“… quem
está livre és mesmo tu! O menino ria, deitando a cabeça para trás,
em provocação, mas adorava-o, não conseguia sentir raiva dele. Tão
bonito quanto atrevido, sempre a sorrir a cada partida, sem nunca
perder a energia infantil, como um pião giratório, que enlouquecia
tudo e todos. Anda cá! Gritou, correndo no seu encalço, excitado
com a fuga. Queria ver-lhe o rosto, perceber porque se sentia tão
feliz perto dele. Sabia que o conhecia, só queria apanhá-lo a tempo
de o olhar, pois sentia-se a acordar, estava quase lá, a pequena mão
escapava-se-lhe como se estivesse besuntada de manteiga, mas nesse
momento percebeu que não, era geleia, de marmelo, que a avó fizera
de manhã e lhes dera dentro de um pão, que cheirava a amor e
felicidade, o cheiro dos lanches da avó Lena…”
João
acordou sobressaltado com aquele breve sonho, efeito da digestão do
jantar com mais uma dose de comprimidos variados, a nova sobremesa do
hotel de cinco estrelas a que estava confinado, sem data para sair.
Não era a primeira vez que lhe aparecia uma criança nos sonhos,
pensava curioso, nem aquele cheiro a pão fresco, mas César
alertara-o de que os sonhos noturnos poderiam ser confusos e pouco
credíveis. Era necessário deixá-los aparecer, sem que isso se
transformasse num factor de mais angústia. Havia remédios para não
sonhar, informaram-no numa das visitas consulta, mas só seriam
necessários se ele não lidasse positivamente com essas
manifestações do inconsciente. Como estava farto de medicamentos,
esforçava-se para não sucumbir à angústia que o rosto indefinido
do menino lhe provocava.
E
também havia Isabel, a bela mulher que aparecera naquela tarde,
trazendo-lhe mais um raio de esperança. Era nela que teria de
pensar, como um objetivo claro para a sua recuperação total. Iria
visualizar a sua cara antes de voltar a adormecer, na tentativa de
sonhar com ela. Estava farto de ser prisioneiro do passado, queria
dedicar-se ao futuro.
César
abriu a porta de casa e sentiu automaticamente metade do peso
sair-lhe de cima. Dias de trabalho duros eram sempre difíceis de
ultrapassar, mas por vezes dava por si a desejá-los, só para sentir
aquele alívio quando entrava em casa e recebia aquela energia
positiva que Lisa colocava em tudo, nos pequenos pormenores. Uma flor
diferente no hall, aquela velinha acesa em honra da Sagrada Família
que os olhava da sapateira da entrada, o cheiro de um ambientador por
cima da mesa de café no centro da sala que se misturava com o odor a
pele gasta dos sofás já a pedir reforma, mas que teimosamente iam
ficando por serem os únicos anatomicamente adaptados ao casal. Tudo
aquilo o curava, menos naquele dia. Sentou-se no seu lugar, como
habitualmente, à espera que Lisa aparecesse de uma das divisões,
enquanto ele remoía nas suas dores, sentindo-se especialmente em
baixo. Uma mistura de frustração com medo, que não conseguia bem
explicar, apertavam-lhe a barriga. Levantava-se do sofá quando
Elisabete lhe surgiu por trás, abraçando-o com um braço e
colocando-lhe um copo generosamente servido de whisky, com duas
pedras a dançar, tilitando.
-
Como é que sabias que ia mesmo agora buscar um? – perguntou
espantado com a clarividência da mulher.
-
Muitos anos, meu querido. Já tenho o Doutoramento em maridos
psiquiatras. – brincou, sentando-se do seu lado intimamente.
-
Sim, é verdade, eu tenho muita sorte. Não sei como é que os meus
colegas aguentam aquelas mulheres de vinte e poucos anos,… não é
que estejas velha, - sorriu-lhe atrevido – mas és como eu, andamos
na mesma rotação. Acho que já tinha pirado se não fosses tu. –
confessou, pegando-lhe na mão e dando-lhe um beijo.
-
Isso é verdade, tens mesmo muita sorte! – gracejou – Agora
explica-me lá o que te deixou assim tão cabisbaixo, velhote!
-
Ainda não percebi bem o que aconteceu. A imagem que ilustra é um
grande trator a arrebanhar tudo e todos, passando por cima sem dó
nem piedade.
-
Deixa-te de ilustrações, - disse curiosa – conta-me tim tim por
tim tim o que viste.
-
Bem, quando cheguei ao final da tarde ao quarto do João, entro e
vejo uma mulher loira, vistosa, sentada à sua beira na cama, de mãos
dadas com ele. – começou a explicar – Fiquei naturalmente
surpreso com a cena, nunca a tinha visto, e o João parecia também
estupefacto, coitado.
-
Pois, ele ficaria estupefacto com qualquer coisa, não se lembra de
nada… - acrescentou.
-
Claro. Mas a tipa tinha qualquer coisa no olhar que assusta, sabes?
Apresentou-se como a “Isabel”, namorada do João. Acreditas? –
exclamou infamado.
-
Hum… Sim, e que mais? – perguntou, de olhar fixo no nada,
concentrada nos pormenores do discurso do marido.
-
Chamei-a logo ao gabinete, para tentar perceber o que é que ela
queria… Confrontei-a com a verdade, que sabia que ali havia esquema
e ela não negou nem confirmou. Apenas me esclareceu que era
conhecida do João e mostrou-me as provas dessa relação… umas
fotos nojentas dos dois na cama.
-
Como eram as fotos?
-
Como eram as fotos? – perguntou escandalizado com a curiosidade da
mulher.
-
Sim! Como estavam? Deitados, de bruços, de cócoras… diz lá!
-
O João deitado, de olhos fechados, e ela em várias posições… a
fotografar, com o braço estendido, assim. – demonstrou como
deveriam ter sido captadas as fotos, pela lógica da perspectiva.
-
E depois? O que disseste quando as viste?
-
O óbvio, que aquilo não provava nada! E ela desafiou-me,
literalmente, levantou-se e saiu disparada de volta para o quarto
dele… Quando a consegui alcançar, já a apanhei aos beijos com
ele.
-
Esperta… E o João? Embasbacado, não?
-
Coitado, com cara de quem não sabia onde se meter… Mas o pior não
sabes… - acrescentou gravemente – Ela pediu os pertences pessoais
dele na sua frente, chaves do carro, casa, roupa, e não nos deu
outra hipótese senão obedecer-lhe. Como é que íamos explicar
depois ao João que não podíamos dar as chaves à “namorada”,
sem transformar aquilo num problema ainda maior?
-
Que loucura… E agora a tipa deitou a mão à casa e ao carro? –
perguntou, sem precisar de uma resposta – Será que está lá neste
momento?
-
Não sei, espreita aí da varanda e vê se há lá luz. – disse sem
emoção na voz, bebendo mais um gole.
Elisabete
obedeceu energicamente, olhando discretamente para o prédio ao lado
e confirmando que a tal “Isabel” estava em casa do João. Uma
ideia surgiu-lhe, seria arriscado, mas precisava tentar ajudar o seu
amigo e resolver a trapalhada que o marido não tinha tido coragem de
fazer.
-
Não há luz nenhuma… - mentiu, fechando um pouco do estore para
dissuadir o marido de confirmar o que ela dizia – Bem, deixa-te
estar aí a terminar o teu whisky, relaxa, que eu vou lá abaixo ver
o correio e já venho. Podias ir tomar um banho, o jantar está quase
pronto, e já continuamos a conversa. – beijou-o na cabeça e saiu
em direção à porta de casa, sem demonstrar qualquer
constrangimento.
-
Está bem. – disse, engolindo o resto da bebida de uma só vez. A
ideia do banho animava-o, e precisava de jantar rapidamente, senão o
whisky tomar-lhe-ia conta do juízo.
Elisabete
bateu a porta de casa e apressou-se a dirigir-se ao prédio do lado,
onde a tal mulher se encontrava, a ocupar uma casa que não lhe
pertencia. Não sabia bem o que lhe iria dizer concretamente, mas
precisava de a ver ao vivo, dirigir-lhe algumas palavras para tentar
entender com que tipo de pessoa o João teria que lidar, e
consequentemente, todos eles. Tocou a uma campainha ao acaso e pediu
educadamente para lhe abrirem a porta do prédio, inventando uma
desculpa coerente. Ninguém desconfiava de uma voz de mulher aflita,
comprovou, ao ouvir o som da porta automática a abrir prontamente.
Subiu as escadas, evitando o elevador, na tentativa de ganhar tempo
para se preparar, sentindo-se ligeiramente nervosa. Agora não
poderia desistir, e teria de ser rápida, para que César não
desconfiasse.
Colocou
o ouvido delicadamente junto à porta de casa de João, parecia-lhe
ouvir música um pouco estranha e agressiva, daquelas que passavam na
rádio do café perto da escola de yoga. Tocou à campainha e fez o
seu melhor ar, certa de que a rapariga iria estudar a imagem pelo
óculo e esperou um instante antes de premir novamente o botão,
insistindo.
-
Sim? – uma voz em alerta soou do outro lado.
-
Sim? Vizinha? Desculpe incomodar, mas estou muito aflita! – disse
fingindo-se com um problema grave.
Nélia
abriu uma nesga da porta, desconfiada daquela visita repentina, mas
já tinha denunciado a sua presença, não poderia deixar a mulher
sem resposta.
-
O que aconteceu?
-
Desculpe querida, mas moro aqui ao lado, e acho que o meu gato saltou
para a sua varanda… estou tão aflita, posso ir lá ver se ele está
bem? – choramingou, já entrando pela casa, desaustinada.
-
Sim, claro… - reagiu sem hipótese – Mas tem a certeza de que o
gato veio para esta varanda? – perguntou, abrindo a porta de vidro
e espreitando para o local já escurecido da noite.
-
Ai, meu Deus… não está aqui! – exclamou, deitando as mãos à
cabeça – Eu vi-o saltar… não me digam que caiu lá para baixo!
-
Tenha calma, os gatos têm muitas vidas! Sente-se um pouco, pode ser
que tenha saltado novamente para a vossa varanda… - Nélia
esforçou-se por ser simpática, afinal iria morar ali por uns
tempos, não queria ser mal falada.
-
Obrigada… - fungou, tirando um lenço do bolso e fazendo de conta
que limpava uma lágrima dos olhos – Podia dar-me um copo de água?
Estou muito nervosa. – pediu, tentando perceber se ela já era
íntima do local, observando-a a procurar o armário correto dos
copos e analisando todas as movimentações da loira espampanante.
-
Aqui tem. Beba. Vou espreitar melhor a varanda. – Nélia deixou-a a
recompor-se, não lhe apetecia nada ficar a dar conversa a mulheres
com chiliques da menopausa.
-
É muito atenciosa… - suspirou, assim que a rapariga voltou da
varanda – Desculpe invadir assim a sua casa… deve estar atrasada
já com o jantar, não é? – comentou, devolvendo-lhe o copo e
mostrando intenção de sair – O Dr deve estar a chegar…
-
Eh… sim, ia agora começar a fazer o jantar. – mentiu, começando
a ficar incomodada com o seguimento da conversa.
-
Engraçado, nunca a vi aqui no prédio. Está cá há pouco tempo, de
certeza.
-
Sim, sim. Mudei-me apenas há algumas semanas… Mas quase nunca saio
de casa. O João não quer que eu trabalhe. – inventou, tentando
encaminhar a mulher para fora do apartamento.
-
Ah, faz muito bem. Uma rapariga assim tão bem apessoada, é normal
que ele tenha ciúmes e a queira guardar! – gracejou, dando-lhe o
braço e deixando-se levar até ao corredor. Já tinha percebido o
que queria e feito a primeira abordagem à mulher. Já não era uma
total estranha para a suspeita de burla, e isso seria importante.
-
Obrigada, mas agora tenho de ir fazer o jantar…
-
Claro, querida. Obrigada pela sua simpatia, vou procurar o “Tareco”
na casa da outra vizinha. Adeus, e espero vê-la mais vezes! –
deu-lhe um par de beijos e deixou-a fechar a porta, antes de se
lançar em direção a sua casa. O marido já devia estar pronto do
banho e a lasanha tinha ficado no forno por esquecimento. Seria uma
catástrofe!
-
Mas onde é que tu te meteste? – exclamou César aborrecido, à
luta com as luvas de pano com que tentava tirar o jantar do forno.
-
Desculpa, a Dona Perpétua apanhou-me lá em baixo e não se calava!
– mentiu, tirando-lhe tudo das mãos e puxando a travessa com
facilidade para a mesa já posta na sala. – Vamos, que isto está
no ponto! – disse animada.
-
Cheira muito bem… Mas não tenho assim muito apetite.
-
Nem penses em fazer-me uma desfeita dessas. Nada de depressões
imaginárias, tens de comer, e este é um dos teus pratos favoritos!
Vamos, dá cá o prato! – ordenou, tomando as rédeas da situação,
ali quem mandava era ela, como uma mãe de substituição, mantendo a
família na ordem.
César
obedeceu e deixou-a encher o prato, sorrindo ligeiramente, afinal,
era muito bom ter alguém que gostava dele ao ponto de o querer
alimentar como uma criança. Serviu os copos de vinho e lançou-se na
Lasanha, adiando um pouco o resto da conversa sobre João. Lisa tinha
aquele dom, o de o chamar à realidade mais básica, puxando-o
daqueles planos mais abstratos e angustiantes dos pensamentos. Comer
era um dos seus trunfos, e se ela cozinhava bem, pensou satisfeito.
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(imagem, internet)
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