quarta-feira, 3 de outubro de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 16 (3ª parte)





- Já está quase tudo limpo… - surpreendeu-se Salvador ao entrar na sala de yoga, depois de César ter acompanhado João na ambulância até à urgência da clínica. Sentia-se como se tivesse sido atropelado por um camião, com dores em todos os músculos, e admirou aquela tenacidade do segurança que não se abalava com as desgraças alheias e fazia sempre o que ninguém tinha coragem, o que tinha de ser feito. – Como é que conseguiste isto? Parece milagre… - exclamou meio afónico.
- Experiência. – respondeu pragmaticamente.
- Janota, desculpa ter-te deixado sozinho a limpar… e o cão? – olhou o local onde estivera horas antes Filipe a sangrar para morrer.
- Enterrado. Já só falta o corredor e arranjar a moldura da porta. – enumerou, passando por Salvador com o balde, para trocar por mais água limpa e lixívia.
- Tu tens um estômago de aço… - concluiu, olhando-o orgulhoso.
- Não, apenas sei separar as emoções dos acontecimentos. E fui treinado para isso. – explicou, passando novamente por Salvador já com outro balde e retomando a limpeza.
- Tenho de te aumentar. – disse em voz alta, sorrindo com amizade para Janota.


Isabel percorria a casa em passo lento, de braços cruzados a rodear a cintura, num autismo propositado, se parasse e desse corda à sua imaginação enlouquecia. Aquela espera corroía-lhe o peito e cada vez se sentia mais desesperada. Obrigava-se a respirar compassadamente, exigindo o mínimo de controlo ao seu corpo, que lutava para que ela caísse e esperneasse, libertando toda a tristeza e frustração.
- Porque é que eles não telefonam nem atendem os nossos telefonemas? – perguntou a Elisabete que se mantinha na sala de pé a olhar para fora da janela.
- Não sei querida… Mas as piores notícias são sempre as primeiras a chegar, não é? – consolou-a, pouco certa do que estava a dizer. Se o marido ainda não as tinha tranquilizado com alguma explicação era porque estava demasiado ocupado com algo muito grave. Engoliu em seco e voltou-se de novo para a rua, que começava a escurecer.
- Talvez… - sussurrou, retomando a caminhada pelo apartamento. Entrou para o corredor dos quartos, quando uma voz masculina surgiu do hall de entrada, provocando-lhe um arrepio. Lançou-se na direção da entrada da casa com o coração na boca e estacou ao ver César sujo de sangue nas roupas e sozinho. – O João?
- Isabel, o João ficou na clínica. – disse com a voz cansada, sentando-se de seguida.
- O que aconteceu? – Sussurrou emocionada, chegando-se até Elisabete que lhe deu as mãos em solidariedade.
- O cão estava lá, mas morto. – suspirou a meio para a deixar respirar – Mas o João não aguentou ver. Ele foi-se abaixo. Eu temia que isto pudesse acontecer… Tivemos de o levar para a clínica. – explicou.
- Mas foi-se abaixo como? Explique-me, por favor… - implorou, já sem segurar o choro.
- Ele tem uma depressão desde os 14 anos, já sabes o que lhe aconteceu com certeza. Nunca recuperou totalmente da morte do irmão, depois foi a mãe que se suicidou. Ele manteve-se sempre em negação, resistia à terapia, era-lhe muito duro falar. – uma culpa profissional acompanhava-o desde essa altura, que mantinha escondida, lamentou-se César – Depois a relação com a mulher, Isabel, nunca foi a perfeita. E quando não estamos bem connosco, não conseguimos estar com outros. Havia muita tensão e divergências entre eles… enfim, depois ela adoeceu e ele assumiu a morte dela como penitência pelas suas falhas como marido. Nunca o consegui convencer do contrário…
- Mas e hoje? O que foi que o fez piorar? O que é que ele tem? – exclamou nervosa e impaciente com aquele discurso interminável.
- Tem calma, ele agora está bem. O João teve um esgotamento nervoso quando viu o cão morto. Havia muito sangue… Não interessa os pormenores. – retraiu-se de lhe fazer uma descrição do horror que tinham presenciado.
- Esgotamento? – perguntou derrotada – Eu quero vê-lo, por favor. Onde é que ele está?
- Hoje não pode receber visitas, tem de descansar. Não valeria a pena lá ires, - explicou paternalmente – está medicado, não vai acordar. Amanhã eu vou contigo. Prometo que tudo se vai resolver, ele vai ficar bem.
- Sim querida, deixemo-lo descansar. E tu também tens de dormir. Ficas aqui connosco?
- Não. Vou dormir em casa do João. Preciso de ficar sozinha… Mas obrigada… - soltou-se de Elisabete, pegou no seu telemóvel e arrastou-se para fora do apartamento, como um zombie.
- Espera Isabel, toma, trouxe as coisas pessoais dele. Deve aí estar a chave de casa. – César estendeu-lhe um pequeno saco que trazia no bolso do casaco e analisou-a rapidamente. Parecia em choque, mas consciente. Não haveria perigo de ficar sozinha. – Promete que trancas a porta e não a abres a ninguém.
- Sim, claro. Obrigada. – olhou o saco e desceu as escadas, contando os passos, como fazia em pequena, sentindo aquela estranheza na perna que pisava mais vezes o chão. Sabia que a sua mente procurava distrações que a mantivessem operacional, pelo menos até conseguir chegar a casa, depois logo se veria o que lhe aconteceria. Contou dezenas de degraus, ficando com um número ímpar a incomodá-la, viu ao longe um degrau para subir para o passeio do outro lado da rua e fez os cálculos até lá chegar, de forma a compensar a outra perna e terminar aquela dormência. Resolveu a sua incómoda matemática de passos e entrou no prédio, voltando rapidamente atrás para se certificar de que não tinha visto o carro dele ao longe. O coração disparou numa correria atrapalhada, quando a razão lhe disse que João estava sob medicação no hospital, ao mesmo tempo que o carro parou ao seu lado e Salvador lhe sorriu com compaixão.
- Olá Isabel. Viemos trazer-te o carro. Já sabes o que aconteceu? – perguntou a medo.
- Sim. Obrigada, podes estacionar na garagem? Acho que não o vou usar.
- Claro. O Janota vem aí também, queres um pouco de companhia?
- Não, obrigada, prefiro ficar sozinha… - respondeu olhando Janota que se aproximava já depois de estacionar.
- Isabel, como estás?
- Não sei. Obrigada por terem ido com ele. Vou tentar descansar, se não se importam.
- Espera. Deixa-me só certificar-me de que não há ninguém na casa ou no prédio, pode ser? Também podemos aqui dormir, se quiseres. Para não ficares sozinha, pelo menos hoje. – sugeriu, com Salvador a acenar positivamente de dentro do carro.
- Acham que não seria abusar da vossa paciência? Há lá muitos quartos… - a ideia de não ficar sozinha em casa animou-a um pouco. Poderia isolar-se no quarto, mas sabendo que haveria pessoas nas divisões ao lado, prontas a ajudar, se fosse caso disso.
- Claro que não, já tínhamos falado sobre isso os dois. – explicou, referindo-se a Salvador.
- Então tudo bem. Acho que aceito. – suspirou e abraçou Janota, que a encaminhou para o prédio, deitando uma olhadela à rua.



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