terça-feira, 2 de outubro de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 16 (2ª parte)




Deixou-a com Elisabete, angustiado com o farrapo em que Isabel se tinha transformado, desde sua casa até ali, cada vez mais furioso com aquele psicopata que não os deixava em paz. O seu lado racional dizia-lhe para ir diretamente à polícia, mas se o traste tivesse feito algum mal ao cão, iria expô-lo em casa de Isabel, e ele não podia permitir que ela o visse ou descobrisse, sequer. Telefonou aos dois amigos, como lhe prometera e combinaram encontrar-se na quinta de Isabel, quem chegasse primeiro esperava no portão.
- Sabes o que vai acontecer quando lá chegares, não sabes? – perguntou César gravemente, temendo que João tivesse uma nova crise.
- Sei. Ele matou o cão, quer amedrontá-la e perturbar-me. – respondeu, acelerando a fundo.
- Achas que estás capaz de lidar com isto?
- César, por favor, não sou nenhuma menina de escola. – resmungou chateado com a insinuação de que não teria capacidade de lidar com tudo aquilo.
- Pois não, mas pelo menos trouxeste os comprimidos de SOS? – perguntou de forma prática.
- Sim… - resignou-se, pois sabia que o amigo tinha razão. Já sentira as primeiras palpitações ao telefone com Rosário, esperava que o cão não tivesse sido maltratado. Gostava dele, e a crueldade gratuita seria difícil de engolir.
Fizeram o restante caminho em silêncio, até chegarem à entrada da casa, onde já esperavam Salvador e Janota, que parecia diferente, com uma postura de ataque iminente, como se estivesse em alerta para o pior, o que o acalmou um pouco. Era bom saber que não enfrentaria aquilo sozinho, e se desmaiasse teria alguém para o ajudar.
- Onde está a Marta?, quer dizer, a Isabel? – perguntou Janota com cara de poucos amigos.
- Calma, ela está com a mulher do César. – apontou para o amigo que saía do carro. – Obrigado por terem vindo. Não era preciso tudo isto, só vim procurar o Filipe, que desapareceu de minha casa, hoje pela hora do almoço… - explicou, entrando pelo portão e sendo seguido pelos três homens.
- Mas fugiu? – perguntou Salvador.
- Não. Em princípio deve ter sido o ex-marido da Isabel que o levou. A minha empregada disse que apareceu lá um homem a dizer que tinha combinado comigo ir buscá-lo, que era o dono…
- Filho da mãe… - rosnou Janota, cada vez mais desconfiado de que aquilo não ia terminar bem. – João, deixa-me entrar primeiro, por favor. – pediu-lhe, afastando-o da porta e assumindo o controle da investigação informal. Entrou silenciosamente na casa escurecida e fechada há alguns dias, sem detetar sinais de presenças humanas. Inspeccionou as primeiras divisões, em silêncio, olhando tudo pormenorizadamente, como tinha aprendido nos treinos da sua antiga profissão, tentando não dar ouvidos à sua intuição que o enervava.
João não conseguia aguentar aquele ritmo lento de Janota, e lançou-se até ao local que sabia interiormente que seria o escolhido por Tiago para deixar algum outro “recado”. A porta da sala de prática estava trancada, o que o fez arrepiar-se dos pés à cabeça e estacar, parando por um momento para raciocinar. Colocou o ouvido na porta, espreitou pela fechadura, mas não conseguia perceber o que se teria passado lá dentro. Um cheiro estranho e acre surgiu de uma maneira agressiva, e os três homens surgiram por trás de João, tentando perceber o que seria.
- Sangue. – disse Salvador com a garganta seca ao olhar para os pés, que pisavam sangue vindo debaixo da porta, e que continuava a sair sem parar.
- Ajudem a abrir! – suplicou João, que forçava a fechadura nervoso.
-Calma, deixem-me passar. – ordenou Janota autoritariamente. Posicionou-se de lado e dirigiu toda a sua força contra a porta, rebentando com facilidade o encaixe de madeira, escancarando a porta com estrondo. – Foda-se….
Entraram os quatro devagar, olhando incrédulos e horrorizados a cena dantesca na sala de yoga. Filipe pendia do candeeiro de teto, a sangrar, como um animal de abate, pendurado pela pata partida e enfaixada, com a expressão vazia dos cadáveres, ainda com restos de líquidos corporais a saírem por um golpe profundo ao longo da barriga, girando em câmara lenta. João caiu de joelhos no chão coberto de sangue, apoiando-se com as mãos, a sentir a sala à roda, como se girasse com o cão, e uma dor na barriga perfurou-o violentamente, fazendo-o vomitar sem controlo, num movimento repetitivo e convulso.
- Ajudem-me a levá-lo daqui para fora! – berrou César, que o puxava por debaixo das axilas, tentando arrastá-lo sem sucesso.
César, Salvador e Janota agarraram-no em peso e tiraram-no da sala, levando-o até à rua, por sugestão do psiquiatra que escorria suor, empalidecido e transtornado. Temia que aquilo fosse demais para o amigo, que João não se levantasse mais voluntariamente, se mantivesse em posição fetal, até conseguirem chegar a um hospital e receber ajuda especializada. As mãos tremiam-lhe quando puxou pela cara de João, procurando o seu olhar, pedindo-lhe que lhe respondesse a questões simples, trazendo-o para a realidade imediata. O amigo mantinha-se apático e perdido, sem reagir, e Salvador não esperou a ordem de César, chamando o Inem imediatamente ao perceber o que tinha acontecido. João entrara no buraco negro das depressões, todas aquelas emoções provocaram-lhe um esgotamento nervoso, teriam de agir depressa para que não se afundasse demasiado.
Janota deixou-os com João na rua e tratou de limpar o local do crime. Sabia que ali tinham ido sem polícia para que Isabel não soubesse o destino que o psicopata dera ao animal, e ele iria terminar aquela tarefa. Tirou o cão do teto, trouxe-o para a parte de trás da casa e depois de procurar na garagem encontrou uma pá, abrindo uma cova e enterrando o corpo. Marcou o local com uma estaca velha e voltou para dentro de casa. A pior parte estava concluída, enquanto houvesse cadáver a testemunhar o crime aquela sensação de enjoo não lhe permitia pensar com clareza. Havia ainda muita limpeza a fazer, lamentou-se, agradecendo logo de seguida aquele sangue ser de cão e não de humano. Há muitos anos que não se via em situação semelhante, e prometera a si mesmo que terminaria com aqueles filmes de terror no seu dia-a-dia. Pediu a Deus que aquele fosse o último e tratou de pôr mãos ao trabalho, aquela sala teria de ficar imaculada. Alguém tem de o fazer, suspirou para si mesmo.

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(imagem, internet)

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