-
Já está quase tudo limpo… - surpreendeu-se Salvador ao entrar na
sala de yoga, depois de César ter acompanhado João na ambulância
até à urgência da clínica. Sentia-se como se tivesse sido
atropelado por um camião, com dores em todos os músculos, e admirou
aquela tenacidade do segurança que não se abalava com as desgraças
alheias e fazia sempre o que ninguém tinha coragem, o que tinha de
ser feito. – Como é que conseguiste isto? Parece milagre… -
exclamou meio afónico.
-
Experiência. – respondeu pragmaticamente.
-
Janota, desculpa ter-te deixado sozinho a limpar… e o cão? –
olhou o local onde estivera horas antes Filipe a sangrar para morrer.
-
Enterrado. Já só falta o corredor e arranjar a moldura da porta. –
enumerou, passando por Salvador com o balde, para trocar por mais
água limpa e lixívia.
-
Tu tens um estômago de aço… - concluiu, olhando-o orgulhoso.
-
Não, apenas sei separar as emoções dos acontecimentos. E fui
treinado para isso. – explicou, passando novamente por Salvador já
com outro balde e retomando a limpeza.
-
Tenho de te aumentar. – disse em voz alta, sorrindo com amizade
para Janota.
Isabel
percorria a casa em passo lento, de braços cruzados a rodear a
cintura, num autismo propositado, se parasse e desse corda à sua
imaginação enlouquecia. Aquela espera corroía-lhe o peito e cada
vez se sentia mais desesperada. Obrigava-se a respirar
compassadamente, exigindo o mínimo de controlo ao seu corpo, que
lutava para que ela caísse e esperneasse, libertando toda a tristeza
e frustração.
-
Porque é que eles não telefonam nem atendem os nossos telefonemas?
– perguntou a Elisabete que se mantinha na sala de pé a olhar para
fora da janela.
-
Não sei querida… Mas as piores notícias são sempre as primeiras
a chegar, não é? – consolou-a, pouco certa do que estava a dizer.
Se o marido ainda não as tinha tranquilizado com alguma explicação
era porque estava demasiado ocupado com algo muito grave. Engoliu em
seco e voltou-se de novo para a rua, que começava a escurecer.
-
Talvez… - sussurrou, retomando a caminhada pelo apartamento. Entrou
para o corredor dos quartos, quando uma voz masculina surgiu do hall
de entrada, provocando-lhe um arrepio. Lançou-se na direção da
entrada da casa com o coração na boca e estacou ao ver César sujo
de sangue nas roupas e sozinho. – O João?
-
Isabel, o João ficou na clínica. – disse com a voz cansada,
sentando-se de seguida.
-
O que aconteceu? – Sussurrou emocionada, chegando-se até Elisabete
que lhe deu as mãos em solidariedade.
-
O cão estava lá, mas morto. – suspirou a meio para a deixar
respirar – Mas o João não aguentou ver. Ele foi-se abaixo. Eu
temia que isto pudesse acontecer… Tivemos de o levar para a
clínica. – explicou.
-
Mas foi-se abaixo como? Explique-me, por favor… - implorou, já sem
segurar o choro.
-
Ele tem uma depressão desde os 14 anos, já sabes o que lhe
aconteceu com certeza. Nunca recuperou totalmente da morte do irmão,
depois foi a mãe que se suicidou. Ele manteve-se sempre em negação,
resistia à terapia, era-lhe muito duro falar. – uma culpa
profissional acompanhava-o desde essa altura, que mantinha escondida,
lamentou-se César – Depois a relação com a mulher, Isabel, nunca
foi a perfeita. E quando não estamos bem connosco, não conseguimos
estar com outros. Havia muita tensão e divergências entre eles…
enfim, depois ela adoeceu e ele assumiu a morte dela como penitência
pelas suas falhas como marido. Nunca o consegui convencer do
contrário…
-
Mas e hoje? O que foi que o fez piorar? O que é que ele tem? –
exclamou nervosa e impaciente com aquele discurso interminável.
-
Tem calma, ele agora está bem. O João teve um esgotamento nervoso
quando viu o cão morto. Havia muito sangue… Não interessa os
pormenores. – retraiu-se de lhe fazer uma descrição do horror que
tinham presenciado.
-
Esgotamento? – perguntou derrotada – Eu quero vê-lo, por favor.
Onde é que ele está?
-
Hoje não pode receber visitas, tem de descansar. Não valeria a pena
lá ires, - explicou paternalmente – está medicado, não vai
acordar. Amanhã eu vou contigo. Prometo que tudo se vai resolver,
ele vai ficar bem.
-
Sim querida, deixemo-lo descansar. E tu também tens de dormir. Ficas
aqui connosco?
-
Não. Vou dormir em casa do João. Preciso de ficar sozinha… Mas
obrigada… - soltou-se de Elisabete, pegou no seu telemóvel e
arrastou-se para fora do apartamento, como um zombie.
-
Espera Isabel, toma, trouxe as coisas pessoais dele. Deve aí estar a
chave de casa. – César estendeu-lhe um pequeno saco que trazia no
bolso do casaco e analisou-a rapidamente. Parecia em choque, mas
consciente. Não haveria perigo de ficar sozinha. – Promete que
trancas a porta e não a abres a ninguém.
-
Sim, claro. Obrigada. – olhou o saco e desceu as escadas, contando
os passos, como fazia em pequena, sentindo aquela estranheza na perna
que pisava mais vezes o chão. Sabia que a sua mente procurava
distrações que a mantivessem operacional, pelo menos até conseguir
chegar a casa, depois logo se veria o que lhe aconteceria. Contou
dezenas de degraus, ficando com um número ímpar a incomodá-la, viu
ao longe um degrau para subir para o passeio do outro lado da rua e
fez os cálculos até lá chegar, de forma a compensar a outra perna
e terminar aquela dormência. Resolveu a sua incómoda matemática de
passos e entrou no prédio, voltando rapidamente atrás para se
certificar de que não tinha visto o carro dele ao longe. O coração
disparou numa correria atrapalhada, quando a razão lhe disse que
João estava sob medicação no hospital, ao mesmo tempo que o carro
parou ao seu lado e Salvador lhe sorriu com compaixão.
-
Olá Isabel. Viemos trazer-te o carro. Já sabes o que aconteceu? –
perguntou a medo.
-
Sim. Obrigada, podes estacionar na garagem? Acho que não o vou usar.
-
Claro. O Janota vem aí também, queres um pouco de companhia?
-
Não, obrigada, prefiro ficar sozinha… - respondeu olhando Janota
que se aproximava já depois de estacionar.
-
Isabel, como estás?
-
Não sei. Obrigada por terem ido com ele. Vou tentar descansar, se
não se importam.
-
Espera. Deixa-me só certificar-me de que não há ninguém na casa
ou no prédio, pode ser? Também podemos aqui dormir, se quiseres.
Para não ficares sozinha, pelo menos hoje. – sugeriu, com Salvador
a acenar positivamente de dentro do carro.
-
Acham que não seria abusar da vossa paciência? Há lá muitos
quartos… - a ideia de não ficar sozinha em casa animou-a um pouco.
Poderia isolar-se no quarto, mas sabendo que haveria pessoas nas
divisões ao lado, prontas a ajudar, se fosse caso disso.
-
Claro que não, já tínhamos falado sobre isso os dois. –
explicou, referindo-se a Salvador.
-
Então tudo bem. Acho que aceito. – suspirou e abraçou Janota, que
a encaminhou para o prédio, deitando uma olhadela à rua.
(direitos reservados, afsr)
(imagem, internet)
Sem comentários:
Enviar um comentário