quarta-feira, 31 de outubro de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 20 (4ª parte)




Senta! Não... Senta! - disse, de dedo espetado em direção a Filipe, que estava mais interessado no biscoito – Ai, que guloso... se não aprendes não levas o doce! Vamos, temos de praticar agora, enquanto ele não chega, já sabes que depois o papá irrita-se contigo a saltitar de um lado para o outro... Tiago? Olá... estava a ensinar o Fili...- Tiago passou pelos dois furioso, sem os olhar, trazendo aquela energia agressiva que modificava o ambiente de um local – Vamos, Filipe, vai lá para fora, acabou a brincadeira. Vai!


- Filipe... pára... - resmungou, acordando com dificuldade ao sentir o nariz frio do cão no seu pescoço. - Deixa-me dormir... - ralhou, quando subitamente teve consciência do que dizia e levantou o tronco – Filipe? - olhou pelo quarto e não o viu, como seria previsível, mas barulhos vindos da cozinha deixaram-na em alerta, não se recordava bem de como tinha ido parar à cama, nem trocado de roupa.. seria ele? Um ardor de felicidade subiu-lhe pelo abdómen em direção à garganta, com a ideia de que João tinha tido alta, se recordara de tudo e estivesse a fazer-lhe chá com torradas. Correu até à cozinha e estacou ao ver Janota de avental, um homem enorme de luvas de cozinha e faces coradas com o esforço de cozinhar. A felicidade que sentiu apanhou-a de surpresa, e abraçou instintivamente o grande segurança que não sendo o João, era com toda a certeza o segundo homem por quem nutria amizade e carinho. Era graças a ele que ainda estava viva, e isso não conseguiria nunca esquecer.
- Olá, então, sentes-te melhor? - disse naturalmente, como se ter uma pequena mulher agarrada ao seu tronco fosse a coisa mais normal do mundo.
- Janota... o que fazes aqui? - perguntou, largando-o e facilitando-lhe os movimentos atabalhoados com as panelas.
- Bem, isso é uma história grande, que te vou contar durante o almoço... se algum dia conseguir terminar uma destas tuas receitas esquisitas de comer sem carne... - explicou, sorrindo-lhe encavacado.
- Estive a dormir desde ontem? - sobressaltou-se, retirando-lhe uma das panelas das mãos e ajudando no cozinhado. - Não me lembro de nada...
- Acho que estas coisas verdes já estão cozidas... vamos para a mesa? - escorreu a água da panela, ficando completamente camuflado no vapor da água quente e provocando um riso em Isabel.
- Sim, tenho muita fome... - espreitou a outra panela e verificou se a massa já estava pronta – Acho que isto já está. Vamos.
Sentaram-se na mesa exterior, onde corria uma brisa agradável de um dia solarengo de outono, e Isabel lançou-se na refeição, sendo observada por Janota que exibia um sorriso paternal de satisfação.
- Mastiga devagar, ainda ficas com dor de barriga.
- Diz lá, o que foi que aconteceu ontem? - perguntou, depois de comer algumas garfadas.
- Bem... ontem vim até aqui para te trazer uma prenda... e quado cheguei não te encontrava em lado nenhum da casa, por isso fui dar a volta lá atrás ao quintal e vi-te no chão de gatas a mexer na terra... - explicou, tendo cuidado nas palavras, com todo o tato que conseguia ter para não a deixar perturbada. Se lhe dissesse textualmente aquilo que vira certamente que ela ficaria envergonhada. - ...depois, desmaiaste.
Isabel corou, ao recordar o surto que tivera junto à campa de Filipe, e pousou os talheres, nervosa. Não sabia que tinha sido vista naquela situação, e podia imaginar o choque dele.
- Desculpa, estás sempre a ver-me nas piores figuras... - gracejou.
- Posso imaginar o que te levou a ficares nervosa daquela maneira... mas sentes-te melhor? - desconversou.
- Sim,... mas, e ficaste cá durante a noite?
- Eu e o Dr. César e a Elisabete... só o Salvador é que não pôde, ficou no bar. O Dr deu-te um comprimido, por isso dormiste tanto... de manhã cedo foram-se todos embora e eu fiquei para ver quando acordavas.- explicou.
- Que vergonha... - pousou as mãos no colo e desviou o olhar do dele.
- Vergonha é roubar! Mas diz-me lá, gostaste da prenda? - Disse mais animado e aliviado por já ter explicado tudo.
- Mas o que é? Onde está? - respondeu curiosa com a surpresa.
- Não viste? Esteve toda a noite em cima de ti... Espera, vou procurar. - levantou-se e voltou rapidamente de dentro de casa com um cachorro irrequieto que lhe cabia na mão enorme. - Aqui está! Estava com medo que não fosse boa ideia, mas o Dr garantiu-me que ias gostar!
- Oh... meu...Deus... - exclamou a sentir lágrimas de alegria nos olhos – Janota.... que coisa mais fofa... - pegou-lhe reverencialmente e deu-se a cheirar, satisfeita com aqueles cumprimentos que só um cão bebé conseguia dar. - Quem é a coisa mais linda da mamã?! Quem é, quem é? Sim... é o meu... - olhou repentinamente para o sexo do animal, para confirmar se era macho ou fêmea – o meu Filipe!
- Ainda bem que gostas... estava com algum medo que fosse um bocado cedo para substituir o Filipe. - explicou, recostando-se na cadeira e recomeçando a comer.
- Não... - disse a sorrir com os beijos e fungadelas no pescoço – todos os cães são únicos, têm uma personalidade própria, e o meu Filipe foi um cão excepcional... - relembrou, emocionada – Vivemos muita coisa juntos, boa e má, sem ele nunca tinha aguentado o que aguentei – confessou – e aqui o Filipe Júnior vai ser um bom cãozinho e só fazer xixi e cocó cá fora na rua, certo? - olhou o cachorro que se contorcia de excitação.
- Pois... sobre isso... acho que o teu Júnior já marcou a casa em todos os sítios possíveis e imaginários... e o pior é que não é macho verdadeiro, ele agacha-se para fazer xixi, como as cadelas e nunca sabes se está só sentado ou se já está a molhar a carpete outra vez...
- Enquanto são pequeninos não levantam a perna... aqui o tio Janota não percebe nada de cãezinhos fofinhos, pois não? Mas o menino vai ser lindo e não sujar a casa, é preciso é muita paciência e salsichas.
- Salsichas? - perguntou curioso.
- Sim, não há nada que não consigas ensinar a um cão se tiveres salsichas no bolso. Acredita. - explicou.
- Acho que também fazia umas habilidades por umas salsichas... - sentenciou divertido.



Quem está livre és mesmo... tu! - o menino desatou a rir provocadoramente, fez-lhe uma careta e fugiu – Não m'apanhas! - João aceitou o desafio e seguiu-o, sem conseguir alcançar a passada do menino, que ria e olhava para trás divertido. Olhou para a direita e viu a água cristalina a brilhar - Vamos ao banho?Por favor... eu quero ir ao banho... mano, anda... vem comigo... - suplicava o menino, puxando-lhe por um braço, sem desistir – Tu prometeste... - fez beicinho, largando-o e correndo na direção da água. Um medo apoderou-se do seu corpo, queria dizer-lhe que era perigoso, mas a voz não lhe saía, tentou correr, mas os pés enterravam-se na areia rija, sugando-o lentamente, enquanto o menino desaparecia na água, dizendo-lhe adeus.

- João! Acorda!

(direitos reservados, afsr)
(imagem, internet)

Sem comentários:

Enviar um comentário