Tal
como imaginou, o carro seguiu-a até à quinta, mantendo sempre uma
distância constante. Isabel pagou e entrou em casa, deixando a porta
apenas no trinco, para que ele entrasse com facilidade. Não queria
mais entraves, dar-lhe-ia o que ele tanto queria, a sua vida, se
assim fosse a vontade do Destino. Largou a mala no sofá,
descalçou-se, passou pela cozinha e entrou na sala de yoga,
sentando-se de frente para Shiva e Ganesha, orando à sua proteção,
enquanto esperava. Já não sentia medo, apenas raiva, e estava
cansada de fugir. Não poderia andar toda a vida com aquele fantasma
a persegui-la, aquilo não era viver, era ser uma presa. Se João já
não se recordava dela, seria muito mais simples Isabel desaparecer.
Se não podia viver com ele, também nunca poderia viver com mais
ninguém, nem queria. O seu egoísmo levara a tudo aquilo, ao
desfecho dramático do dia anterior, e não poderia permitir que mais
ninguém sofresse por causa de Tiago. Estava na hora de ser
altruísta, acabar de vez com ele e a única forma que sabia ser
eficaz era acabar com o objeto da sua obsessão.
Tiago
entrou em silêncio, excitado com aquela reviravolta. Isabel
chamava-o, não fugia. Encostou a porta e trancou-a, colocando uma
cadeira em posição de tranca, limitando ainda mais a tentativa de
entrada de terceiros. Queria privacidade total. Tinha imaginado
aquele reencontro todos os dias antes de adormecer, agora parecia-lhe
quase um sonho, sentia-se excitado e nervoso.
Espreitou
para a sala onde no dia anterior tinha morto o cão e viu-a, serena,
sentada de costas, sem medo, o que o arrepiou ligeiramente. Não
estava acostumado a ser apanhado de surpresa, ela deveria estar a
implorar que não a matasse, ou a fugir como um rato enjaulado. Só
assim teria o controle da situação. Se ela não reagia era
estranho, mas sedutor.
-
Olá Isabel.
Isabel
manteve-se de costas, de olhos abertos fixos nas imagens danificadas
de grafiti vermelho, sem reagir à voz, propositadamente. Conhecia-o
tão bem que podia imaginar o que a sua mente depravada estava a
pensar. Deveria estar confuso, excitado, e pronto a atacar. Respirou
mais algumas vezes, para se acalmar, agora não havia volta a dar. Ia
ser o último encontro.
-
Eu disse olá! – reforçou meio alterado, dando alguns passos
incertos na direção dela, que se voltou nesse momento, mantendo-se
sentada e olhando-o com ódio.
-
Eu ouvi. Ainda bem que vieste. - observou-o a, sem mostrar fraqueza,
queria que ele não reagisse, para lhe dar tempo para conseguir
concretizar o que tinha imaginado - Estava a preparar-me para fazer
uma coisa muito importante, e queria muito que estivesses presente.
Senta-te por favor! – disse, sem emoção na voz. Tiago obedeceu
confuso, colocando-se a uma distância de segurança por não saber o
que se iria passar a seguir. Normalmente era ele que tinha o controlo
da situação, e deixava que Isabel se lhe adiantasse por curiosidade
mórbida. Isabel tirou uma faca debaixo das pernas e mostrou-lha
sorrindo.
-
És tu que gostas de esfaquear coisas, não é? Pois vou-te oferecer
um presente. – pegou na faca e as mãos tremeram-lhe ligeiramente,
temendo não ter coragem para acabar com tudo – Nunca percebi
porque me odiavas tanto, o que fazia de mal para que me quisesses
bater, pensava que era a culpada de tudo o que me acontecia, mas hoje
percebi que não, - começou a explicar, deixando uma lágrima cair
sem conseguir evitar mostrar as emoções – o teu objetivo é
matares-me, porque não és uma pessoa normal, és um monstro. E os
monstros escondem-se debaixo das nossas camas, à espera que caiamos
no sono, para nos atacarem. Cobardes e maus, como tu. - ameaçou
cortar o pulso ao vê-lo mexer-se na sua direção e conseguiu
mantê-lo em espera, continuando o seu discurso – Um dia gostei de
ti, quis ser tua, faria tudo por nós, até levar porrada, e nem isso
te satisfez. Mataste tudo o que um dia amei, e desta vez conseguiste
matar até o que restava de mim, a minha vontade de continuar, a
força de lutar contra ti. Foi-se tudo. - Sentia os nervos crescerem
dentro dele, que começava a tremer no lugar, desorientado com a
imagem da faca na pele dela, e uma vontade mórbida de o ver sofrer
deu-lhe a coragem que lhe estava a faltar. Fez um golpe rápido no
pulso esquerdo, que começou automaticamente a verter sangue, pegou
com essa mão na faca e repetiu o gesto no pulso direito.
-
Não!!! – berrou, lançando-se na direção dela, em pânico,
depois de recuperar do choque daquela visão. Tentou agarrar-lhe na
faca, mas Isabel foi mais rápida e aproveitou o embalo dele para
enterrar a faca no centro do peito de Tiago, que arfou violentamente
e lhe caiu em cima, de olhos abertos e assustados.
O peso do corpo sufocava-a, como uma sentença de morte que iria
chegar para eles os dois, ali sozinhos na sala, sentindo-se cada vez
mais fraca. Fechou os olhos, visualizou a imagem de João e respirou
fundo, finalmente teria paz.
(direitos reservados, afsr)
(imagem, internet)
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