segunda-feira, 15 de outubro de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 18 (1ª parte)





- Amnésia? Como assim? Não se recorda de nada? – perguntou Nélia, surpreendida com as novidades que a tia contava enquanto arrumava a cozinha depois do jantar.
- Pobrezinho, diz que foi do choque de ver o cão morto… - lamentou-se, sentindo uma pontada de culpa com aquele trágico acontecimento – Se eu sonhasse que aquele homem era um criminoso… - fungou, limpando os olhos com o pano da loiça – parecia tão sério…
- A tia não tem culpa de nada! – exclamou exagerando no tom indignado – E o Dr está na melhor clínica privada de Coimbra, - acrescentou com escárnio – com os preços daquilo até podem devolver a memória a um morto!
- Nélia! Por favor,… isso lá são coisas que se digam…. O Dr João não está morto! – benzeu-se, olhando reverencialmente para o tecto da cozinha. – Amanhã tenho de o ir ver… coitadinho, sem família que tome conta dele. Já falei com o médico, o Dr César, e ele disse que agora já podemos vê-lo. Já lá vão três semanas… e nada… - explicou, referindo-se à recuperação da memória do patrão – mas já é seguro receber mais visitas.
- Se quiser posso ir consigo… - sugeriu, fingindo pouco interesse – Pode ficar emocionada e precisar de ajuda. – sentia uma curiosidade mórbida em ver o aspecto com que o homem arrogante que conhecera, estava depois de quase um mês a calmantes e outras drogas, num quarto de hospital.
- Obrigada querida, - surpreendeu-se coma simpatia da sobrinha – gostava muito de não ir sozinha. Aqueles sítios provocam-me calafrios…. – confessou, recordando a época negra em que a irmã e mãe de Nélia fora internada compulsivamente na Psiquiatria dos Hospitais de Coimbra.
- Então fica combinado. Precisa de ajuda? – perguntou cinicamente, depois de quase tudo estar limpo e arrumado pela tia.
- Deixa estar, vai descansar, eu termino isto aqui. – respondeu, passando o pano maquinalmente no balcão imaculado. Suspirou e esfregou mais um pouco, matutando naquela sobrinha que por vezes ainda a conseguia surpreender positivamente. Talvez a idade lhe estivesse a trazer juízo, concluiu, pondo aqueles pensamentos angustiantes de parte, ao mesmo tempo que poisava o pano. Desligou a luz da cozinha e despediu-se da santinha que a velava no corredor da casa, dirigindo-se ao quarto, num ritual antigo que a mantinha segura e em paz. Não conseguiria dormir sem a proteção da “Nossa Senhora de Fátima”, ou sequer passar por ela sem a admirar por breves segundos, tão linda e pura, de olhos tristes e empáticos, testemunha de tantos anos de sofrimento e dores, sempre ali para a consolar.


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(imagem, internet)

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