- Amnésia? Como assim? Não se recorda
de nada? – perguntou Nélia, surpreendida com as novidades que a
tia contava enquanto arrumava a cozinha depois do jantar.
-
Pobrezinho, diz que foi do choque de ver o cão morto… -
lamentou-se, sentindo uma pontada de culpa com aquele trágico
acontecimento – Se eu sonhasse que aquele homem era um criminoso…
- fungou, limpando os olhos com o pano da loiça – parecia tão
sério…
-
A tia não tem culpa de nada! – exclamou exagerando no tom
indignado – E o Dr está na melhor clínica privada de Coimbra, -
acrescentou com escárnio – com os preços daquilo até podem
devolver a memória a um morto!
-
Nélia! Por favor,… isso lá são coisas que se digam…. O Dr João
não está morto! – benzeu-se, olhando reverencialmente para o
tecto da cozinha. – Amanhã tenho de o ir ver… coitadinho, sem
família que tome conta dele. Já falei com o médico, o Dr César, e
ele disse que agora já podemos vê-lo. Já lá vão três semanas…
e nada… - explicou, referindo-se à recuperação da memória do
patrão – mas já é seguro receber mais visitas.
-
Se quiser posso ir consigo… - sugeriu, fingindo pouco interesse –
Pode ficar emocionada e precisar de ajuda. – sentia uma curiosidade
mórbida em ver o aspecto com que o homem arrogante que conhecera,
estava depois de quase um mês a calmantes e outras drogas, num
quarto de hospital.
-
Obrigada querida, - surpreendeu-se coma simpatia da sobrinha –
gostava muito de não ir sozinha. Aqueles sítios provocam-me
calafrios…. – confessou, recordando a época negra em que a irmã
e mãe de Nélia fora internada compulsivamente na Psiquiatria dos
Hospitais de Coimbra.
-
Então fica combinado. Precisa de ajuda? – perguntou cinicamente,
depois de quase tudo estar limpo e arrumado pela tia.
-
Deixa estar, vai descansar, eu termino isto aqui. – respondeu,
passando o pano maquinalmente no balcão imaculado. Suspirou e
esfregou mais um pouco, matutando naquela sobrinha que por vezes
ainda a conseguia surpreender positivamente. Talvez a idade lhe
estivesse a trazer juízo, concluiu, pondo aqueles pensamentos
angustiantes de parte, ao mesmo tempo que poisava o pano. Desligou a
luz da cozinha e despediu-se da santinha que a velava no corredor da
casa, dirigindo-se ao quarto, num ritual antigo que a mantinha segura
e em paz. Não conseguiria dormir sem a proteção da “Nossa
Senhora de Fátima”, ou sequer passar por ela sem a admirar por
breves segundos, tão linda e pura, de olhos tristes e empáticos,
testemunha de tantos anos de sofrimento e dores, sempre ali para a
consolar.
(direitos reservados, afsr)
(imagem, internet)
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