terça-feira, 16 de outubro de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 18 (2º parte)




João acordou com as vozes animadas que enchiam o corredor, ainda confuso com o último sonho que o perseguia há várias noites consecutivas. Uma mulher morena de tranças enormes embalava um pequeno elefante com variados braços, que o rodeavam com carinho, silenciando-o. A pequena criatura chorava de mimo, ou outra criancice qualquer, exigindo colo, como os pequenos bebés humanos, e apenas se acalmava quando ela lhe satisfazia o pedido. Uma voz melodiosa adormecia a cria elefante, entoando sons de uma língua estranha, mas familiar, sem sentido, que o acordavam sempre que tentava acompanhar a canção, ficando com a música presa naquele limbo de sonho e consciência, desaparecendo da mesma forma rápida com que lhe surgia no sono.
Reconhecia a voz de barítono do seu médico, bem como o falsete da mulher dele, que trabalhava como voluntária no hospital e lhe fazia companhia durante algumas horas por dia. Uma presença agradável que o serenava, por já a sentir familiar. Tentava perceber o que falavam, e uma terceira voz mais moderada entrou na conversa, contrastando com o tom feliz do casal de meia idade. Gostava do som com que a mulher terminava as frases, musicando certas palavras, deixando-lhe claro de que tinha um sotaque diferente do que normalmente ouvia no hospital. Recordava-se de já a ter ouvido antes, mas não sabia bem onde, surgindo-lhe de repente a imagem de uma enfermeira pálida que vira há algumas semanas no seu quarto, mas que misteriosamente nunca mais aparecera. Desde que tinha recuperado a consciência suficiente catalogava caras, nomes, sons, feitios, como exercício mental de memória, na esperança de se recordar de si mesmo, da pessoa que fora antes de ter acordado naquele quarto. Tudo lhe era dito com cautelas e reservas, como se o seu passado desconhecido o pudesse transtornar, e esse facto angustiava-o bastante. O que teria acontecido de tão grave na sua vida para que ninguém se atrevesse a contar-lhe? Temeriam que enlouquecesse ou não aguentasse a verdade? Chamava-se João, não tinha parentes, era psiquiatra, pela lógica e como ainda não tinha aparecido para o visitar, não tinha mulher ou namorada, filhos muito menos. Um miserável sozinho no mundo, com dinheiro para pagar a diária daquela clínica cara. Era tudo o que sabia de si mesmo. Uma coisa era certa, sentia-se incompleto, não pela falta de pai ou mãe, que já de si era triste, mas uma parte de si parecia ter sido arrancada. Talvez a sua mulher falecera e isso o levara até aquele quarto de hospital, matutava por vezes. Só isso explicava a sensação de saudade que o corroía. Saudades de um corpo, de uma mulher que um dia deveria ter tido. Porque sentia falta dela, e isso crescia dentro de si, como um balão de ar que lhe sufocava o coração de dia para dia. Não precisava de pai nem mãe, mas queria-a de volta, mesmo que apenas o nome de uma pessoa que existira em tempos.
- Bom dia! – César interrompeu os seus pensamentos, inundando o quarto de animação, seguido por Elisabete e a enfermeira desaparecida.
- Bom dia. – respondeu, sentindo-se ligeiramente encavacado com a presença pouco habitual da mulher bonita que se mantinha pouco à vontade sem saber onde colocar as mãos.
- Como passaste a noite? Tudo calmo? – questionou-o, com um brilho diferente no olhar.
- Bem. – desviou o olhar do médico para a enfermeira que ruborizou de uma forma que lhe agradou subitamente. – Já não vinha aqui há bastante tempo. – disse-lhe, endireitando-se na cama.
- Hum… sim, estive de férias… - inventou Isabel à pressão, sem saber o que dizer. Não esperava que ele lhe falasse diretamente, nem a olhasse durante tanto tempo seguido. César convencera-a a entrar, seguro de que ele não iria estranhar a sua presença, mas o quente que sentia crescer nas bochechas denunciava o seu nervosismo, lamentando ter seguido o seu conselho.
- Queria mesmo falar com uma enfermeira. – iniciou, sem perceber porque continuava a querer manter conversa com aquela técnica de saúde em especial – Acha que já posso começar a tomar banho num chuveiro normal e ir até à sala de convívio? Estou farto destas paredes e de me darem banho de gato… - resmungou, desejoso de que ela o autorizasse.
- Acho que sim… ainda não se levantou daí? – perguntou espantada, olhando interrogativamente César.
- Bem, só agora é que as doses dos remédios permitem essas movimentações, por isso sentes essa necessidade. – explicou, olhando João satisfeito com as súbitas exigências do amigo.
- Então, por favor, se tiver tempo hoje, precisava apenas de ajuda para o caso de me sentir tonto. Pode cá passar em alguma altura do dia? – questionou-a, desejando que fosse ela a monitorizar as suas atividades e não uma trombuda qualquer.
- Pode ser agora mesmo! – respondeu César, antes que Isabel se esquivasse – Vamos Elisabete, o João precisa mesmo de um banho, fazer a barba à homem e deixar esta cama por algumas horas. – apressou-se a puxar a mulher para fora do quarto, sorrindo.
Depois de uns segundos que pareceram horas a Isabel, João deixou de a olhar e começou a levantar-se, mostrando grande dificuldade nos movimentos, o que a despertou daquela perplexidade momentânea. Tinha imaginado tudo naquela manhã, enquanto se dirigia à clínica para o ver, depois de três semanas em Castelo Branco fechada em casa, menos que lhe iria dar banho.
- Desculpe, eu ajudo-o. – disse numa gaguez nervosa, apressando-se a ajudá-lo a levantar.
- Talvez seja melhor ir com calma… - sugeriu João ao sentir-se tonto quando ela o agarrou.
- Sim, claro, desculpe… - sussurrou, respirando fundo para se acalmar. Depois de tanto tempo longe dele, estar tão perto e não o poder abraçar nem beijar era difícil de aguentar. Teria de se forçar a representar aquele papel de enfermeira imposto. – É natural sentir-se tonto, está deitado há demasiado tempo… - consolou-o, sentando-se calmamente a seu lado na cama – não é preciso ter pressa.
- Como se chama? – perguntou curioso, olhando-a mais de perto. Era uma mulher bonita, sem aliança, constatou, depois de analisar as suas mãos delicadamente poisadas nas pernas.
- Ha…. Marta. – saiu-lhe sem pensar, fugindo com o olhar para a casa de banho.
- Ok Marta, vamos lá então? – estendeu-lhe a mão para se apoiar e tentou novamente levantar-se devagar, ficando surpreendido ao notar duas grandes cicatrizes nos seus pulsos.
- Sim, com calma. – disse-lhe, corando automaticamente quando o viu olhar as marcas do seu episódio dramático com Tiago.
João disfarçou o espanto da descoberta íntima sobre a enfermeira e continuou a caminhada pouco estável até ao quarto de banho que ainda não utilizara, cada vez mais ansioso com a ideia de se lavar com água corrente. Isabel entrou na frente, dando-lhe os braços como apoio e obrigou-o a sentar-se num banco para se restabelecer da tontura que aquele pequeno percurso lhe provocara.
- Temos tempo… fique aqui que vou buscar-lhe um pijama lavado. - disse-lhe com ternura, emocionada com o ar desconcertado e frágil que ele mostrava naquele pequeno esforço de dar meia dúzia de passos de pé.
- Obrigado. – um leve pânico invadia-lhe a garganta. Nunca pensara que o regresso às simples atividades diárias lhe custasse tanto. Estava amorfo, sem vitalidade, com os músculos atrofiados de tanto descanso. Uma antiga sensação de boca seca apoderou-se dele, juntamente com o ritmo cardíaco descontrolado. Sabia que já tinha sentido aquilo antes, mas isso não o consolava, apenas o transtornava mais. Uma dormência forte crescia-lhe nos braços, enervando-o cada vez mais, ao mesmo tempo que temia desmaiar a qualquer momento.
- Estes pijamas são horríveis… - comentava, tentando descontrair o ambiente, quando o viu na mesma posição aflitiva em que ficara quando tivera o ataque de pânico no Gerês. Ajoelhou-se nervosa e segurou-o na mesma posição em que o socorrera naquele dia. – Calma, não se preocupe, é apenas um ataque de pânico. – disse-lhe com a voz mais controlada que conseguiu – Respire comigo, afaste os braços e as pernas, inspire até encher a barriga, expire apertando-a o mais que conseguir… inspire… expire… inspire… expire… é normal isto acontecer… inspire… expire… - continuou, com o ritmo cadenciado da voz, massajando-lhe os braços lentamente, de forma a diminuir a dormência. Manteve-se alguns minutos naquele exercício, cada vez mais segura de que estavam a conseguir controlar aquelas reacções involuntárias. O fresco dos azulejos arrefeceu devagar o corpo tenso de João e o seu olhar ficava cada vez mais consciente, olhando-a diretamente, como se procurasse nela a calma que lhe faltava. Isabel sorriu-lhe fraternalmente, continuando a massagem, sem desviar o olhar, mantendo-se firme na sua técnica natural de restabelecer uma pessoa descontrolada.

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