-
Bom dia, Diana. Se alguém me ligar, por favor passe-me a chamada. –
pediu à secretária, que se surpreendeu com o ar fresco e bem
disposto do chefe.
-Bom
dia Dr. Sim, claro. Espera uma chamada de alguém em especial? –
perguntou de forma prática, havia sempre imensos pacientes que
tentavam contactar o médico durante o dia. – É só que não o
queria estar a interromper sempre que alguém precisa de saber
quantos comprimidos pode tomar, ou… - começou a explicar, ficando
corada logo de seguida com o sorriso do médico, que nunca tinha
reagido a nada do que ela dissesse.
-
Sim, esqueci-me desse pormenor. Só atendo a “Ganesha”, a Isabel,
ou a Marta. – disse, entrando no gabinete satisfeito com o ar
escandalizado de Diana. Sentia-se especialmente divertido, leve e com
menos dez anos em cima. E tudo aquilo sem um único fármaco. Tinha
de repensar as prescrições que fazia habitualmente aos seus
pacientes, seria de facto necessária tanta droga? Problemas
emocionais gerados por vidas conflituosas, frustradas, madrastas, que
os ensinavam na escola a medicar com anestesiantes, compensado depois
com estimulantes e finalizando com soporíferos, tudo devidamente
legal e acessível economicamente. Seria aquele o caminho para a cura
mental, ou apenas um adiar de problemas? Decidira-se pela psiquiatria
por se sentir compelido a tratar nos outros aquilo que nunca tinha
conseguido resolver dentro de si, e que vira matar a mãe, depois da
morte de Filipe. Conscientemente sabia que as suas reações físicas
à dor da perda e da culpa poderiam ter uma explicação neurológica,
e aprendera a lidar com isso, à força de comprimidos estratégicos,
fazendo as suas próprias experiências pessoais, até encontrar uma
dose certa e o menos prejudicial possível. Lia todas as bulas,
pesquisava os componentes, origens, efeitos a médio e longo prazo,
tentando assim resolver o problema principal que lhe dominava a vida,
sentir demais. Esse era o seu diagnóstico privado e secreto, o facto
de amar demais, pensar demais, temer demais, numa angústia
sufocante, que as drogas anulavam à superfície. Cresceu até à
idade adulta acompanhado pelos frascos, conheceu Isabel, namorou,
casou, e as doses cresceram com ele, ela morreu e já não havia
remédio que o trouxesse totalmente de volta. César dizia-lhe que um
dia teria a sua “noite negra”, que o corpo se fartaria de ser
obrigado a reagir emocionalmente de forma artificial, e que lhe iria
cobrar todas as lágrimas e gritos que João lhe negava, sempre que
engolia mais um comprimido. Mas cada vez acreditava mais que o amigo
se enganara na profecia profissional, Marta apareceu na sua vida, e
com Isabel trouxera-lhe a cura, sem que o fundo do poço se tivesse
revelado. O psiquiatra dentro de si levantava a sobrancelha em
dúvida, e João olhava-o com desprezo. Se havia um poço no seu
caminho, já o tinha ultrapassado e deixara ficar para trás.
Foi
interrompido pelo bater leve na porta, pôs de lado os seus
raciocínios e iniciou mais uma manhã de trabalho. Sentia-se
especialmente esperançoso e positivo. Iria almoçar com ela,
jantariam juntos, e no final do dia, dormiriam abraçados. Não havia
melhor remédio.
-
Marta, graças a Deus voltaste! – exclamou Elisabete ao entrar na
sala de yoga e ver a sua professora preferida de volta.
-
Olá, sim, foram apenas umas mini-férias. – explicou sem jeito,
incomodada com o facto de que Elisabete a tratava pelo nome fictício
e isso lhe soar estranho e indelicado, não queria que a amiga
ficasse zangada quando descobrisse que tinha sido enganada.
-
O César ontem disse-me que estás em casa do João… - disse
baixinho de forma cúmplice – desculpa estar a ser indiscreta, mas
fiquei tão feliz… não imaginas como sonhei com isto. Algo me
dizia que vocês podiam dar certo… - continuou excitada – e não
é que estava certa? O João é um amor, queria tanto que ele
encontrasse uma mulher em condições…
-
Sim, bem… obrigada. Eu também o acho um amor… - sentiu-se corar,
ao ver o resto da classe atenta às palavras de Elisabete que falava
um pouco alto demais com a emoção.
-
Desculpa, estou a encavacar-te… vamos mas é à aula, depois
falamos. Queres ir beber um chá quando sairmos?
-
Sim, claro. Também queria falar-lhe sobre um assunto… mas não tem
a ver com o João. – sossegou-a ao ver a ansiedade a surgir-lhe nos
olhos.
-
Tudo bem querida. Vou para o meu lugar, elas já me estão a olhar de
lado. – deu uma espreitadela incomodada às colegas que esperavam
na sala, de caras pouco sorridentes – Invejosas… - disse entre
dentes, encaminhando-se para o fundo da sala.
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(imagem, internet)
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