ir beber um chá quando sairmos?
- Sim, claro. Também queria falar-lhe sobre um assunto… mas não tem a ver com o João. – sossegou-a ao ver a ansiedade a surgir-lhe nos olhos.
- Tudo bem querida. Vou para o meu lugar, elas já me estão a olhar de lado. – deu uma espreitadela incomodada às colegas que esperavam na sala, de caras pouco sorridentes – Invejosas… - disse entre dentes, encaminhando-se para o fundo da sala.

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