João acordou com as vozes animadas que
enchiam o corredor, ainda confuso com o último sonho que o perseguia
há várias noites consecutivas. Uma mulher morena de tranças
enormes embalava um pequeno elefante com variados braços, que o
rodeavam com carinho, silenciando-o. A pequena criatura chorava de
mimo, ou outra criancice qualquer, exigindo colo, como os pequenos
bebés humanos, e apenas se acalmava quando ela lhe satisfazia o
pedido. Uma voz melodiosa adormecia a cria elefante, entoando sons de
uma língua estranha, mas familiar, sem sentido, que o acordavam
sempre que tentava acompanhar a canção, ficando com a música presa
naquele limbo de sonho e consciência, desaparecendo da mesma forma
rápida com que lhe surgia no sono.
Reconhecia
a voz de barítono do seu médico, bem como o falsete da mulher dele,
que trabalhava como voluntária no hospital e lhe fazia companhia
durante algumas horas por dia. Uma presença agradável que o
serenava, por já a sentir familiar. Tentava perceber o que falavam,
e uma terceira voz mais moderada entrou na conversa, contrastando com
o tom feliz do casal de meia idade. Gostava do som com que a mulher
terminava as frases, musicando certas palavras, deixando-lhe claro de
que tinha um sotaque diferente do que normalmente ouvia no hospital.
Recordava-se de já a ter ouvido antes, mas não sabia bem onde,
surgindo-lhe de repente a imagem de uma enfermeira pálida que vira
há algumas semanas no seu quarto, mas que misteriosamente nunca
mais aparecera. Desde que tinha recuperado a consciência suficiente
catalogava caras, nomes, sons, feitios, como exercício mental de
memória, na esperança de se recordar de si mesmo, da pessoa que
fora antes de ter acordado naquele quarto. Tudo lhe era dito com
cautelas e reservas, como se o seu passado desconhecido o pudesse
transtornar, e esse facto angustiava-o bastante. O que teria
acontecido de tão grave na sua vida para que ninguém se atrevesse a
contar-lhe? Temeriam que enlouquecesse ou não aguentasse a verdade?
Chamava-se João, não tinha parentes, era psiquiatra, pela lógica e
como ainda não tinha aparecido para o visitar, não tinha mulher ou
namorada, filhos muito menos. Um miserável sozinho no mundo, com
dinheiro para pagar a diária daquela clínica cara. Era tudo o que
sabia de si mesmo. Uma coisa era certa, sentia-se incompleto, não
pela falta de pai ou mãe, que já de si era triste, mas uma parte de
si parecia ter sido arrancada. Talvez a sua mulher falecera e isso o
levara até aquele quarto de hospital, matutava por vezes. Só isso
explicava a sensação de saudade que o corroía. Saudades de um
corpo, de uma mulher que um dia deveria ter tido. Porque sentia falta
dela, e isso crescia dentro de si, como um balão de ar que lhe
sufocava o coração de dia para dia. Não precisava de pai nem mãe,
mas queria-a de volta, mesmo que apenas o nome de uma pessoa que
existira em tempos.
-
Bom dia! – César interrompeu os seus pensamentos, inundando o
quarto de animação, seguido por Elisabete e a enfermeira
desaparecida.
-
Bom dia. – respondeu, sentindo-se ligeiramente encavacado com a
presença pouco habitual da mulher bonita que se mantinha pouco à
vontade sem saber onde colocar as mãos.
-
Como passaste a noite? Tudo calmo? – questionou-o, com um brilho
diferente no olhar.
-
Bem. – desviou o olhar do médico para a enfermeira que ruborizou
de uma forma que lhe agradou subitamente. – Já não vinha aqui há
bastante tempo. – disse-lhe, endireitando-se na cama.
-
Hum… sim, estive de férias… - inventou Isabel à pressão, sem
saber o que dizer. Não esperava que ele lhe falasse diretamente, nem
a olhasse durante tanto tempo seguido. César convencera-a a entrar,
seguro de que ele não iria estranhar a sua presença, mas o quente
que sentia crescer nas bochechas denunciava o seu nervosismo,
lamentando ter seguido o seu conselho.
-
Queria mesmo falar com uma enfermeira. – iniciou, sem perceber
porque continuava a querer manter conversa com aquela técnica de
saúde em especial – Acha que já posso começar a tomar banho num
chuveiro normal e ir até à sala de convívio? Estou farto destas
paredes e de me darem banho de gato… - resmungou, desejoso de que
ela o autorizasse.
-
Acho que sim… ainda não se levantou daí? – perguntou espantada,
olhando interrogativamente César.
-
Bem, só agora é que as doses dos remédios permitem essas
movimentações, por isso sentes essa necessidade. – explicou,
olhando João satisfeito com as súbitas exigências do amigo.
-
Então, por favor, se tiver tempo hoje, precisava apenas de ajuda
para o caso de me sentir tonto. Pode cá passar em alguma altura do
dia? – questionou-a, desejando que fosse ela a monitorizar as suas
atividades e não uma trombuda qualquer.
-
Pode ser agora mesmo! – respondeu César, antes que Isabel se
esquivasse – Vamos Elisabete, o João precisa mesmo de um banho,
fazer a barba à homem e deixar esta cama por algumas horas. –
apressou-se a puxar a mulher para fora do quarto, sorrindo.
Depois
de uns segundos que pareceram horas a Isabel, João deixou de a olhar
e começou a levantar-se, mostrando grande dificuldade nos
movimentos, o que a despertou daquela perplexidade momentânea. Tinha
imaginado tudo naquela manhã, enquanto se dirigia à clínica para o
ver, depois de três semanas em Castelo Branco fechada em casa, menos
que lhe iria dar banho.
-
Desculpe, eu ajudo-o. – disse numa gaguez nervosa, apressando-se a
ajudá-lo a levantar.
-
Talvez seja melhor ir com calma… - sugeriu João ao sentir-se tonto
quando ela o agarrou.
-
Sim, claro, desculpe… - sussurrou, respirando fundo para se
acalmar. Depois de tanto tempo longe dele, estar tão perto e não o
poder abraçar nem beijar era difícil de aguentar. Teria de se
forçar a representar aquele papel de enfermeira imposto. – É
natural sentir-se tonto, está deitado há demasiado tempo… -
consolou-o, sentando-se calmamente a seu lado na cama – não é
preciso ter pressa.
-
Como se chama? – perguntou curioso, olhando-a mais de perto. Era
uma mulher bonita, sem aliança, constatou, depois de analisar as
suas mãos delicadamente poisadas nas pernas.
-
Ha…. Marta. – saiu-lhe sem pensar, fugindo com o olhar para a
casa de banho.
-
Ok Marta, vamos lá então? – estendeu-lhe a mão para se apoiar e
tentou novamente levantar-se devagar, ficando surpreendido ao notar
duas grandes cicatrizes nos seus pulsos.
-
Sim, com calma. – disse-lhe, corando automaticamente quando o viu
olhar as marcas do seu episódio dramático com Tiago.
João
disfarçou o espanto da descoberta íntima sobre a enfermeira e
continuou a caminhada pouco estável até ao quarto de banho que
ainda não utilizara, cada vez mais ansioso com a ideia de se lavar
com água corrente. Isabel entrou na frente, dando-lhe os braços
como apoio e obrigou-o a sentar-se num banco para se restabelecer da
tontura que aquele pequeno percurso lhe provocara.
-
Temos tempo… fique aqui que vou buscar-lhe um pijama lavado. -
disse-lhe com ternura, emocionada com o ar desconcertado e frágil
que ele mostrava naquele pequeno esforço de dar meia dúzia de
passos de pé.
-
Obrigado. – um leve pânico invadia-lhe a garganta. Nunca pensara
que o regresso às simples atividades diárias lhe custasse tanto.
Estava amorfo, sem vitalidade, com os músculos atrofiados de tanto
descanso. Uma antiga sensação de boca seca apoderou-se dele,
juntamente com o ritmo cardíaco descontrolado. Sabia que já tinha
sentido aquilo antes, mas isso não o consolava, apenas o
transtornava mais. Uma dormência forte crescia-lhe nos braços,
enervando-o cada vez mais, ao mesmo tempo que temia desmaiar a
qualquer momento.
-
Estes pijamas são horríveis… - comentava, tentando descontrair o
ambiente, quando o viu na mesma posição aflitiva em que ficara
quando tivera o ataque de pânico no Gerês. Ajoelhou-se nervosa e
segurou-o na mesma posição em que o socorrera naquele dia. –
Calma, não se preocupe, é apenas um ataque de pânico. –
disse-lhe com a voz mais controlada que conseguiu – Respire comigo,
afaste os braços e as pernas, inspire até encher a barriga, expire
apertando-a o mais que conseguir… inspire… expire… inspire…
expire… é normal isto acontecer… inspire… expire… -
continuou, com o ritmo cadenciado da voz, massajando-lhe os braços
lentamente, de forma a diminuir a dormência. Manteve-se alguns
minutos naquele exercício, cada vez mais segura de que estavam a
conseguir controlar aquelas reacções involuntárias. O fresco dos
azulejos arrefeceu devagar o corpo tenso de João e o seu olhar
ficava cada vez mais consciente, olhando-a diretamente, como se
procurasse nela a calma que lhe faltava. Isabel sorriu-lhe
fraternalmente, continuando a massagem, sem desviar o olhar,
mantendo-se firme na sua técnica natural de restabelecer uma pessoa
descontrolada.
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(imagem, internet)
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