-
Isabel, Salvador, Janota. Como estão? – cumprimentou César
gravemente à porta do quarto de João na clínica onde trabalhavam.
Esperava ansioso pelos três, e apreensivo pela reação de Isabel
quando lhe contasse o que acontecera depois de João acordar.
-
Bom dia César. Passa-se alguma coisa? – perguntou Isabel,
estranhando o semblante preocupado do psiquiatra, e percebendo que
ele fazia consciente ou inconscientemente uma barreira física entre
eles e a porta.
-
Bem, - pigarreou desconfortável – o João dormiu calmo, já
acordou, está bem disposto. Um pouco confuso, mas isso é normal, a
medicação ontem foi forte e mesmo ele não está habituado.
-
Ok, posso vê-lo agora? – perguntou ansiosa por abraça-lo.
-
Isabel, antes de entrares, queria ainda dizer-te outra coisa. Não
fiques assustada, mas ele pode não te reconhecer. – disse,
olhando-a com carinho.
-
Como assim?
-
Ele não se lembra quem é. Parece que o choque de ontem lhe provocou
algum tipo de amnésia momentânea. Ainda estamos a discutir isso
aqui com os colegas de psiquiatria e neurologia no gabinete da
especialidade.
-
Amnésia?... Mas isso costuma acontecer nestes casos? – perguntou
nervosa. Sentia que César não conseguia disfarçar o incómodo que
aquela situação lhe causava profissionalmente. Algo de errado se
estava a passar.
-
Não é habitual, mas aconteceu. Ainda é muito recente, o quadro
médico dele ainda não estabilizou, pode ser momentâneo, ou… Bem,
não importa o que poderá acontecer, não vale a pena estarmos a
divagar, agora só peço que as visitas sejam rápidas e sem
desconfortos para o paciente. Por favor não perguntem “não me
conheces?” e coisas do género. Entrem, cada um por sua vez, eu
irei convosco. Se ele não vos reconhecer, improvisamos, mas não o
podemos deixar ansioso. Ele precisa de estar calmo e de descansar. –
explicou, falando para os três amigos que se mantinham atentos e
meio desconcertados. – Isabel, queres ir primeiro?
-
Sim, por favor.
Entraram
no quarto meio escurecido, João dormia novamente, aparentemente
calmo e o mesmo homem do dia anterior. Isabel travou a vontade de o
beijar e abraçar, limitando-se a observá-lo, como César pediu,
sentindo-se demasiado emocionada e frágil. Sabia que não poderia
chorar, nem demonstrar emoções que o pudessem abalar, e esforçou-se
por obedecer às orientações do médico. Pelo menos nada de
fisicamente grave lhe acontecera, como Filipe, que fora sacrificado
em nome de toda aquela loucura psicótica de Tiago… João estava
ali, seguro, longe do seu ex-marido, acompanhado por médicos, mesmo
que não a reconhecesse, nem a beijasse com a paixão que ela
imaginara que ele faria. Estava vivo e isso era o suficiente.
-
Obrigada César… - deu a mão ao psiquiatra, reforçando a sua
gratidão e inconscientemente procurando um ponto de apoio.
-
Senta-te um pouco. Pode ser que ele acorde entretanto. – dirigiu-a
ao pequeno divã em frente à cama, sem a largar.
-
O que digo, se ele não se lembrar de mim?
-
Dizemos que és enfermeira, estás a monitorizar os aparelhos a
pedido do médico. – respondeu naturalmente.
-
Ok…
João
acordou naquele momento, ou parte dele, abrindo os olhos, mas não
reagindo às duas presenças do quarto, como se fossem invisíveis.
Isabel sentiu o coração disparar, quando ele cruzou o olhar com o
seu, ficando abalada por não sentir a alma dele lá dentro. Alguma
coisa não estava certa…
-
Olá João. Como te sentes? – perguntou, da forma mais profissional
que conseguiu encontrar.
-
Olá. Sinto-me bem, acho. – respondeu com a voz fraca e arrastada –
Quem és?
-
Enfermeira aqui no piso. Pediram-me para monitorizar o teu sono. –
respondeu com dificuldade.
-
Dr., tenho dor de cabeça. – disse, voltando-se para César e
ignorando Isabel, como se ela não existisse.
-
Vou pedir que lhe dêem alguma coisa. Já volto. – olhou para
Isabel, que se mantinha paralisada no divã, e saiu apreensivo.
-
Tens sede?
-
Não.
-
Fome?
-
Não. Só tenho dor de cabeça. – respondeu laconicamente, sem
sequer a olhar.
Isabel
sentiu as lágrimas a invadirem-na, e pediu licença para sair,
fugindo do quarto o mais rápido que conseguiu. Passou pelos dois
amigos, esbracejando para que não a agarrassem, tinha de sair
daquele prédio, respirar ar puro, gritar, fazer qualquer coisa que a
libertasse daquela dor. Tiago tinha conseguido matá-lo também,
pensou desesperada. Mais uma vez conseguira dar-lhe cabo da vida,
destruir tudo o que lhe era querido. Um filho, João e Filipe…
Chegou à porta da rua e olhou em volta, com uma raiva que aumentava
a cada momento. Ele devia estar a observar, a espiá-la, aquele
doente mental, e Isabel desejava que naquele momento isso fosse
verdade. Ficou uns segundos a analisar a rua e teve a certeza de que
era ele num carro estacionado ao fundo da rua. Chamou um táxi e
pediu que a levasse a sua casa, iria resolver aquilo de uma vez por
todas. Ou um ou outro sairiam de lá vivos, disse a si mesma.
(direitos reservados, afsr)
(imagem, internet)
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