Deixou-a
com Elisabete, angustiado com o farrapo em que Isabel se tinha
transformado, desde sua casa até ali, cada vez mais furioso com
aquele psicopata que não os deixava em paz. O seu lado racional
dizia-lhe para ir diretamente à polícia, mas se o traste tivesse
feito algum mal ao cão, iria expô-lo em casa de Isabel, e ele não
podia permitir que ela o visse ou descobrisse, sequer. Telefonou aos
dois amigos, como lhe prometera e combinaram encontrar-se na quinta
de Isabel, quem chegasse primeiro esperava no portão.
-
Sabes o que vai acontecer quando lá chegares, não sabes? –
perguntou César gravemente, temendo que João tivesse uma nova
crise.
-
Sei. Ele matou o cão, quer amedrontá-la e perturbar-me. –
respondeu, acelerando a fundo.
-
Achas que estás capaz de lidar com isto?
-
César, por favor, não sou nenhuma menina de escola. – resmungou
chateado com a insinuação de que não teria capacidade de lidar com
tudo aquilo.
-
Pois não, mas pelo menos trouxeste os comprimidos de SOS? –
perguntou de forma prática.
-
Sim… - resignou-se, pois sabia que o amigo tinha razão. Já
sentira as primeiras palpitações ao telefone com Rosário, esperava
que o cão não tivesse sido maltratado. Gostava dele, e a crueldade
gratuita seria difícil de engolir.
Fizeram
o restante caminho em silêncio, até chegarem à entrada da casa,
onde já esperavam Salvador e Janota, que parecia diferente, com uma
postura de ataque iminente, como se estivesse em alerta para o pior,
o que o acalmou um pouco. Era bom saber que não enfrentaria aquilo
sozinho, e se desmaiasse teria alguém para o ajudar.
-
Onde está a Marta?, quer dizer, a Isabel? – perguntou Janota com
cara de poucos amigos.
-
Calma, ela está com a mulher do César. – apontou para o amigo que
saía do carro. – Obrigado por terem vindo. Não era preciso tudo
isto, só vim procurar o Filipe, que desapareceu de minha casa, hoje
pela hora do almoço… - explicou, entrando pelo portão e sendo
seguido pelos três homens.
-
Mas fugiu? – perguntou Salvador.
-
Não. Em princípio deve ter sido o ex-marido da Isabel que o levou.
A minha empregada disse que apareceu lá um homem a dizer que tinha
combinado comigo ir buscá-lo, que era o dono…
-
Filho da mãe… - rosnou Janota, cada vez mais desconfiado de que
aquilo não ia terminar bem. – João, deixa-me entrar primeiro, por
favor. – pediu-lhe, afastando-o da porta e assumindo o controle da
investigação informal. Entrou silenciosamente na casa escurecida e
fechada há alguns dias, sem detetar sinais de presenças humanas.
Inspeccionou as primeiras divisões, em silêncio, olhando tudo
pormenorizadamente, como tinha aprendido nos treinos da sua antiga
profissão, tentando não dar ouvidos à sua intuição que o
enervava.
João
não conseguia aguentar aquele ritmo lento de Janota, e lançou-se
até ao local que sabia interiormente que seria o escolhido por Tiago
para deixar algum outro “recado”. A porta da sala de prática
estava trancada, o que o fez arrepiar-se dos pés à cabeça e
estacar, parando por um momento para raciocinar. Colocou o ouvido na
porta, espreitou pela fechadura, mas não conseguia perceber o que se
teria passado lá dentro. Um cheiro estranho e acre surgiu de uma
maneira agressiva, e os três homens surgiram por trás de João,
tentando perceber o que seria.
-
Sangue. – disse Salvador com a garganta seca ao olhar para os pés,
que pisavam sangue vindo debaixo da porta, e que continuava a sair
sem parar.
-
Ajudem a abrir! – suplicou João, que forçava a fechadura nervoso.
-Calma,
deixem-me passar. – ordenou Janota autoritariamente. Posicionou-se
de lado e dirigiu toda a sua força contra a porta, rebentando com
facilidade o encaixe de madeira, escancarando a porta com estrondo. –
Foda-se….
Entraram
os quatro devagar, olhando incrédulos e horrorizados a cena dantesca
na sala de yoga. Filipe pendia do candeeiro de teto, a sangrar, como
um animal de abate, pendurado pela pata partida e enfaixada, com a
expressão vazia dos cadáveres, ainda com restos de líquidos
corporais a saírem por um golpe profundo ao longo da barriga,
girando em câmara lenta. João caiu de joelhos no chão coberto de
sangue, apoiando-se com as mãos, a sentir a sala à roda, como se
girasse com o cão, e uma dor na barriga perfurou-o violentamente,
fazendo-o vomitar sem controlo, num movimento repetitivo e convulso.
-
Ajudem-me a levá-lo daqui para fora! – berrou César, que o puxava
por debaixo das axilas, tentando arrastá-lo sem sucesso.
César,
Salvador e Janota agarraram-no em peso e tiraram-no da sala,
levando-o até à rua, por sugestão do psiquiatra que escorria suor,
empalidecido e transtornado. Temia que aquilo fosse demais para o
amigo, que João não se levantasse mais voluntariamente, se
mantivesse em posição fetal, até conseguirem chegar a um hospital
e receber ajuda especializada. As mãos tremiam-lhe quando puxou pela
cara de João, procurando o seu olhar, pedindo-lhe que lhe
respondesse a questões simples, trazendo-o para a realidade
imediata. O amigo mantinha-se apático e perdido, sem reagir, e
Salvador não esperou a ordem de César, chamando o Inem
imediatamente ao perceber o que tinha acontecido. João entrara no
buraco negro das depressões, todas aquelas emoções provocaram-lhe
um esgotamento nervoso, teriam de agir depressa para que não se
afundasse demasiado.
Janota
deixou-os com João na rua e tratou de limpar o local do crime. Sabia
que ali tinham ido sem polícia para que Isabel não soubesse o
destino que o psicopata dera ao animal, e ele iria terminar aquela
tarefa. Tirou o cão do teto, trouxe-o para a parte de trás da casa
e depois de procurar na garagem encontrou uma pá, abrindo uma cova e
enterrando o corpo. Marcou o local com uma estaca velha e voltou para
dentro de casa. A pior parte estava concluída, enquanto houvesse
cadáver a testemunhar o crime aquela sensação de enjoo não lhe
permitia pensar com clareza. Havia ainda muita limpeza a fazer,
lamentou-se, agradecendo logo de seguida aquele sangue ser de cão e
não de humano. Há muitos anos que não se via em situação
semelhante, e prometera a si mesmo que terminaria com aqueles filmes
de terror no seu dia-a-dia. Pediu a Deus que aquele fosse o último e
tratou de pôr mãos ao trabalho, aquela sala teria de ficar
imaculada. Alguém
tem de o fazer,
suspirou para si mesmo.
(direitos reservados, afsr)
(imagem, internet)
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