quinta-feira, 27 de setembro de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 15 (4ª parte)




Só mais três pacientes, mentalizava-se, assim que o obsessivo compulsivo bateu a porta, aquilo era demais para uma manhã, lamentava-se, rodando a cabeça na tentativa de descontrair os músculos do pescoço. Devia haver profissões consideradas de desgaste emocional, com direito a mais tempo de férias que o que dizia a lei. Como era possível recuperar a saúde mental em menos de um mês, dividido durante o ano, se apenas num dia de trabalho João se sentia a rebentar pelas costuras… Olhou o telemóvel antes do próximo paciente entrar e enviou um sms a Isabel “estou farto de aqui estar… vamos tirar férias?”. A porta abriu-se e uma senhora entrou desmotivada. João poisou o aparelho e cumprimentou-a de sorriso forçado.
- Bom dia!

- Então, o que vais beber? – Elisabete questionou bem disposta.
- Pode ser um chá de laranja canela. – respondeu sorridente, sentindo o telefone vibrar na carteira. Elisabete pediu licença e levantou-se para ir aos lavabos, deixando Isabel à vontade para ver a mensagem em privado. Abriu o sms e no mesmo instante sentiu-se descontrair com a ideia de estar alguns dias longe com ele, talvez na praia, a aproveitar o resto de verão. Respondeu-lhe no mesmo momento, “sim, por favor…”, poisando o telemóvel na mesa quando Elisabete voltou.

- Isabel! Estou? Isabel? – João atendera a chamada dela, mas parecia que se tinha enganado e carregado nos botões sem querer. Ouvia barulhos, mas ninguém respondia de volta. – Isabel?

- Pronto, precisava mesmo de me refrescar, hoje foi puxado! – gracejou, sentando-se confortavelmente de frente para a sua professora.
- Sim, abusei um bocadinho. Mas andei a preguiçar estes dias e precisava de puxar por mim. – explicou sorrindo.
- E então querida? O que me querias falar?
- Bem… não sei por onde começar. – pigarreou, organizando as ideias – Primeiro, o meu nome não é Marta. Inventei esse nome porque ando “fugida” de um ex-marido abusivo, com quem estive casada dois anos e namorei muitos mais. – confessou, calando-se automaticamente com a presença do empregado que colocava os pedidos na mesa. – Deve estar confusa com o motivo porque lhe estou a contar pormenores pessoais da minha vida, mas como estou numa relação com o João, e ele já sabe da verdade, não faz sentido encontrarmo-nos todos um dia e a Elisabete me chamar de Marta…
- Claro querida. Mas não precisas de me contar nada, se não quiseres… - César já lhe explicara por alto os problemas da nova namorada do amigo, mas Elisabete sabia ser discreta.
- Preciso sim. Tenho de o fazer, porque a Marta vai desaparecer, já cumpriu o seu papel e agora preciso de encarar a minha realidade, se quiser ficar com o João. – explicou, bebendo um pouco do chá.
- Eu compreendo. De facto, sem resolveres primeiro a questão do teu passado não podes avançar.
- Precisamente. Eu conheci o Tiago ainda no liceu. Andámos juntos na faculdade, todos esperavam que nos casássemos um dia. Mas a dada altura ele transformou-se, começou a ser violento verbalmente, destratava-me num minuto, fazíamos amor no outro. Era estranho e complicado. Eu comecei a questionar o futuro de tudo aquilo e ele apercebeu-se, daí para a frente foi o caos. Um dia deu-me uma bofetada tão forte que me apanhou de tal forma de surpresa que não tive reação. Nem chorei, fiquei apenas perplexa, a olhá-lo. Ele caiu-me aos pés, implorou que o perdoasse,… enfim… era um louco e eu não quis acreditar na minha intuição. Engravidei sem querer e casámos. Foi o maior erro da minha vida. Porque é que disse que sim no altar, perante toda a família e amigos, se aquele homem me batia? Perguntei-me várias vezes nos momentos pós tareia. Pensei muitas vezes em deixá-lo, mas ele ameaçava-me que me tiraria o filho, fugiria com o bebé se eu o fizesse. Aquele filho ainda não tinha nascido e eu já estava no meu limite emocional, mas não podia sequer imaginar ficar sem ele, o meu Filipe (esse era o nome que já tinha escolhido)… - Isabel parou a confissão, procurando um lenço na carteira para limpar as lágrimas.
- Querida, por favor, não relembres esses assuntos… não é preciso contares-me nada. – suplicou Elisabete já a chorar também, entregando um lenço a Isabel e limpando-se com outro.
- Não, por favor, deixe-me dizer isto tudo. – respirou fundo e continuou – Vínhamos de um jantar com os meus pais. Tudo correra com relativa normalidade, pelo menos para mim. Mas sem que eu me apercebesse, fiz algo de errado durante a noite, nunca compreendi o quê. Só quando entrei no carro e ele trancou as portas, acelerando a fundo é que notei que tinha cometido alguma falha. Perguntei-lhe o que se passava, mas ele continuava a conduzir que nem um louco, sem me falar. Nunca tive tanto medo na vida… Se não estivesse grávida tinha-me lançado do carro em andamento… Levou-me para os arredores de Castelo Branco (onde vivíamos) e bateu-me dentro do carro. Ao início aguentei a fúria dele, pensando que seria como das outras vezes, ele dava-me umas lambadas, uns puxões de cabelo, e acalmava. Mas não,… da cara passou para a barriga, e dali fui parar ao hospital. Só me lembro de acordar e vê-lo esmurrado e ferido na cara, como se tivesse sofrido algum acidente, a olhar-me de lágrimas nos olhos. Os meus pais choravam com ele, e eu fiquei sem bebé. – Elisabete deu-lhe as mãos, fungando, e olhando noutra direção, sem a encarar. Isabel recompôs-se mais um pouco e continuou. Nunca tinha falado abertamente sobre aquilo com ninguém para além de dois ou três polícias e pessoas no tribunal. – Quando me disseram que o acidente de carro que tinha sofrido provocara um aborto, fiquei cega, levantei-me da cama, arranquei os tubos todos e lancei-me em cima dele. Queria matá-lo, e conseguiria fazê-lo naquele momento, mas ao contrário de mim, várias pessoas o protegeram da “louca”. Ele bateu-se para fingir um acidente… chorou ao meu lado a representar, depois de ter espancado a sua mulher e matado o seu próprio filho… Deram-me calmantes, durante vários dias, e depois, quando voltei para casa pedi o divórcio, pois naquele momento eu já não tinha medo que ele me matasse. Já não me importava, só queria que ele desaparecesse da minha vida. E se para isso eu tivesse de morrer, que fosse. Ironicamente ele não foi preso, nunca consegui provar que me batia, que me tinha espancado naquela noite, todos queriam que me calasse. Nessa altura pensei em suicídio, elaborei vários planos, mas não tive coragem. Não conseguira magoar a minha mãe e a Dazinha (a minha ama que ainda hoje vive com os meus pais). O Tiago já tinha causado sofrimento suficiente naquela família, não lhe iria dar mais aquele prazer. Consegui o divórcio à força, uma ordem de proibição de contacto, mas ele safou-se. À saída do tribunal, ameaçou-me, disse que nunca me deixaria em paz, que me mataria se o trocasse… e eu fugi, mudei a minha vida toda e vim para Coimbra, começar tudo de novo, com a Marta. Estive estes cinco anos em paz… embora não houvesse um único dia em que não me lembrasse do meu filho que ele matou, nunca mais tive notícias dele… até ontem. – Isabel bebeu mais um pouco de chá, engolindo com esforço.
- Mas esse homem apareceu ontem? – perguntou aflita.
- Ontem eu e o João chegámos do Gerês e quando entrámos na minha sala de yoga estavam lá escritas na parede ameaças… ele forçou a entrada, sabe que eu tenho outra pessoa, deve andar a vigiar-me desde sempre… - arrepiou-se com a ideia e poisou a chávena.
- Que horror… mas já foram à polícia, certo? – exclamou.
- Não… fiquei demasiado chocada ontem, não tive capacidade… - confessou envergonhada.
- Mas querida, tens de fazer queixa dele! Um monstro desses não pode andar por aí impune.
- Eu sei. Mas não queria envolver o João nos meus problemas… - fungou, limpando novamente os olhos – O Tiago é um estigma meu, que tenho de resolver sozinha. Não conseguiria viver se ele fizesse mal ao João.
- Aí eu não concordo contigo. É certo que o Tiago faz parte do teu passado, mas se o João já sabe, e quer estar contigo, está a aceitar esse problema também. Não acredito que ele vá permitir que tu lides com isto sozinha.
- Não sei… ainda é tudo muito recente. Ele mal me conhece e eu a ele… Não deveria ser assim o início de uma relação.
- Não é de facto o que normalmente acontece, mas é a vossa realidade. – resumiu pragmaticamente, dando-lhe novamente a mão.

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